STF suspende resolução da Funai que restringia autodeclaração indígena
Decisão cautelar do ministro Roberto Barroso foi tomada na ação que cobra combate à pandemia entre indígenas; plano de ação do governo federal foi parcialmente homologado
O ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu nesta terça-feira (16) a Resolução 04/2021 da Fundação Nacional do Índio (Funai), que estabelecia “critérios de heteroidentificação” para avaliar a autodeclaração de identidade dos povos indígenas. A medida vinha sendo criticada por diversas organizações da sociedade civil como uma restrição indevida e inconstitucional aos direitos e à identidade dos povos originários, com consequências diretas para a política de imunização dessas populações.
A decisão de Barroso ocorreu no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, da qual é relator. A ação, de autoria da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e seis partidos políticos, é acompanhada por organizações da sociedade civil e entidades científicas e cobra do poder público medidas para o combate à pandemia de coronavírus entre os povos indígenas, frente à negligência do governo federal.
Em sua nova decisão cautelar (acesse aqui), o ministro também homologou parcialmente a quarta versão do Plano Geral de Enfrentamento à Covid-19 para Povos Indígenas e garantiu a inclusão na prioridade de vacinação para os povos que vivem em terras indígenas não homologadas e em contexto urbano, sem acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), “nas mesmas condições dos demais povos indígenas aldeados”.
Barroso ainda determinou ao governo a apresentação de um novo Plano de Isolamento de Invasores, no prazo de cinco dias, e de um Plano de Execução e Monitoramento do Plano Geral, em 15 dias, com detalhamento das diversas ações previstas para o atendimento às comunidades indígenas.
A decisão do ministro da Suprema Corte levou em consideração as manifestações da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Apib, da Procuradoria-Geral da República (PGR), a Defensoria Pública da União (DPU), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em relação ao Plano apresentado pelo governo federal.
Apesar da homologação parcial do plano de enfrentamento à covid-19 entre indígenas, Barroso afirma que “a maior parte das determinações anteriores deste juízo foram atendidas apenas parcialmente, quando o foram”, e chama atenção para a “profunda desarticulação por parte dos órgãos envolvidos”.
O ministro ainda criticou a existência de “dados conflitantes e informações contraditórias” por parte do governo federal, e a “persistente insistência da Funai em diferenciar entre indígenas, o que já foi vedado por este Tribunal e parece estar sendo ignorado”.
A decisão reconheceu que a Resolução da Funai excluiria povos indígenas do acesso “à saúde especial e à vacinação prioritária em meio à pandemia”
Resolução é inconstitucional
O ministro Roberto Barroso determinou a suspensão da Resolução 04/2021 da Funai, publicada no dia 22 de janeiro, por inconstitucionalidade, inconvencionalidade e violação à decisão cautelar proferida no ano passado pelo próprio STF. Naquela decisão, a Corte definiu como “inaceitável” a postura do governo federal de limitar as ações de combate à pandemia apenas aos povos vivendo em terras indígenas homologadas.
Ao suspendê-la, Barroso criticou a resolução da Funai por restringir a identidade indígena com base em critérios “vinculados ao território”, o que contraria a Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, e a decisão anterior do STF.
“A identidade de um grupo como povo indígena é, em primeiro lugar, uma questão sujeita ao autorreconhecimento pelos membros do próprio grupo. Ela não depende da homologação do direito à terra. Ao contrário, antecede o reconhecimento de tal direito”, reafirma o ministro.
A decisão ainda reconheceu que a Resolução da Funai acabaria por excluir povos indígenas inteiros do acesso a políticas públicas, colocando em risco “seu acesso à saúde especial e à vacinação prioritária em meio à pandemia”.
A análise da Resolução foi feita após a manifestação das organizações que acompanham a ADPF 709.
“O Conselho Nacional de Direitos Humanos, junto com Apib, Cimi, Fiocruz, Abrasco e outros entidades, denunciou ao STF a inconstitucionalidade da Resolução n. 4/2021”, explica Leandro Scalabrin, integrante do CNDH. “Solicitamos que toda a população indígena autodeclarada deve receber a política contida no Plano da União, sem deixar de fora pessoas que não estejam vivendo em aldeias”.
“Essa decisão do STF é muito importante para que nenhum indígena seja excluído desse Plano de combate a pandemia para os povos indígenas, que vem tarde, o qual já está na quarta versão apresentada e foi aprovado parcialmente, pois ainda tem omissões e não está sendo plenamente cumprido”, avalia o membro do Conselho.
Ele ainda destaca as denúncias, recebidas pelo CNDH, de que as cestas básicas estabelecidas no plano para segurança alimentar não estão chegando às aldeias, o que agrava a vulnerabilidade de diversas comunidades indígenas. “A retomada do auxílio emergencial é urgente para salvar vidas”, destaca Scalabrin.
A assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi produziu uma nota técnica em que aponta as violações à Constituição Federal contidas na resolução da Funai. A nota foi utilizada como subsídio na manifestação do CNDH.
Diversas organizações, como a Apib, a Abrasco, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Comissão Arns, e órgãos, como o Ministério Público Federal (MPF), já haviam se manifestado contrariamente à Resolução 04/2021 e cobrado da Funai a sua revogação.