28/04/2021

União dos povos e mulheres para frear projetos privados nos territórios é levada ao Fórum Permanente de Assuntos Indígenas da ONU

Mulheres de quatro países do mundo se uniram para denunciar as violações das empresas transnacionais e para prestar solidariedade à luta pela dignidade de seus povos

Cacique Lucélia Pankará de Itacuruba no V Encontro Popular da Bacia do Rio São Francisco. Foto por Manoel Freitas

Cacica Lucélia Pankará de Itacuruba no V Encontro Popular da Bacia do Rio São Francisco. Crédito da foto: Manoel Freitas

Por Alass Derivas, especial para a Assessoria de Comunicação – Cimi

Na manhã desta segunda-feira (26), mulheres indígenas de quatro cantos do mundo se encontraram no debate virtual “Justiça e Responsabilidade no Contexto das Indústrias Extrativistas: Mulheres indígenas defensoras dos direitos humanos da Guatemala, Brasil, Indonésia e Bangladesh”. O debate é um evento paralelo à 20ª Sessão do Fórum Permanente de Assuntos Indígenas das Nações Unidas, que teve início no dia 19 de abril.

Em comum, estas mulheres levaram à ONU a denúncia de violações contra quem defende os direitos humanos e os territórios. Violações cometidas pelas multinacionais em cumplicidade com os governos. Nestes ataques, o patriarcado e o machismo se expressam: as mulheres, especialmente as mulheres indígenas, são as mais atingidas.

O debate contou com a presença de Lucélia Pankará, cacica da Terra Indígena Serrote dos Campos, em Pernambuco, além de indígenas de Papua Nova Guiné (Esther Haluk), Bangladesh (Chandra Tripura) e Guatemala (Telma Cabrera). Participaram também Ilze Brands Kehris, assistente para os Direitos Humanos do Secretário Geral da ONU, e o Relator Especial para Resíduos Tóxicos.

Para a mediadora do evento, Sandra Epal-Ratjen, da Franciscans International, entidade organizadora do evento com co-patrocínio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as mulheres estão na vanguarda da luta contra os mega empreendimentos extrativistas. “Em diferentes lugares do mundo, as empresas multinacionais promovem ataques a defensoras, com violações de direitos muito semelhantes, com as mesmas discriminações às comunidades tradicionais e aos povos originários”, diz Sandra.

No comentário de boas-vindas, Miia Rainne, da Missão Permanente da Finlândia, via o debate como um momento de apontar as responsabilidades das empresas extrativistas nos ataques que sofrem os indígenas na luta pela terra e pelo seu modo de viver. “As mulheres defensoras que lutam pelo seu modo de viver estão sempre acompanhadas de muitas ameaças. Através da cooperação internacional e de mecanismos como os da ONU e do Conselho Europeu, é preciso promover a proteção dessas defensoras”.

“Notadamente, a Funai vem trabalhando, neste governo, em sentido contrário ao melhor interesse dos indígenas”, diz a cacica Lucélia Pankará

A assistente para os Direitos Humanos do Secretário Geral da ONU, Ilze Brands Kehris, começou apontando o exorbitante número de mortes de pessoas que defendem os direitos humanos. Segundo Kehris, somente em 2019 foram 1300 defensoras mortas, 300 mil desaparecidas. 75% das mortes na América do Sul. Desde 2017, são 500 mulheres mortas em 19 países. Também trouxe outro dado importante: os indígenas representam 6% da população mundial segundo a ONU. No entanto, 80% da biodiversidade está em territórios indígenas.

“Os ataques contra esses povos na luta pela terra acontecem muitas vezes relacionados à indústria extrativista, hidrelétricas e o agronegócio”, relatou Kehris. Também destacou a intensificação das violações no período de pandemia: “As mulheres tem sido mais hostilizadas, com intimidações onlines, dificuldade de acesso à Justiça e de deslocamento em geral. Falta de apoio, de financiamento e de reconhecimento”. Para Kehris é necessário que os Estados sejam responsabilizados na proteção das defensoras de direitos humanos. “Enquanto ONU, estamos lutando para assegurar os mecanismos de proteção e para implementar a consulta aos povos”.

Nesta foto de 2014, trecho da construção da Transposição do Rio São Francisco, que afetou o Opará e seus habitantes. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

Luta pela terra e contra empreendimentos no rio Opará

Com destaque para o fato de o Brasil, mesmo depois do crime socioambiental de Mariana e Brumadinho, ainda ter 40 barragens com risco de rompimento, Sandra Epal-Ratjen convidou Lucélia Pankará para abrir as falas das mulheres indígenas. Lucélia é cacica do povo Pankará na Terra Indígena Serrote dos Campos, às margens do rio São Francisco, que, para o seu povo, também é conhecido como o grande Opará.

Apesar de ser um território ancestral, com histórico milenar de presença indígena, a terra de Lucélia ainda não está demarcada. Segundo ela, muito por descaso do governo federal e morosidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia federal que tem como função garantir direitos e executar políticas públicas em prol das comunidades originárias.

“Notadamente, a Funai vem trabalhando, neste governo, em sentido contrário ao melhor interesse dos indígenas. O processo judicial de demarcação da Terra Indígena Pankará Serrote dos Campos está sendo bastante moroso sobretudo pelas omissões sistemáticas da Fundação, omissões que tem claramente o objetivo de cercear o direito constitucional de demarcação do território indígena”, diz. Neste processo de demarcação, Lucélia já foi ameaçada de mortes, inclusive tendo de solicitar a proteção de programas de defesa de defensores de direitos humanos.

O rio São Francisco, um dos maiores cursos d’água do continente, assim como outros rios, florestas, mares, tem um valor expressivo no modo de vida dos povos que vivem à sua volta. Não é diferente com o povo Pankará. “O grande Opará (rio São Francisco) é de grande importância para o Bem Viver dos povos, físico e para suas manifestações religiosas, tanto é que é possível identificar uma grande área de ocupação com vários Sítios Arqueológicos”, relata a cacica.

A proximidade do rio, que possibilita o Bem Viver, é justamente o que faz com que a comunidade seja constantemente ameaçada. “Por nosso território estar próximo ao rio, sempre foi cobiçado pela colonização”. Lucélia expôs todo esse histórico de cobiça. Já na década de 1950, começaram a ser implantadas ao longo do rio São Francisco várias hidrelétricas, desde o estado de Minas Gerais, passando pela Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas.

A barragem de Itaparica (Luiz Gonzaga), que teve suas comportas fechadas em 1988, alagou a antiga cidade de Itacuruba, assim como outras cidades ao longo das margens do rio, inundando extensas faixas de terra, entre essas, parte do território tradicional do povo Pankará. “Nossas comunidades foram obrigadas a saírem de seus territórios tradicionais e muitas famílias foram removidas para outras localidades, alojados nas chamadas Agrovilas, construídas pela CHESF (companhia hidroelétrica do são Francisco)”, rememora Lucélia.

Se não bastasse, depois de anos se recuperando sem nenhuma indenização pela inundação da hidrelétrica, e lutando pela demarcação territorial, o povo Pankará enfrenta, desde 2008, o projeto de implantação de seis reatores nucleares

Aquelas famílias que não quiseram seguir esse projeto, ficando em áreas que não foram alagadas, passaram a sofrer um intenso processo de violência sofrida por imposição do Estado. “A nova cidade de Itacuruba, formada em sua maioria pelos habitantes da antiga Itacuruba, que foi inundada, destaca-se pelo seu expressivo índice de depressão e outros transtornos de saúde mental, consumo de remédios psicotrópicos e taxa de suicídios alta em relação à média nacional. Isto se deve em grande parte à condição de atingidos por barragem que detém esta população”.

Se não bastasse, depois de anos se recuperando sem nenhuma indenização pela inundação da hidrelétrica, e lutando pela demarcação territorial, o povo Pankará enfrenta, desde 2008, o projeto de implantação de seis reatores nucleares, parte de um complexo de usinas nucleares previstos no Plano Energético 2050. Mais uma vez, a proposta é a de expulsão do povo Pankará de seu território, que se vê obrigado a peregrinar em defesa dos seus direitos.

“Caminhamos na construção da resistência contra o projeto das usinas nucleares, em defesa da terra, também por ser contra a “energia da morte”, articulando e mobilizando todos os setores que são atingidos pelo projeto nuclear, as comunidades vizinhas, outros povos indígenas, comunidades quilombolas, pescadores, trabalhadores rurais e um grande número de cidadãos moradores das cidades próximas, assim também como os das capitais Nordestinas, pois todas elas estão num raio próximo a ser atingido, direta e indiretamente, caso as usinas nucleares sejam construídas e caso haja um acidente nuclear”, explica a cacica.

Lucélia aponta que esse processo de articulação envolve outras comunidades, movimentos, atingidos por outras usinas nucleares no Brasil e no mundo.  “Não queremos usinas nucleares em nosso território tradicional nem ao longo do rio São Francisco, o mais importante rio da região do nordeste, queremos antes um projeto de desenvolvimento nacional que ampare direitos humanos de comunidades tradicionais e proporcione o bem viver de toda a população e a preservação do meio ambiente”, conclui.

Mulheres indígenas protestaram no dia 19 de abril contra o garimpo em terras indígenas e exigiram respeito ao seus direitos. Crédito da foto: Tiago Miotto/Cimi

Do Opará a Papua Nova Guiné

Do outro lado do mundo, Esther Haluk fala de Papua Nova Guiné. Denuncia o roubo de terras do seu povo. Foram seis milhões de hectares perdidos. 27% entre 2011 e 2019. “Nos últimos 3 anos, perdemos 1,3 milhões de hectares roubados. Por meio de intimidações, fraudes, métodos escusos. Muitas destas áreas, que eram florestas, hoje são monocultivos”. Assim como no Brasil, quem se levanta após perder suas terras é ameaçado pelas forças de segurança do Estado. “Isso dificulta a resistência, levantarmos a nossa voz, porque estamos perdendo incontrolavelmente os nossos recursos. As florestas começam a desaparecer e isso é sério porque são recursos fundamentais para as mulheres. Por isso estamos aqui pedindo a solidariedade e apoio à comunidade internacional para frear o roubo de terras e garantir nosso território”, apela Esther.

De volta à América, direto da Guatemala, Telma Cabrera falou representando o povo maia e focou na exploração trabalhista que os indígenas sofrem em seus país. Segundo ela, de acordo com uma pesquisa trabalhista que o Comitê de Desenvolvimento Campesino realizou, 97% das mulheres que trabalham em fazendas não recebem um salário mínimo. ”A situação dos povos é de exploração no âmbito trabalhista, ainda mais no caso das mulheres. Trabalham mais de 8h por dia. Não há férias, 13°, falta de salário mínimo, o trabalho não é documentado, não tem nem auxílio maternidade”. Para Telma, o caráter discriminatório do trabalho da mulher no setor agrícola é um reflexo machista e patriarcal do mercado a nível global.

Em Bangladesh, de onde falou Chandra Tripura, existem 54 comunidades indígenas, com 34 idiomas diferentes. De acordo com Chandra, no seu país também povos originários são os principais protetores dos recursos nacionais e, ao mesmo tempo, são os mais vulneráveis

“Nós mulheres indígenas vivemos uma realidade cruel. Há um empobrecimento generalizado. E quando nos articulamos para defender nossos direitos somos criminalizadas, chamadas de terroristas, de ladras. Não há condições para defender os direitos trabalhistas na Guatemala justamente porque o principal agente violador é o Estado da Guatemala”, afirma. Telma Cabrera denuncia as empresas transnacionais que violam os direitos trabalhistas por onde passam. “Como povos indígenas, estamos na luta para dignificar nossos direitos. Para isso, prestamos solidariedade às defensoras que também estão sendo criminalizadas por defenderem seus direitos. Por favor, escutem o clamor das mulheres indígenas. Queremos respeito!”, enfatiza.

Em Bangladesh, de onde falou Chandra Tripura, existem 54 comunidades indígenas, com 34 idiomas diferentes. De acordo com Chandra, no seu país também povos originários são os principais protetores dos recursos nacionais e, ao mesmo tempo, são os mais vulneráveis. “A discriminação acontece há séculos e as mulheres indígenas são o grande alvo de diferentes tipos de violações: estupro, morte depois de estupro, conflitos envolvendo o roubo de terras”, relata. Os negócios internacionais estão por trás do roubo de terras indígenas em prol do progresso, do desenvolvimento.

“As comunidades estão passando por restrições em relação ao acesso à água. As defensoras, jovens mulheres, protestamos, mas o governo não está fazendo nada. Nunca tivemos justiça para os indígenas”. Segundo Chandra,  todas as atividades ilegais em prol do desenvolvimento são apoiadas pelo governo ou pelas Forças Armadas. E quem luta contra enfrenta esses grupos de poder. Chandra denuncia que a integrante de uma federação de luta das mulheres foi sequestrada em Bangladesh pelas Forças Armadas. “Até agora não sabemos onde ela está. E se vamos lutar por justiça também somos intimidadas. O que perpetua a impunidade”.

Comissão para proteger direitos das mulheres indígenas

Falando diretamente à relatora da ONU, Chandra expôs a necessidade de formar uma comissão para proteger os direitos das mulheres indígenas e intervir em conflitos de territórios. “É necessário defender a vida, defender os direitos humanos e garantir a justiça nos país. Implementar acordos para garantir uma paz duradoura nos territórios”.

Ilze Brands, relatora da ONU, se mostra ciente das violações relatadas. “Os governos junto com as forças militares são cúmplices em vários dos casos relatados. É sim necessário, a nível doméstico e internacional, criarmos uma rede forte para intervir”. Esther Haluk reforça a necessidade da difusão de informações a nível internacional. “O apoio de fora é muito importante para implementar uma liberdade de expressão, que não existe em Papua Nova Guiné. Por exemplo, um jornalista internacional tem sua entrada proibida aqui”.

“Precisamos nos unir contra o projeto de morte que está sendo pensado para destruir nossos povos”, afirma a cacica Lucélia Pankará

Thelma finaliza dizendo que os direitos dos povos indígenas na Guatemala são historicamente violados em nome do dinheiro. “O Estado da Guatemala, junto com as empresas transnacionais, assassinam e colocam na cadeia os defensores dos direitos dos povos e principalmente dos povos indígenas. Os casos que envolvem pessoas assassinadas ficam impunes”, denúncia Thelma. “Nós precisamos construir o poder dentro do povo para alterar essa situação. Lutamos pelo respeito a nossa vida”.

Por fim, Lucélia conclui o debate enfatizando a dificuldade da luta pelos direitos humanos e agradece a oportunidade de estar com mulheres tão fortes, defensoras dos seus povos. “Precisamos nos unir contra o projeto de morte que está sendo pensado para destruir nossos povos. Não é fácil lutarmos sozinhas, mas na soma com outros povos, na luta por direitos humanos, seremos vencedores. Que a gente se some cada vez mais na defesa da vida”.

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