Desalojados no próprio território: a Barragem Norte e o deslocamento forçado do povo Xokleng
A construção da barragem no rio Itajaí, iniciada durante a Ditadura Militar, ignorou a existência dos Xokleng e alagou grande parte do seu território – inclusive a aldeia onde viviam
A Barragem Norte armazena 357 milhões de metros cúbicos de água. É a maior estrutura do tipo no país e construída para evitar cheias em municípios do Vale do Itajaí (SC), caso de José Boiteux e Ibirama seguindo até Blumenau. Por volta de 1,2 milhão de habitantes são beneficiados pela barragem, que entre os meses de junho, julho e agosto retém uma enxurrada com potencial de destruir tudo o que estiver pela frente abaixo da cota de inundação.
O que significa segurança para milhares de pessoas se converte em tragédia para o povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama-La Klanõ. Pelo território tradicional passa o rio Itajaí. Na área onde ficava a antiga aldeia Sede, a única em que o povo vivia até a construção do empreendimento, um trecho do rio foi guilhotinado pelo paredão de concreto da Barragem Norte.
Do início das obras, durante a ditadura militar, no final da década de 1970, até os dias de hoje, o Governo do Estado de Santa Catarina nunca apresentou sequer o estudo de impacto ambiental da barragem. Os programas de mitigação tampouco foram finalizados.
As consequências foram dissociativas para os Xokleng por três fatores: reduziu drasticamente as áreas planas e boas para a agricultura, também de moradia, degradando o rio, produzindo cheias no inverno, que inundam uma outra parte importante do território, e impondo estiagem nas outras estações, matando os peixes; a barragem e sua zona de impacto estão dentro dos parcos 14 mil hectares remanescentes de todo o esbulho promovido no decorrer do século XX no território tradicional Xokleng; por fim, os indígenas partiram de uma aldeia formando outras oito, enfraquecendo a agência do povo e sua organização social, sendo levados ao deslocamento interno forçado – e até os dias atuais essa perambulação ainda não acabou.
Por isso os Xokleng reivindicaram e a Fundação Nacional do Índio (Funai) demarcou 37 mil hectares (com os 14 mil inclusos). A Procuradoria do Governo do Estado de Santa Catarina foi à Justiça para cancelar a demarcação. O processo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), tendo como base a tese do Marco Temporal, convertendo-se em um caso de Repercussão Geral.
“Aqui vivemos nas beiradas dos barrancos e sabemos a hora de ir embora quando as rachaduras começam a abrir as paredes”
O interlúdio que você acaba de ler atende ao objetivo de lembrar aos leitores as razões que levam à situação ilustrada pelas declarações do cacique geral do povo Xokleng, Tucum Gakran. “Parte do povo vive tendo que andar de um lado para o outro, como é o caso do povo da (aldeia) Figueira, que busca terrenos mais firmes para construir suas casas. Já perderam casas, né, que cederam junto com o barranco, racharam no meio. Acontece até hoje. Outros (Xokleng) se mudaram para o Bonsucesso, outros pro lado de Victor Meirelles. (Há ainda) Os que acabaram indo pros terrenos que estão dentro dos 37 mil, mas seguem ocupados por não indígenas. Locais de conflitos”, explica cacique Tucum.
Outros deslocados Xokleng vivem em cidades como Presidente Getúlio e Blumenau. Trabalham em malharias, frigoríficos e madeireiras, muitas vezes as mesmas que usufruem do desmatamento e da plantação de vegetação exógena, atendendo demandas do mercado madeireiro, nas florestas que os Xokleng buscam preservar na Terra Indígena.
“Os terrenos para plantar são poucos e pequenos. Uns até cultivam pepino, beterraba, feijão, mas é pouquinho. Mal alimenta a família. Não adianta assim. Então muitos Xokleng aqui da terra saem de madrugada para trabalhar nas cidades e voltam no final do dia. Se você caminhar pelas casas a essa hora, vai ver que estão só as crianças e uns poucos adultos cuidando. No geral as avós. Sem praticar nossa agricultura, sem pescar, sem andar livremente, sem ter condições de fazer as casas… isso vai enfraquecendo, obrigando a esses deslocamentos”, diz o cacique. Em linhas gerais, os Xokleng estão cercados por madeireiros, plantações de fumo e confinados em 14 mil hectares que dividem com uma barragem e todo o raio de seu impacto.
“Se acontecer de a barragem não segurar, perdemos quase tudo nesses 14 mil hectares”
Conforme o cacique Tucum, os Xokleng gostariam que “as autoridades olhassem com mais atenção porque nós só temos esse pedacinho de terra, onde fomos pacificados, na beira do rio, e que não tem como sobreviver aqui se a demarcação não for confirmada”. A liderança do povo mostra áreas de erosão aparente. “Aqui pra trás da minha casa caiu uma barreira de 10 metros. Quando tem a cheia do rio, a água chega perto e depois vai secando e descendo… deixando a terra dos barrancos desmoronando aos poucos”, revela.
Em junho de 2014, nem mesmo a Barragem Norte parecia capaz de conter a água. “Todo dia íamos lá olhar e tínhamos a certeza de que ia inundar, ia ultrapassar o paredão. Foi por muito pouco. Se acontecer de a barragem não segurar, aí perdemos quase tudo nesses 14 mil hectares”, conta. Igreja, casas, centro de convivência, escola: tudo iria desaparecer em poucos minutos.
Justamente por isso os Xokleng ainda brigam na Justiça Federal pela realização dos estudos de impacto ambiental. O processo ficou anos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) antes de seguir para o STF, que devolveu a papelada à Justiça Federal de Blumenau sem determinar um desfecho para o imbróglio. A reivindicação dos indígenas segue em alguma gaveta da burocracia judicial, sem encaminhamento.
“Realizar esses estudos obrigaria o governo a tomar providências, que não são poucas. Desde a chamada Greve de 1991, o povo Xokleng tem direito à mitigação, que quase 30 anos depois ainda não foi concluída. Então por isso esse estudo não sai”, analisa Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul. “Aqui vivemos nas beiradas dos barrancos e sabemos a hora de ir embora quando as rachaduras começam a abrir as paredes”, lamenta o cacique Tucum.
“O rio tá acabado e trouxe muita desavença entre a comunidade. Antes era tranquilo, se plantava, tinha peixe, vendíamos para fora. Vivíamos da terra. Hoje o povo vive nesses frigoríficos, sem espaço, com a casa caindo na cabeça”
Programa Ibirama
A chamada greve de 1991 foi uma ocupação realizada pelos Xokleng ao canteiro de obras levantado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) na Barragem Norte. O objetivo era realizar reparos. Já os indígenas queriam a indenização pelos prejuízos irreparáveis que a barragem levou a eles. Deste momento de insurgência do povo é criado o Programa Ibirama, em 1992.
Casas, escola de 285 metros, estradas, ponte, quadras e recursos financeiros fazem parte do programa. “Achava que hoje haveria um investimento de 2 milhões, mas 200 mil por ano, em dez anos, como eles querem, não dá para a comunidade inteira. Governo não assumiu os impactos da barragem”, afirma Brasílio Priprá.
O indígena explica que hoje, além da implementação dos pontos do programa, os Xokleng reivindicam um estudo de impacto da barragem. “O governo nos procura sempre porque quer fazer o canal extravasor, mas os homens lá sabe que se fizerem vão ter ônus pra pagar, vai ter prova de que a barragem gerou impactos. Então buscam outros caminhos”, diz Brasílio.
“A barragem estraçalhou a comunidade… não houve aviso: de repente estava cheio. Aí uma turma se foi pra um lado, outra pra outro… o rio tá acabado e trouxe muita desavença entre a comunidade. Antes era tranquilo, se plantava, tinha peixe, vendíamos para fora. Vivíamos da terra. Hoje o povo vive nesses frigoríficos, sem espaço, com a casa caindo na cabeça”, conclui.
“Sempre vivemos aqui. Fomos sendo espremidos pra cá pelos colonos e empresas madeireiras e depois a barragem. O Estado nunca demarcou as nossas terras, nunca terminou isso. Tinham os marcos, mas os colonos caçaram e esconderam. A gente não tá pedindo coisa que não é nossa”
Os Xokleng sabem que o processo da Terra Indígena Ibirama-Laklaño no STF pode ser definitivo para tantas outras demarcações questionadas judicialmente sob a tese do Marco Temporal, uma interpretação restritiva da Constituição Federal estabelecida na ideia de que o povo indígena só pode ter o território demarcado se comprovar que em 5 de outubro de 1988 estava ocupando a terra ou brigando judicialmente por ela. “Queremos uma terra que era nossa, mas que o governo do estado e o chefe de posto (do SPI) vendeu para os colonos. Alguns colonos dizem que invadiram e que depois conseguiram a documentação. Empresas também fizeram isso. Tudo dentro dos 37 mil original. Não estamos pedindo também pra ampliar, mas pedindo o que é nosso. Não é verdade que não estamos pedindo terra que não é nossa”.
Cacique Tucum segue com o apelo: “A gente sempre morou aqui, sempre vivemos aqui. Fomos sendo espremidos pra cá pelos colonos e empresas madeireiras e depois a barragem. O Estado nunca demarcou as nossas terras, nunca terminou isso. Tinham os marcos, mas os colonos caçaram e esconderam. A gente não tá pedindo coisa que não é nossa”.
O cacique Aguinaldo Vomblê espera a esposa numa tarde ensolarada e fria na aldeia Barragem. Sentado na varanda de sua casa, olha na direção da Barragem Norte. Depois de algum tempo de reflexão, sistematiza: “Se tornou um problema maior, com o decorrer dos anos. As casas na aldeia Figueira estão imprestáveis. Então tem isso do que não foi cumprido e o que foi cumprido está em situação ruim. Nada do protocolo de intenções, dos programas de mitigação: nada funcionou”.
Ser cacique, entre os Xokleng, significa carregar nas costas o peso da barragem. “A comunidade espera uma resposta, espera que o cacique encaminhe um jeito de resolver. Vamos à Funai, fazemos reunião e nada acontece. A liderança fica enfraquecida, o povo descrente. Outros caciques passaram por isso”, analisa.
Além do procedimento demarcatório, os Xokleng também peregrinam há duas décadas atrás da regularização dos 724 hectares doados como parte da compensação pela barragem.
“Nós queremos hoje que tenha documento pra essa área porque os brancos vende terreno, lotes, dizendo que é deles. E não é! A maioria dos terrenos foi indenizado! Mas aí chega gente nova, sem saber de nada, compra de quem recebeu indenização e diz que comprou e que só sai se for indenizado”, explica Ecran Xokleng, que foi cacique entre 2002 e 2008.
Como ainda não há escritura definitiva, os ocupantes não indígenas se aproveitam da ausência de comprovação cartorial de que as terras são dos Xokleng. A Funai alega que toda a documentação já foi enviada para a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e aguarda a conclusão do procedimento.
“Por conta da demora, estamos com o risco de perder um recurso destinado à construção de moradias. Como é recurso público, precisa ter o documento comprovando que essa terra é dos Xokleng”, explica cacique Aguinaldo. Moradias importantes para famílias que ficaram sem teto após as casas construídas pelo plano de mitigação da barragem se converterem em ruínas de tijolos e ferro.
Enquanto isso, os Xokleng são obrigados a conviver e administrar uma espécie de armistício com ocupantes não indígenas hostis. “Dizem que plantam, que fazem isso e aquilo, mas o interesse é a madeira. Tem um aqui que já foi indenizado. Já tinha que ter saído, mas está lá ainda num terreno que já foi indenizado. Arranca madeira, não deixa os Xokleng irem pescar, ameaça”, denuncia cacique Aguinaldo.
“Perdemos muita coisa com a Barragem porque afetou todo o território. Quem plantava e vivia na beira do rio, que era terra boa, com muitas árvores e boa de dar comida, acabou porque enche e perde tudo”
Para Ecran, um ancião com memória afiada, a grande causa de tais desgraças é a Barragem Norte. “Perdemos muita coisa com a Barragem porque afetou todo o território. Quem plantava e vivia na beira do rio, que era terra boa, com muitas árvores e boa de dar comida, acabou porque enche e perde tudo. Quando não enche, há parte do rio que fica sem passar uma canoa de seco. Às vezes enchia sem dar tempo de sair… aí índio ficava ilhado e desesperava pra voltar nadando e morria. Animais de criação morriam… quando enche é muito rápido, é poucas horas e dependendo do lugar a comunidade fica ilhada”. Os não indígenas, claro, ocupam as terras boas e em quase nada afetadas pela barragem.
A aldeia Palmeira, por exemplo, tem áreas que ficam debaixo da água. Há trechos em que o isolamento só termina quando a água vaza.
“Os antigos que clarearam pra nós agora, nossa terra não era só 14 mil, mas 37 mil. Começamos a descobrir isso. Descobrimos que o chefe do SPI vendeu terra da gente e ela foi diminuindo. Daí hoje a gente acha marco velho no mato, há os cemitérios na Serra da Abelha. Temos até cemitérios fora dos 37 mil. O problema é que não vemos na Justiça algo que olha pra isso, não vemos uma Justiça que indenize quem tem que ser indenizado, mas que faça com que a gente fique na terra que sempre foi nossa”, diz cacique Aguinaldo.