18/10/2020

Entenda o caso de repercussão geral no STF que pode definir o futuro das terras indígenas do Brasil

No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra

Ato em defesa dos direitos indígenas em frente ao STF em 2017. Foto: Apib

Ato em defesa dos direitos indígenas em frente ao STF em 2017. Foto: Apib

Por Mobilização Nacional Indígena

Num contexto em que ataques do governo federal ameaçam os direitos indígenas e, no legislativo, projetos e bancadas contrários aos povos indígenas se sobressaem, os olhares e as esperanças de garantir que os direitos constitucionais dos povos originários não sejam desfigurados se voltam ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a decisão tomada neste julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.

A Suprema Corte poderá, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas no país e garantir um respiro às comunidades que se encontram, atualmente, pressionadas por poderosos setores econômicos.

Junto ao mérito processo de repercussão geral que discutirá a demarcação de terras indígenas no Brasil, a Corte Suprema discutirá se mantém ou não a medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, em maio deste ano, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da AGU, instrumento usado para institucionalizar o marco temporal como norma no âmbito dos procedimentos administrativos de demarcação.

Pelo menos 27 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos da Casa Civil e do Ministério da Justiça para a Funai com base no Parecer 001. A medida cautelar é um procedimento usado pelo Judiciário para prevenir, conservar ou defender direitos.

Também no âmbito do processo de repercussão geral, do qual é relator, Fachin suspendeu todos processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de demarcações de terras indígenas até o final da pandemia de covid-19.

Entenda o que se discutirá e o que está em jogo neste julgamento.

Do que trata o RE 1.017.365?
Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?
O que está em jogo?
O que é marco temporal?
Como está o julgamento?
Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?
Os povos indígenas participam do julgamento?

Do que trata o RE 1.017.365?

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional.

A terra em disputa, onde vivem também indígenas dos povos Guarani e Kaingang, é parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.

Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?

Em decisão publicada no dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.

Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.

O que está em jogo?

No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Do outro lado, há uma proposta mais restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”. Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e que igualmente restringem a posse e o uso fruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.

O que é marco temporal?

O marco temporal é uma tese que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.

Além disso, essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988”.

Como está o julgamento?

Atualmente, o julgamento do caso de repercussão geral encontra-se empatado e com previsão de ser retomado pelo STF no dia 7 de junho de 2023. A data foi anunciada publicamente pela presidente da Corte, Rosa Weber. Em um voto histórico, no dia 9 de setembro de 2021, o relator do processo, ministro Edson Fachin, posicionou-se a favor dos povos indígenas e contra a tese inconstitucional do marco temporal.

O segundo ministro a votar, Kássio Nunes Marques, posicionou-se contra os direitos constitucionais indígenas e a favor da tese ruralista do marco temporal, abrindo uma divergência com Edson Fachin. Em seguida, o ministro Alexandre de Moraes apresentou um pedido de vista, suspendendo o julgamento.

Até agora, o STF já realizou seis sessões do julgamento do caso. Antes dos votos, ocorreram as sustentações orais das partes do processo, incluindo a dos advogados do povo Xokleng; da Advocacia-Geral da União (AGU), representando a União; e dos 34 amici curiae ou “amigos da Corte”, sendo 21 deles favoráveis aos povos indígenas e 13 contrários, representando entidades ruralistas.

Após as manifestações dos amici curiae, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, também se posicionou, a favor da manutenção da posse dos Xokleng na área em disputa e da validade da demarcação.

No dia 11 de outubro de 2021, Moraes devolveu o processo, que ficou novamente apto a ser julgado. Os povos indígenas passaram a reivindicar incessantemente que o julgamento fosse retomado o quanto antes. Em 2022, o caso chegou a ser incluído na pauta, mas foi novamente adiado. Já em 2023, a presidente da Suprema Corte, Rosa Weber, anunciou que incluirá o julgamento na pauta do dia 7 de junho.

Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?

Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rechace definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.

As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.

Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar o esbulho e as violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.

Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho possessório a terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.

Além disso, há referências de povos indígenas isolados ainda não reconhecidas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, pois sequer sabemos onde eles estão.

Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.

Os povos indígenas participam do julgamento?

A participação dos povos indígenas no julgamento de repercussão geral que vai determinar o futuro de seus direitos constitucionais já pode ser considerada histórica. O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria.

O povo Xokleng, diretamente afetado pelo jugalmento, é parte do processo, e vem exercendo seu direito de acesso à Justiça, assegurado aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988. Seus advogados fizeram sustentação oral em defesa de seu direito originário à demarcação de sua terra.

Além disso, povos e organizações indígenas também participam do processo a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte”. Por meio desse mecanismo, pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema podem contribuir subsidiando o tribunal com informações.

Oito povos e organizações indígenas participam do processo como amici curiae, e quatro advogados e advogadas indígenas fizeram sustentações orais marcantes no julgamento: Eloy Terena, Samara Pataxó, Ivo Macuxi e Cristiane Soares Baré.

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