20/08/2020

Após normativa da Funai, fazendeiros certificam 58 propriedades sobre terras indígenas na Bahia

Terras Indígenas Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, do povo Pataxó, são as mais afetadas pela Instrução Normativa 09; certificações também atingem territórios Tupinambá

Manifestação de povos indígenas do sul e extremo sul da Bahia em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Manifestação de povos indígenas do sul e extremo sul da Bahia em Brasília. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

As certificações de propriedades privadas sobre as terras indígenas do sul e extremo sul da Bahia aumentaram consideravelmente após a publicação da Instrução Normativa (IN) 09/2020 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Entre 22 de abril, data em que a medida foi publicada, e o dia 10 de agosto, 58 propriedades privadas foram certificadas sobre terras indígenas dos povos Pataxó e Tupinambá.

As informações foram obtidas com base no banco de dados públicos do Sistema de Gestão Fundiária do Incra, o Sigef. As Terras Indígenas (TIs) mais afetadas são as vizinhas Barra Velha do Monte Pascoal, com 41 certificações sobrepostas, e Comexatibá, com um total de dez certificações aprovadas após a publicação da instrução normativa. Ambas as terras pertencem ao povo Pataxó e ficam localizadas nos municípios de Porto Seguro e Prado.

Na TI Barra Velha do Monte Pascoal, identificada e delimitada pela Funai com 52.748 hectares, as parcelas certificadas pelo Incra somam 9.148 hectares – a maioria integralmente sobreposta à terra indígena, que é uma revisão dos limites da TI Barra Velha, demarcada na década de 1980 com 8.627 hectares.

Desde que a antiga demarcação foi feita, os Pataxó lutam pela correção dos limites da área, indicando que grande parte do seu território tradicional ficou de fora da primeira delimitação. A reivindicação dos indígenas foi reconhecida pela Funai em 2008, com a publicação do relatório circunstanciado da terra indígena. As fazendas certificadas pelo Incra sobrepõem-se apenas à área da nova demarcação, que ainda não está regularizada.

No caso da TI Comexatibá, com 28.077 hectares também já identificados e delimitados pela Funai em 2015, as dez certificações sobrepostas ao território tradicional e aprovadas após a publicação da normativa somam um total de 2.296 hectares.

“Essas certificações de fazendas são muito preocupantes para a gente”, afirma Mandy Pataxó, liderança da aldeia Mucugê, na TI Comexatibá. “Porque além dessa sobreposição pesada em cima do nosso território, que vem degradando e destruindo nossa área, a gente vê que eles [fazendeiros] têm se fortalecido, especialmente nesse momento da covid-19, em que as atenções estão focadas para isso e o governo tem feito ações contrárias aos povos indígenas”.

Mandy explica que nove aldeias Pataxó ocupam, hoje, cerca de dois mil hectares da TI Comexatibá. “Na outra parte do território, temos sobreposição com o Parque Nacional do Descobrimento, Projetos de Assentamento Rurais e o latifúndio, que são os fazendeiros. Fora isso, existe a especulação imobiliária por parte do setor hoteleiro, porque temos mais de 23 quilômetros de praia dentro do território”.

Passe o mouse sobre as terras indígenas no mapa para ver informações sobre os territórios. Clique nas propriedades para ver informações sobre as certificações.

Corrida por certificações

Antes da edição da IN 09 pela Funai, havia apenas três certificações do Sigef incidentes sobre terras indígenas na Bahia: duas na TI Comexatiba, anteriores à publicação do relatório de identificação e delimitação do território pela Funai, e outra, de 2016, apenas parcialmente sobreposta à TI Caramuru/Paraguassu, já regularizada.

Havia também outras 15 propriedades certificadas entre 2008 e 2013 pelo Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI), antecessor do Sigef, em sobreposição com as TIs Caramuru/Paraguassu, Tumbalalá, Tupinambá de Olivença, Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá.

Logo após a publicação da normativa da Funai, entretanto, as certificações de fazendas sobre terras indígenas do estado explodiram. Foram 35 apenas na semana em que a medida foi publicada, entre 22 e 30 de abril, e outras oito na semana seguinte, nos dias 5 e 6 de maio.

Além das duas terras do povo Pataxó, entre a publicação da IN 09 e o final de junho foram certificadas três propriedades sobre a TI Tupinambá de Belmonte e uma sobre a TI Tupinambá de Olivença. Identificadas e delimitadas, ambas as TIs aguardam a publicação da portaria declaratória pelo Ministério da Justiça.

Em 2016, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a validade do procedimento demarcatório da TI Tupinambá de Olivença. O mesmo ocorreu com a TI Barra Velha do Monte Pascoal, cuja demarcação foi questionada judicialmente e validada pelo tribunal.

Apesar disso, os processos das duas terras foram devolvidos pelo Ministério da Justiça para a Funai, em 2019, com base no Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), atualmente suspenso pelo STF. A movimentação foi questionada pelo MPF.

O cacique Renato Ãtxuab Raiky, da aldeia Boca da Mata, na TI Barra Velha, manifesta preocupação com a paralisação da demarcação e as certificações de fazendas sobre a terra indígena. Já são cerca de trinta anos de luta pela revisão da demarcação, explica ele.

“O território Barra Velha realmente é do povo Pataxó. Temos nossos avós, bisavós, os grandes guerreiros que vinham lutando durante anos por esse território. É de muito tempo que vem a luta por essa terra, que é dos nossos filhos, netos e bisnetos”, afirma o cacique.

A aldeia Boca da Mata fica dentro da primeira delimitação da terra indígena. Apesar de sua aldeia não ser diretamente afetada pelas certificações de propriedades privadas, o cacique defende a tradicionalidade de todo o território em processo de demarcação e chama atenção para o crescimento da população Pataxó na área.

“Aqui tem uma população muito grande, com quase 20 mil pessoas, e vem crescendo a cada dia. Precisamos realmente dessa outra parte do território, para o futuro de nossos filhos e o futuro de nossa comunidade, a terra onde possamos usufruir dela, plantar, colher, fazer nossas moradias”, afirma.

Com a falta de espaço e a demora na conclusão do processo demarcatório, os Pataxó realizaram ocupações e retomadas dentro da área ainda não regularizada, ampliando o território sob posse do povo – e sofrendo também com o acirramento dos conflitos.

“Aqui o conflito às vezes é muito grande. Ultimamente, viemos sendo ameaçados pelos fazendeiros da região. Vem essa Funai ruralista, agora, para entregar a terra para os fazendeiros. Uma terra que não é dos fazendeiros, é dos indígenas, dizendo que nessa região não existe índio. Isso não é verdade, é uma mentira que está sendo dita por eles”, indigna-se.

A instrução normativa

Publicada pela presidência da Funai no dia 22 de abril de 2020, a IN 09/2020 vem sendo amplamente questionada pelos povos indígenas, organizações indigenistas e pelo próprio Ministério Público Federal (MPF).

A normativa libera a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas ainda não homologadas, tanto por meio da emissão de uma Declaração de Reconhecimento de Limites, a ser requerida pelos proprietários diretamente à Funai, quanto por meio do Sigef, gerido pelo Incra.

Com a medida, passa a ser possível certificar propriedades sobre terras indígenas que ainda se encontram em processo de identificação pela Funai ou que já estejam identificadas, declaradas ou com portarias de restrição de uso, modalidade utilizada para impedir a circulação de não indígenas em áreas onde foi constatada a presença de indígenas isolados.

Na prática, 242 terras indígenas nestas diferentes situações administrativas são diretamente afetadas pela medida, segundo dados da própria Funai. A normativa publicada sob o governo Bolsonaro também facilita a apropriação privada de outras 528 terras que são reivindicadas pelos povos indígenas, mas ainda não possuem providências para seu reconhecimento, segundo dados do relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Questionado, o Incra não respondeu, até o fechamento da reportagem, quantas terras indígenas existem na base do Sigef e quais são as terras da Bahia que estão disponíveis para confrontação no sistema. A Funai não possui informações públicas sobre as declarações de reconhecimento de limites emitidas pelo órgão.

Para MPF, a Instrução Normativa 09 acentua “a vulnerabilidade dos povos indígenas em territórios cujos processos de demarcação ainda não finalizaram, muitas vezes por omissão da própria Funai”

Ações do MPF e suspensão nos estados

O MPF obteve, na justiça federal, decisões liminares suspendendo os efeitos da IN 09/2020 sobre as terras indígenas nos estados de Mato Grosso, Amazonas e Acre. O mesmo ocorreu, por determinação do TRF-1, em 16 municípios da região de Marabá (PA).

As decisões determinam a inclusão, tanto no Sigef quanto no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), de todas terras indígenas excluídas pela normativa da Funai – que também deve levá-las em consideração na emissão de Declarações de Reconhecimento de Limites a particulares.

No Acre, o prazo para Funai e o Incra cumprirem a decisão foi de 15 dias; no Amazonas, 72 horas, sob pena de multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento. Além dos estados em que já obteve decisões favoráveis, o MPF também ingressou com ações civis públicas contra a instrução normativa em outras unidades da federação, como o Paraná.

Ainda no mês de abril, 29 procuradores do MPF em 23 estados recomendaram à Funai que revogasse a IN 09. A recomendação salientava que a medida aprofundaria os conflitos pelo acesso à terra e acentuaria “a vulnerabilidade dos povos indígenas em territórios cujos processos de demarcação ainda não finalizaram, muitas vezes por omissão da própria Funai”.

Sem que a recomendação fosse atendida pela Funai, diversas procuradorias do MPF vêm buscando na Justiça a suspensão dos efeitos da normativa.

Segundo informações do procurador do MPF em Teixeira de Freitas, a procuradoria da região que abrange os territórios Pataxó está reunindo informações sobre a situação nestes territórios e já fez uma série de pedidos de informações à Funai, ao Incra e a cartórios, para decidir quais providências irá tomar a respeito do tema.

Aldeia Gurita, na TI Comexatibá. Foto: Mandy e Ingrid Ãgohó Pataxó

Aldeia Gurita, na TI Comexatibá. Foto: Mandy e Ingrid Ãgohó Pataxó

Cadastro Ambiental Rural

Um dos pontos elencados pelo MPF na Ação Civil Pública contra a IN 09 no Amazonas é o fato de que registros como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), apesar de meramente declaratórios, acabam embasando decisões de reintegração de posse contra as comunidades indígenas que reivindicam a demarcação de áreas ainda não atendidas pela Funai. A integração entre o Sicar e o Sigef, argumenta o MPF, pode servir para reforçar essa situação de insegurança, além de incentivar “a grilagem de terras e os conflitos fundiários”.

Atualmente, dados públicos indicam a existência de pelo menos 551 imóveis cadastrados no CAR com sobreposição a nove terras indígenas no sul e extremo sul da Bahia. As TIs Tupinambá de Olivença, Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal acumulam a maioria dos cadastros, com 208, 135 e 155 registros, respectivamente, incluídos imóveis e assentamentos rurais.

Embora estes cadastros sejam anônimos, é possível verificar que muitos dos imóveis encontram-se sobrepostos às parcelas certificadas pelo Sigef.

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