19/10/2020

Réquiem para Marcondes Namblá Xokleng

Em 10 de janeiro de 2018, a vida do professor Xokleng, dedicada à educação de seu povo, foi cruelmente interrompida no litoral catarinense

Marcondes Namblá, mais do que professor, foi um pensador da educação entre o povo Xokleng. Foto: reprodução/Facebook

Marcondes Namblá, mais do que professor, foi um pensador da educação entre o povo Xokleng. Foto: reprodução/Facebook

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

O estridente sino da Escola Indígena Laklãnõ mal encerra o tilintar ensurdecedor e das salas de aula saem em enxurradas meninos e meninas acotovelando-se no único corredor de paredes e chão de madeira. Andam aos tropeções, em um farfalhar ansioso de vozes sobrepostas, esparramando-se no pátio de terra e grama. Passam pelo refeitório sem lembrar da merenda ainda no fogo. Ladeados pelas montanhas da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, os jovens Xokleng correm, jogam futebol, vôlei, sentam-se à sombra fria da manhã para ler, aglomeram-se sob a única e frondosa árvore disponível para comer frutas e alguns meninos se exibem para um grupo de meninas, que cochicham e riem.

Um rapaz destoa no meio da agitação atravessando-a calmamente. Magro, alto para a pouca idade e ligeiramente encurvado, caminha com os olhos sobre o sapato social preto, além de vestir jeans claro e um suéter sobre a camisa branca de botão. Ergue a cabeça para sorrisos tímidos e leves cumprimentos quando chamado por algum amigo ou amiga. Tem o olhar de quem traz dentro de si um universo denso e complexo, mas quando questionado sobre o que deseja para o seu futuro saca da introspecção uma resposta objetiva: “quero fazer na vida as coisas que meu pai fazia. O que eu gosto de fazer quando não estou na escola é lutar pelo povo indígena”. Daniel Namblá Xokleng tem 14 anos e há alguns meses perdeu o pai, o professor Marcondes Namblá Xokleng, morto a pauladas no município de Penha, litoral norte catarinense, em 1o de janeiro de 2018.

No dia 24 de junho de 2019, o assassino Gilmar César de Lima, de 24 anos, foi condenado a 21 anos e quatro meses de prisão, em regime fechado, acusado de homicídio duplamente qualificado. Para o Tribunal do Júri, que ocorreu no Balneário Piçarras (SC), Lima alegou que na madrugada do ano novo de 2018 Marcondes teria mexido com o seu cachorro. Conforme as imagens da câmeras de vigilância que registraram o crime, o professor Xokleng é golpeado mais de 20 vezes, a maioria na cabeça, com um pedaço de pau. Ao ver Marcondes esboçar um sopro de vida, Lima voltou apressado e seguiu com os golpes.

O motivo fútil piorou a situação do réu, mas conforme o assistente de acusação, Dagoberto Azevedo Bueno, pode ter acobertado a participação de mais indivíduos no crime e os reais motivos do assassinato de Marcondes Namblá. “Se analisarmos as imagens, a gente leva a pensar que foi premeditado. Logo, se foi premeditado, é possível imaginarmos que havia mais coisas por trás disso e até mais pessoas por trás da morte desse indígena”, disse à imprensa catarinense após o Júri. Para a família de Marcondes, a história contada por Lima é impensável diante de como o professor costumava se portar e por ameaças anteriores ao assassinato.

“Gostaria de descobrir quem mandou o rapaz matar o Marcondes porque sabemos que alguém mandou. Não foi por conta do cachorro”

Família de Marcondes Namblá reunida: Cleusa, a viúva, é a segunda da esquerda para a direita. Daniel, o filho que deseja seguir com a obra do pai, o penúltimo. Foto: Renato Santana/Cimi

Família de Marcondes Namblá reunida: Cleusa, a viúva, é a segunda da esquerda para a direita. Daniel, o filho que deseja seguir com a obra do pai, o penúltimo. Foto: Renato Santana/Cimi

“Os gatos dormiam com a gente, sobre o Marcondes. Ele sempre tratou bem dos animais, dos cachorros. Também não era um homem de arrumar briga. Ele ficava em casa, saía só para trabalhar. No final de semana ia pra Igreja. Trabalhava e voltava. Ficava com os meninos, ajudava em casa. Amava os filhos e fazia de tudo por eles, pela gente. Nunca surrou nenhum deles”, declara Cleusa Namblá Xokleng, viúva de Marcondes. Ao lado dela, dona Melissa, sogra do professor, mantinha uma relação afetuosa com o genro. “Era o juiz da Terra Indígena. Buscava apoiar as pessoas, ajudar. Todo mundo vinha falar com ele. Não ia no errado. Só queria fazer o certo. Tanto que era o juiz”, declara.

Ao redor da mãe e da avó, os cinco filhos de Marcondes: Erika, 15 anos, Daniel, 14 anos, Clara Elis, 12 anos, Melissa, 9 anos e Lucas, 6 anos. Em sua casa, encravada num ponto alto da aldeia Pliplatol, sobre uma área plana onde o quintal é vasto na frente da casa de madeira, Daniel está mais à vontade. Brinca com os irmãos e mostra fotos do pai. Quando ouve a mãe falar, se põe sério e pensativo. “Penso que o Marcondes contrariou pessoas de fora interessadas em fazer rinha de galo na Terra Indígena. Não foi por conta dessa história do cachorro…”, destaca Cleusa.

O professor e outras lideranças Xokleng denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF), meses antes do fatídico episódio, o assédio que vinha ocorrendo na Terra Indígena para a realização das rinhas. “Eu tenho pra mim que ele já estava ameaçado e perseguido. Quando foi denunciar já falaram… ofereceram até dinheiro, e ele não pegou. Um branco da rinha de galo, não sei quem é ao certo, veio atrás do Marcondes oferecer dinheiro pra aceitar a rinha de galo. Aí ele não aceitou o dinheiro e disse que era errado. Vieram aqui na porta de casa oferecer”, lembra dona Melissa.

Conforme testemunhas relataram à esposa de Marcondes, horas antes de ser assassinado, na manhã do dia 31 de dezembro de 2017, já no município de Penha, novamente ofereceram dinheiro ao professor para que ele liberasse as rinhas; pela derradeira vez, o indígena se negou a receber. Cleusa e dona Melissa dizem que ele estava convicto de sua posição e contava com o apoio majoritário do povo. “Gostaria de descobrir quem mandou o rapaz matar o Marcondes porque sabemos que alguém mandou. Não foi por conta do cachorro”, destaca Cleusa.

Marcondes Namblá, o primeiro da esquerda para a direita, na frente da Escola Indígena Laklaño. Foto: Antonella Tassinari

Marcondes Namblá, o primeiro da esquerda para a direita, na frente da Escola Indígena Laklaño. Foto: Antonella Tassinari

A indígena diz ter sonhado com o marido pouco mais de uma semana após o enterro, antes do aniversário de 14 anos do filho Daniel. O festejo havia sido desmarcado, o luto e o desassossego ainda estavam presentes. “Eu refletia o que seria da nossa família porque o Marcondes lutava por nós. Quando estava sem contrato na escola, trabalhava pros colonos colhendo fumo e com esses pequenos trabalhos de vender sorvete e artesanatos em Penha. Não conseguia pensar mais em nada”, diz Cleusa.

Saudades de Marcondes e incertezas quanto ao futuro. O mundo havia ruído e os pedaços estavam espalhados pelo quintal. No sonho, Cleusa estava no quarto quando ouviu a voz do marido. “Ele me disse para usar na festa o vestido que eu tinha comprado. Disse que achou bonito, mas muito longo. Eu o vestia e ia pra festa. Marcondes estava comigo”, conta. A viúva, no entanto, afirma que Marcondes não sabia do vestido porque Cleusa o comprou após a ida dele para o trabalho de virada de ano em Penha. A festa de Daniel estava desmarcada. “No sábado avisaram na Igreja que haveria uma festa pro Daniel. Fui com o vestido, como o Marcondes me pediu no sonho”.

Marcondes, para além de uma liderança política do povo Xokleng, era um intelectual indígena e professor comprometido com a educação escolar indígena, a cultura e língua de seu povo e, sobretudo, devotado em formular sobre a infância e juventude indígena

Ato em Penha (SC), dias após o brutal assassinato de Marcondes Namblá. Foto: Osmarina Oliveira/Cimi Regional Sul

Ato em Penha (SC), dias após o brutal assassinato de Marcondes Namblá. Foto: Osmarina Oliveira/Cimi Regional Sul

Marcondes: intelectual e professor

Em outubro de 2013, Marcondes Namblá era um dos alunos do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na ocasião, o professor José Ribamar Bessa Freire pediu para que os estudantes fizessem um desenho de como os indígenas são tratados no Brasil. “Ninguém podia imaginar que, quatro anos depois, o desenho seria feito com sua própria vida, isto é, com sua morte”, escreveu Bessa em sua coluna no prestigiado blog Taqui Pra Ti.

Até mesmo para um professor e pesquisador como o Bessa, que desde a década de 1960 estuda a questão e povos indígenas, sendo fundador do Porantim, imaginar que tamanha crueldade se abateria sobre um indígena, no caso um aluno próximo e querido, o Marcondes, só no mais denso pesadelo colonial que ainda não foi suficiente para tirar o Brasil deste sono perante as violências sofridas pelos povos indígenas.

O fato é que Marcondes, para além de uma liderança política do povo Xokleng, era um intelectual indígena e professor comprometido com a educação escolar indígena, a cultura e língua de seu povo e, sobretudo, devotado em formular sobre a infância e juventude indígena.

Em abril de 2015, Marcondes apresentou a monografia de conclusão de curso onde pesquisou sobre a prática dos banhos nos rios “mostrando como a construção da Barragem Norte transformou o cotidiano das crianças Laklãnõ e prejudicou as brincadeiras infantis que usavam vocabulários específicos na língua nativa e começam a cair no esquecimento. Preocupado com o destino da língua materna, Namblá estava atento para a circulação de saberes tradicionais e as dimensões identitárias configuradas pelo território”, seguiu Bessa em seu texto.

Em novembro de 2017, Marcondes encantou o público do III Seminário Crianças e Infâncias Indígenas com a apresentação dos resultados de sua pesquisa. Toda a sua atenção estava voltada para a temática. Na Escola Indígena La Klãnõ, desempenhava a função coordenador; ensinava não apenas aos estudantes, mas também aos professores.

“Marcondes era um coordenador, orientava os professores e professoras. O que ele mais gostava era a questão da língua. Tinha vários projetos e ideias nesse lado. A preocupação dele era com a cultura. Independente de horário, ficava o dia inteiro na escola”

Ato em Penha (SC), dias após o brutal assassinato de Marcondes Namblá. Foto: Osmarina Oliveira/Cimi Regional Sul

Ato em Penha (SC), dias após o brutal assassinato de Marcondes Namblá. Foto: Osmarina Oliveira/Cimi Regional Sul

“Marcondes era um coordenador, orientava os professores e professoras. Ajudava nos projetos e na orientação da língua, de ajudar a como pronunciar, escrever, a gramática da língua. O que ele mais gostava era a questão da língua. Tinha vários projetos e ideias nesse lado. A preocupação dele era com a cultura. Independente de horário, ficava o dia inteiro na escola”, afirma a professora Jessica  Pripra Xokleng.

A sala de aula em que a indígena leciona é repleta de desenhos, imagens e cores. Todos feitos pelos alunos e alunas. “Voltar para o ano letivo depois da morte do Marcondes foi muito difícil. Muito difícil. Ele ficou afastado um tempo da escola, estudando, e voltou em 2017. Se tornou uma referência aqui. A Semana da Cultura, por exemplo, foi muito sofrida esse ano (no mês de abril) porque era uma semana sagrada pro Marcondes. Sentimos a falta dele, sempre”, destaca Jessica.

A professora dimensiona a figura de Marcondes para além das paredes da escola. Como juiz da Terra Indígena, o indígena era um conselheiro da comunidade e com sabedoria administrava a função a ele encarregada. A Xokleng destaca a generosidade de Marcondes na transmissão do conhecimento que ele tão arduamente buscava.

“Tudo o que eu sei da cultura e da profissão eu aprendi com ele. Foi meu colega de faculdade, de trabalho. Uma inteligência e uma ousadia… tá sendo difícil. Nos perguntamos: como o Marcondes resolveria isso? Qual seria a opinião e análise dele? Igual a ele não tem. Mas o Marcondes cresceu como liderança porque ele buscava conhecimento, aperfeiçoamento e estudo”, finaliza.

Bessa segue recordando: “os depoimentos de professores e colegas ressaltam a jovialidade e o entusiasmo de Namblá pela vida. Ele era dono de uma “alegria contagiante que nos passava com sua viola e cantorias de sempre na UFSC” nas palavras enlutadas de sua colega, a guarani Kerexu Yxapyry. Ele cantava e encantava”. Uma das paixões de Marcondes era tocar violão e cantar.

Daniel lembra de uma das histórias que o pai contava: “Ele falava as histórias de quando era pequeno, que era obediente, aprendeu a tocar violão e depois cresceu. Cortava lenha para se virar. Seguiu assim porque ele fazia de tudo pra tratar a gente (esposa e demais filhos)”. Marcondes, segue Daniel, “nunca deixou a gente ir pra escola dos branco (sic)”.

Um outro traço de Marcondes é que ele acreditava de forma intransigente no projeto de escola indígena, no currículo diferenciado e nas práticas pedagógicas como parte do ensino da cultura para crianças e adolescentes.

 

Reportagem originalmente publicada no jornal Porantim 415
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