Encontro de lideranças indígenas no tekoha Pindó Poty, em Porto Alegre, discutiu movimento de luta e resistência dos Mbya Guarani
Caciques, lideranças religiosas e espirituais, os Karai e as Kunhã Karai, e representantes da Comissão Guarani Yvyrupa e Arpinsul estiveram reunidos por três dias na Terra Indígena Lami
Durante três dias, de 13 a 15 de maio, caciques das áreas Mbya Guarani no Rio Grande do Sul se reuniram no tekoha – lugar onde se é – Pindó Poty, localizado no Bairro Lami, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Com objetivo de realizar estudos, debates e reflexões sobre a Mãe Terra, movimento de luta e resistência dos Mbya Guarani, o encontro reuniu, além dos 28 caciques, lideranças religiosas e espirituais, os Karai e as Kunhã Karai, e integrantes da Comissão Guarani Yvyrupa e Arpinsul do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Espírito Santo.
Realizado após intensas mobilizações dos Mbya Guarani contra as invasões na Terra Indígena Lami, houve uma inter-relação entre os desafios, inquietações e problemas das demais comunidades como esbulho dos territórios e o desrespeito ao modo de ser Guarani que ocorria no tekoha Pindó Poty. Segundo as lideranças, “as violações aos direitos Mbya se tornaram um sinal de alerta e despertaram a vontade de reencontrar, organizar e unificar as lutas contra a violência dos Juruá [os brancos] e do Governo, que não cumpre com suas obrigações constitucionais de demarcar nossas terras, proteger e fiscalizar”.
“Os juruá [não-indígena] não reconhecem a importância da cultura Guarani para a formação do território do Rio Grande do Sul, nem respeitam a própria Lei que confere o direito aos indígenas viver de acordo com sua cultura”
Três temas deram a tônica do debate: o direito à terra; a organização articulada e planejada do movimento Mbya Guarani; e as políticas públicas em saúde, educação e atividades de sustentabilidade. Um novo encontro será realizado para discutir às demandas fundiárias, também realizar um levantamento que responda questões como:
Quais terras indígenas estão com procedimentos demarcatórios paralisados por omissão, negligência ou ausência de interesse do governo em demarcá-las? Quantas são as terras indígenas a serem demarcadas por reivindicação das comunidades e aquelas cedidas pelo Estado do Rio Grande do Sul para usufruto das comunidades? E em quais terras indígenas a posse é insegura e as condições e permanência são precárias, porque nelas há interesses econômicos públicos ou privados?
Ao debaterem sobre as lutas conjuntas e a necessidade de mobilização em torno das questões comuns, das ações articuladas e planejadas para a garantia dos direitos dos povos indígenas, os Mbya Guarani afirmam saber que os não-indígenas não reconhecem devidamente a importância da cultura Guarani para a formação do território do Rio Grande do Sul. “Nem respeitam a própria Lei juruá [Lei dos não-indígenas] que confere o direito aos povos indígenas de viverem de acordo com sua cultura”, apontam.
“Os encontros são realizados para discussões e fortalecimento do Nhande Reko, ajudar nas mobilizações comunitárias de construção de casas tradicionais, plantio e fortalecimento dos Karai e das Kunhã Karai, nossos rezadores”
Quanto às políticas públicas, os Mbya reafirmaram a necessidade de intensificar o controle social, a participação nas ações e serviços, e exigem respeito ao seu protagonismo no planejamento das políticas públicas, já que as mesmas estão sob o controle dos órgãos e entidades assistenciais do Estado.
O encontro contou com a presença de mais de duzentas pessoas dos mais diversos lugares, incluindo comunidades que vivem em áreas demarcadas, acampamentos de beira de estradas ou espaços degradados, cedidos por órgãos públicos, muitos deles afetados pelas invasões de posseiros, empresas privadas, vilas, cidades, fazendas, mineradoras.
Exatamente por isso, as lideranças afirmam que encontros como esse “não serão realizados apenas para discussões, mas para fortalecer efetivamente o Nhande Reko, ajudando em mobilizações comunitárias de construção de casas tradicionais, plantio e fortalecimento dos Karai e das Kunhã Karai, nossos rezadores”.
O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, Roberto Liebgott, tem acompanhado as ações Guarani e conta que “a maioria das comunidades se encontram em situação de insegurança e vulnerabilidade social, de pouco acesso a recursos básicos de educação e saúde”. Essa situação força os indígenas a viver em locais fora da natureza, por consequência surgem diversos preconceitos contra as comunidades indígenas.
“Nossos direitos constitucionais estão sendo ameaçados por ataques dos setores que nos consideram inimigos e desejam acabar com nosso direito originário à terra”
No Rio Grande do Sul há pelo menos 56 aldeias Guarani, e grande parte delas está em situação de insegurança jurídica, o que gera ameaças de invasão ao território e reintegração de posse contra as comunidades. As lideranças consideram urgente que a Fundação Nacional do Índio (Funai) e demais autoridades tomem as medidas necessárias para demarcar e proteger os territórios indígenas do avanço da especulação imobiliária e da destruição de suas matas sagradas.
“Os nossos direitos constitucionais, em todo país, estão sendo ameaçados por uma nova leva de ataques dos setores que nos consideram inimigos e desejam acabar com nosso direito originário à terra”, alertaram os Mbya Guarani em documento publicado ao final do encontro.
Eles ainda listam uma série de ofensivas lançadas contra as comunidades e seu povo, entre as quais destacam “a tese do Marco Temporal a ser julgada pelo STF; as tentativas parlamentares de retirar o Brasil da Convenção 169 da OIT; as ações de intimidação da Funai a organizações representativas dos povos indígenas, como a APIB; o avanço descontrolado do desmatamento, do garimpo e da grilagem de terras indígenas”.
A juventude Mbya Guarani também participou do encontro, trazendo suas pautas de lutas, sonhos, perspectivas e desafios. Destacaram o avanço das novas tecnologias e de práticas da cultura hegemônica que surgem com força desagregadora. “Sabemos que nossos vínculos estão nos modos de ser e de viver em comunidade, na espiritualidade, ancestralidade, na luta pela garantia de direitos individuais e coletivos, no pertencimento à Mãe Terra e nas possibilidades de sermos sujeitos de direitos em todas ações relativas as políticas que nos afetam direta ou indiretamente”.
“Nossos vínculos estão nos modos de ser e de viver em comunidade, na espiritualidade, ancestralidade, na luta pela garantia de direitos individuais e coletivos”
Apesar de tantas dores e sofrimentos, os Mbya Guarani mantêm-se alegres, entusiasmados, celebrativos, afetuosos, generosos. “Isso os identifica, os aproxima e compõem a cultura, o modo de ser Guarani, a comunhão com Ñhanderu, aquele que guia e segue sempre junto pela vida, porque está em todos os lugares – nas matas, nas águas, nas estradas, na terra e no céu. Todos esses vínculos alimentam e fortalecem a esperança no caminho da Terra Sem Mal”, analisa Roberto.
Confira o documento na integra:
DOCUMENTO FINAL DO ENCONTRO DE LIDERANÇAS E CACIQUES MBYA GUARANI DO RIO GRANDE DO SUL
Para: Autoridades Municipais, Estaduais e Federais; Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; e para a sociedade em geral
Prezados Senhores e Senhoras,
Nós, caciques e lideranças Mbya Guarani de mais de 30 aldeias do Rio Grande do Sul, estivemos reunidos nos dias 13, 14 e 15 de maio de 2021, na Tekoa Pindó Poty, bairro Lami, em Porto Alegre/RS, com o objetivo de fortalecer a luta em defesa de nosso território. O presente encontro aconteceu na tekoha Pindó Poty por ser uma terra cujo processo de demarcação encontra-se paralisado na FUNAI em Brasília, enquanto a área vem sofrendo esbulho e ataques praticados pelo juruá (não-indígena).
Se fizeram presentes lideranças e parentes de diversas regiões da Yvyrupa, nosso território tradicional sem fronteiras, fortalecendo a luta e a segurança da comunidade do Lami. As delegações visitantes foram recebidas com celebrações culturais, com jerojy e o tangara que são nossas danças.
Ao longo dos três dias de encontro, discutimos sobre a realidade dos Povos Indígenas no RS e sobre os direitos que nos são garantidos na Constituição Federal, mas que vêm sendo constantemente descumpridos pelo poder público. Nós sabemos que o juruá não reconhece devidamente a importância da cultura Guarani para a formação do território do Rio Grande do Sul, nem respeita a própria lei juruá que confere direito aos povos indígenas de viverem de acordo com sua cultura. Nosso povo vem sendo atacado há mais de 500 anos e, mesmo assim, nós resistimos de forma pacífica e mantemos vivo o Arandu, que é nosso conhecimento tradicional indígena Mbya Guarani.
Aprendemos com o Xeramoi e com a Xejaryi, nossos anciões e anciãs, que nossa relação com o território vem dos ancestrais, que viviam livremente e em harmonia com as matas e com os rios e com os animais, e por isso dependemos de áreas de terra para garantir condições permanentes para a manutenção dos cultivos das nossas sementes tradicionais e o acesso à medicina indígena. Somente assim temos acesso livre ao ka’aguy heté reguá (recursos naturais originários), como yy porã (fontes de água pura), mymba (animais silvestres), yva’a (frutas nativas), ei hete’i (abelhas nativas) e as fibras necessárias para os nossos artesanatos, tais como takua hete’i (taquara), guembé pi (cipó), yvíra (fibras) e outras plantas.
Infelizmente, o que acontece quando o juruá destrói a natureza é que ele acaba destruindo os espaços que temos para viver no modo de ser Guarani. Nossas terras, que eram grandes e abundantes, hoje são muito pequenas, e além disso ainda não são identificadas ou reconhecidas oficialmente pelo poder público. A maioria das comunidades encontra-se em situação de insegurança e vulnerabilidade social, de pouco acesso a recursos básicos de educação e saúde e, com essa situação que nos força a viver em locais fora de nossa natureza, surgem diversos preconceitos contra as comunidades indígenas, de que nós não estaríamos vivendo no nosso modo de vida tradicional, enquanto estamos preocupados primeiramente em encontrar algum local adequado às nossas origens, o que pode durar décadas.
Atualmente, habitamos 56 aldeias no Estado, sendo que grande parte está em situação de insegurança jurídica, o que gera ameaças de invasão ao território e de reintegração de posse contra as comunidades. Nós somos vistos muitas vezes pelo juruá como invasores na própria terra, esta terra que nos foi deixada pelos ancestrais. Mas a verdade é que o Povo Guarani habita o território, que o juruá chama de Rio Grande do Sul, muito antes dos tempos de Sepé Tiaraju.
Estamos muito preocupados com as comunidades que vivem em áreas habitadas tradicionalmente e que deveriam ser reconhecidas pelo governo estadual sob a forma de Reservas Indígenas, mas como isso não aconteceu essas comunidades estão ameaçadas de serem removidas. São comunidades constituídas em áreas públicas estaduais, muitas vezes ali assentadas por obra do próprio poder público. O governo do estado, no entanto, não tem dialogado com as lideranças de nosso povo para resolver a questão de forma favorável às comunidades indígenas. Pelo contrário, vem atuando para vender parte dessas terras junto a empresas públicas em processo de privatização, ou para negociá-las junto ao governo federal, sem que entidades representativas dos Guarani possam acompanhar devidamente esses processos ou serem sequer informadas das tratativas em curso.
A ausência de diálogo e de quaisquer garantias de respeito aos nossos direitos tradicionais gera enorme preocupação e insegurança em nossas famílias. Nesse sentido, os casos mais urgentes a se destacar são os das aldeias Tekoha Karandy (Três Bicos, Camaquã) e Tekoha Guabiju (Piquiri, Cachoeira do Sul), assentadas sobre propriedades da Companhia Estadual de Silos e Armazéns (CESA), cujo patrimônio está sendo leiloado sem levar em consideração nossos direitos territoriais, e também aquelas assentadas sobre patrimônio da CEEE, como Tekoa Ka’aguy Poty (Estrela Velha) e Guajayvi (Charqueadas) – esta última também ameaçada por uma obra de mineração – entre outras. É urgente que o governo do estado retire todas as áreas habitadas pelos povos indígenas e que são consideradas terras públicas estaduais dos processos de negociação e venda do patrimônio do estado a empresas privadas.
Também há de se destacar as áreas da extinta Fepagro, retomadas pelo povo Guarani em Maquiné, Rio Grande e Terra de Areia. A comunidade desse último município, Tekoha Yy Rupa, foi ignorada em suas demandas pela Secretaria de Agricultura e Desenvolvimento Rural (SEAPDR) e hoje corre o risco de ser expulsa de seu solo ancestral e suas matas nativas para dar lugar a um presídio. O Tekoha Ka’aguy Porã, retomada de Maquiné, sofre com a morosidade das instituições em regularizar suas áreas sagradas como Reservas Indígenas ou como Terras Indígenas de ocupação tradicional. Do mesmo modo, a Tekoha Pará Roke, de Rio Grande, depende tanto do governo municipal quanto do governo estadual para que se encaminhe de forma devida à regularização fundiária das terras de sua aldeia.
Além dessas, há comunidades em situação de acampamento que aguardam o andamento dos processos demarcatórios da FUNAI, como as aldeias do Irapuá (região central do estado), Mato Preto (Erebango, norte do estado), aldeia do Rio Capivari (Capivari do Sul, região litorânea) e Ponta do Arado (zona sul de Porto Alegre); e aqueles acampamentos sem providências em nível administrativo: aldeia Pekuruty/Arroio Divisa; Papagaio e Araxaty, em Cachoeira do Sul. Também há os casos de espera pelos procedimentos de delimitação da FUNAI, paralisados mesmo em estágios avançados de demarcação, como em Itapuã, Irapuá e Lami. Consideramos urgente que a FUNAI e demais autoridades tomem as medidas necessárias para proteger sobretudo as terras e as matas das aldeias do Lami e da Ponta do Arado, ambas no extremo sul do município de Porto Alegre, seriamente ameaçadas pelo avanço da especulação imobiliária e da destruição de suas matas sagradas.
Os nossos direitos constitucionais, em todo país, estão sendo ameaçados por uma nova leva de ataques dos setores que nos consideram inimigos e desejam acabar com nosso direito originário à terra. Como exemplos das ofensivas lançadas contra nossas comunidades e povos podemos destacar: a tese do Marco Temporal a ser julgada pelo STF; as tentativas parlamentares de retirar o Brasil da Convenção 169 da OIT; as ações de intimidação da FUNAI a organizações representativas dos povos indígenas, como a APIB; o avanço descontrolado do desmatamento, do garimpo e da grilagem de terras indígenas.
O que pedimos nesse documento são medidas específicas que se encontram ao alcance do governo estadual e da FUNAI. Demandamos do governo do estado do Rio Grande do Sul, de forma manifesta, a exclusão de áreas habitadas por povos indígenas das negociações em curso tanto com empresas em processo de privatização quanto de secretarias com projetos que envolvem a remoção de nossas comunidades. As áreas da CESA e da CEEE habitadas pelo nosso Povo Guarani e também pelos parentes Kaingang devem ser respeitadas e, para isso, devem ser desmembradas dos processos que envolvem a privatização e/ou extinção dessas empresas. Do mesmo modo, as áreas retomadas da Fepagro devem ser regularizadas como áreas sagradas do Povo Guarani e não transformadas em presídios ou áreas de turismo.
Exigimos também que seja respeitado nosso direito de tomar parte em todos processos de negociação que envolvem nossas terras, pois é inadmissível que governos negociem a portas fechadas nossas terras originárias. Nesse sentido, é urgente que se constitua uma comissão de representantes do Povo Guarani e que acompanhe as reuniões entre o governo estadual e o federal que buscam negociar, inclusive, áreas já consagradas e regularizadas como Reservas Indígenas. Da FUNAI, bem como do poder público municipal e estadual, incluindo órgãos ambientais, demandamos que tomem as medidas cabíveis para garantir a segurança e o bem-estar das comunidades do Lami e de Ponta do Arado, bem como que protejam as matas sagradas de nosso povo contra as invasões e destruições promovidas pelos juruá.
Como encaminhamento, formamos uma comissão de caciques e lideranças que deverá acompanhar as negociações em curso que dizem respeito às nossas terras. Dessa forma, exigimos que o governo estadual e o governo federal assumam suas responsabilidades e respeitem os nossos direitos originários e territoriais, reconhecendo a Comissão de Caciques e Lideranças como parte legítima e incontornável em todos os processos de negociação em curso que incidem sobre nossos territórios e nossas vidas. Nossa Comissão será composta por caciques e lideranças de todo estado, bem como por organizações indígenas como a Comissão Guarani Yvyrupa e a ArpinSul, além de entidades indigenistas de apoio. Iremos solicitar audiências no âmbito estadual e federal, com todas as instituições competentes que vêm tomando parte nas negociações e tratativas acima referidas.
Por fim, destacamos a força dos kunumi kuery, nossos jovens, que estiveram presentes desde o início nas mobilizações, ajudando nos mutirões de construção e plantio dentro da aldeia, bem como buscando o conhecimento do Nhande Reko, o sistema Guarani, que se relaciona com a nossa espiritualidade. No encerramento, realizado no dia 15, os Kunumi Kuery apresentaram às lideranças suas reflexões sobre o fortalecimento do Nhande Reko e apontaram os caminhos a seguir pela frente na continuidade da luta pelos territórios. A partir de agora, os jovens estão inspirados, motivados e organizados para fazerem encontros e atenderem aos chamados de parentes que tenham seus territórios ameaçados. Esses encontros não serão realizados apenas para discussões, mas para fortalecer efetivamente o Nhande Reko, ajudando em mobilizações comunitárias de construção de casas tradicionais, plantio e fortalecimento dos Karai e das Kunhã Karai, nossos rezadores.
Encerramos esse Encontro com as belas palavras dos Xeramoi e das Xejaryi, nossos anciões e anciãs, que iluminam nossos caminhos e nossa luta com os ensinamentos de nossos ancestrais, sob o olhar de Ñhanderu.
Aguyjavete!
Tekoa Pindó Poty, 15 de maio de 2021.