01/02/2021

Em Campo Grande, Justiça Federal determina que Sesai cuide e vacine indígenas que vivem nas cidades

Por todo o Brasil, povos se insurgem diante de decisão do governo federal que exclui indígenas “não aldeados” do plano de imunização contra covid-19

Lideranças Terena e Guarani-Kaiowá, que moram em aldeias e em centros urbanos, ocuparam o Dsei do Mato Grosso do Sul para reivindicar atendimento qualificado à saúde indígena | Foto: Apib

Por Nanda Barreto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Os povos originários estão mobilizados para fazer valer a devida prioridade na fila de vacinação contra a covid-19. Em Campo Grande (MS), na semana passada, a Justiça Federal determinou que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) promova o cadastramento e atendimento de saúde de todos os indígenas que residem no município; quer vivam em territórios demarcados ou nas cidades.

De acordo com a decisão judicial, esta e outras medidas devem ser cumpridas em até 180 dias, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. A Ação Civil Pública (ACP) é uma resposta ao plano de imunização do governo Bolsonaro, que deixou de fora o que considera indígenas “não aldeados”. Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a política do governo federal de excluir indígenas representa um contrassenso político e humanitário (saiba mais aqui).

Na avaliação de Eder Terena, liderança da Terra Indígena Buriti, dividir os indígenas de acordo com a localidade onde moram é um absurdo, pois não reflete a realidade dos povos. “Esta postura de querer diferenciar indígenas aldeados e não aldeados é um equívoco muito grande, porque a gente pode ir pra cidade, ter outras formas de vida, mas nunca vamos deixar de ser índios, pois nossa forma de ser está embasada nos nossos ancestrais”, sustenta.

A raiz da questão
Para o professor Eder, enfrentar a realidade dos povos indígenas hoje pressupõe um mergulho no histórico de exclusão vivido por eles. “O fato de atualmente nós termos várias aldeias e índios morando nos centros urbanos é uma clara consequência da falta de políticas públicas e de um plano de governo, que realmente obedeça a Convenção 169 da OIT e a Constituição Federal“.

O antropólogo Marcos Homero Ferreira Lima, que trabalha no Ministério Público Federal (MPF) há 18 anos, reforça a perspectiva trazida por Eder, expondo que a bola de neve dos direitos sonegados tem origem na usurpação das terras indígenas. “A condição indígena hoje é fruto de um desenvolvimento histórico firmemente atrelado à situação colonial, que em determinado momento realocou em reservas extremamente pequenas as populações indígenas que antes moravam em vastos territórios. Você tinha populações que viviam em áreas imensas, em que cada família podia viver autonomamente, e de repente estas famílias foram trazidas para reservas diminutas”.

“Para nós, que vivemos nas terras demarcadas, o índio que está na cidade e um dia saiu, sempre vai estar conosco. E hoje, o fato de estarmos lutando juntos por direitos iguais na vacinação só reforça esta realidade”

Homero reforça que isso mudou todo o panorama fundiário dos indígenas, em favor dos produtores rurais que passaram a ocupar estas áreas com gado e depois com soja e outros produtos. Eder acrescenta que – empurrados para as cidades – os indígenas tiveram que buscar formas de subsistência. “Uma parte fundamental para que o índio não vá para a cidade é o direito à terra tradicional. O fato de a gente estar na cidade não dá o direito de nenhum governo definir quem é índio e quem não é. Para nós, que vivemos nas terras demarcadas, o índio que está na cidade e um dia saiu, sempre vai estar conosco. E hoje, o fato de estarmos lutando juntos por direitos iguais na vacinação só reforça esta realidade”.

Resistência
Imbuídos deste sentimento de união, lideranças Terena e Guarani Kaiowá, que moram em aldeias e em centros urbanos, ocuparam o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Mato Grosso do Sul, na semana passada (28), para cobrar melhorias no atendimento e vacinação para toda a população indígena no Estado.

Eder ressalta que o descaso enfrentado pelos povos durante a pandemia revela o despreparo de quem deveria cuidar da saúde indígena. “A situação está gravíssima para nós. Não existe dentro do Dsei um plano de atuação de combate ou prevenção ao contágio de covid-19 dentro das aldeias. Vale ressaltar que a iniciativa de fazer barreiras sanitárias nos territórios indígenas, no início da pandemia, partiu de nós mesmos, das lideranças. Foi a própria comunidade que se organizou. Não tivemos planejamento nem suporte por parte do Estado”, denuncia.

No mesmo dia da ocupação do Dsei, o MPF recomendou à União que promova o cadastramento de todos os indígenas que moram em áreas urbanas de municípios sul-mato-grossenses para que sejam incluídos também no planejamento da vacinação contra a covid-19. Homero acredita que a tendência é que as decisões judiciais avancem em favor dos direitos indígenas. “A primeira ACP aqui em Campo Grande abre espaço para que esta determinação de atendimento aos povos indígenas no meio urbano ganhe mais força”.

“Nós vamos batalhar para manter viva a nossa cultura, as nossas tradições, onde quer que estejamos. Esta é uma luta constante do movimento indígena, que com certeza não pára por aqui. Somos contra o desmonte promovido neste governo, jamais iremos aceitar”

Embora celebrem cada pequena vitória, os povos seguem em alerta. “Nós vamos batalhar para manter viva a nossa cultura, as nossas tradições, onde quer que estejamos. Esta é uma luta constante do movimento indígena, que com certeza não para por aqui. Somos contra o desmonte promovido neste governo, jamais iremos aceitar”, argumenta o líder Terena.

Vírus da negligência
No Brasil, a pandemia é agravada pelo descaso do Estado e os povos indígenas estão entre os públicos mais vulneráveis. O levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mostra que já são mais de 47,5 mil indígenas infectados pela covid-19, sendo que 900 perderam a batalha contra o vírus.
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