Levantamento mostra aldeias em quarentena, dificuldades alimentares e sanitárias, além da morosidade do governo
São seis casos de indígenas que testaram positivo para a Covid-19 no país e outros dois que foram a óbito. Aldeias temem proliferação
Com poucas informações e sentindo-se desamparadas pelo governo federal, levantamento da Swiss Indigenous Network (SIN) mostra que de 19 aldeias pesquisadas no Brasil, oito decidiram se fechar em quarentena não permitindo a entrada ou a saída de pessoas para evitar que a Covid-19 se alastre. As demais aldeias, com dificuldades estruturais variadas, mantêm saídas esporádicas para a busca por auxílio do Poder Público, medicamentos e comida.
A pesquisa foi realizada por formulário, preparado para ser preenchido pelas lideranças indígenas, e enviado por celular ou email. Os dados foram recebidos entre os dias 24 e 27 de março, vindos de 19 aldeias de nove estados diferentes e das cinco regiões do Brasil, tanto de áreas rurais quanto urbanas. O Coletivo Taoca colaborou com o trabalho realizado pela SIN. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) irá acrescentar as aldeias da pesquisa em seu próprio levantamento. Outro esforço da SIN tem sido o de viabilizar cestas básicas, a partir de produtores locais, para as aldeias que participaram da pesquisa.
São seis casos de indígenas que testaram positivo para a Covid-19 no país e outros dois que foram a óbito. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não contabiliza as duas mortes porque tratam-se de indígenas em contexto urbano. Contrariando orientação do Ministério Público Federal (MPF), o órgão decidiu incluir nos boletins epidemiológicos apenas os casos de indígenas que o governo entende de forma particular como “aldeados”.
“Em sua maioria, as aldeias estão fechadas sem permissão para que pessoas saiam ou entrem, de forma a proteger os seus moradores. Por este mesmo motivo, as famílias encontram-se em situação de extrema necessidade e fome, pois muitos trabalhavam foras das aldeias como artesãos, trabalhadores informais ou em extrativismo”, diz trecho do relatório final da análise.
Se constatou que mesmo as aldeias que produzem a própria alimentação estão com dificuldades e não conseguem cultivar ou caçar para o consumo interno. Os indígenas ouvidos justificaram que devido às secas e condições climáticas desfavoráveis o clico da terra, das águas e a mobilização de animais na mata sofreram mudanças desfavoráveis às aldeias neste período.
“Sem poder gerar renda, os moradores das aldeias não conseguem comprar o básico para a sua sobrevivência: alimentos e produtos de higiene. Ao mesmo tempo, sentem-se abandonados pelos serviços públicos e/ou demais organizações de apoio às comunidades indígenas”, diz trecho da análise
Ocorre que os indígenas acabam obrigados a ir às cidades, quando já não as habitam, em busca da subsistência. Sem máscaras ou produtos de desinfecção, tornam-se potenciais vetores do vírus As lideranças afirmam que necessitam de doações de alimentos não perecíveis, produtos de higiene e limpeza, além de recursos financeiros, já que as famílias estão sem sua fonte de renda.
“Importante ressaltar que este curto documento apresenta um primeiro levantamento, por isso não é possível considerar que este resumo seja uma fotografia completa da situação indígena no Brasil. Este é apenas uma síntese de dados colhidos, sendo que cada aldeia possui suas particularidades e demandas individuais”, destaca outro trecho da pesquisa. O retrato, porém, não escapa da realidade.
Na semana passada, a Sesai anunciou o envio de 6.400 kits de testes para a Covid-19 para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Estima-se que o contágio entre os povos indígenas pode ser maior do que o registrado porque em muitos casos indígenas com sintomas sequer foram testados. O levantamento mostra que o quadro vem desde março.
“Quando perguntamos sobre casos de Covid19 nas aldeias, apesar da maioria responder a inexistência, 6 aldeias disseram não saber. A Aldeia Sede/itwuaçu/pino’a/ypydhô, no município de Santa Luzia do Pará (PA), descreveu a ocorrência de 9 casos suspeitos com sintomas gripais, 3 casos com recuperação completa, 9 com quadro clínico e 6 apresentando uma evolução favorável”.
Principais necessidades
Das 19 aldeias da amostra, 17 necessitam de alimentos listados em uma cesta básica, além de proteínas de origem animal. Mesma quantidade que alega a falta de produtos de higiene, sendo que em uma delas a comunidade diz que não há água nas torneiras para a realização da assepsia contra a propagação do vírus. Não há nestas aldeias desde produtos de limpeza passando por sabão, álcool e máscaras chegando a produtos de higiene pessoal, como escova de dentes e absorventes.
Problemas relacionados a recursos financeiros afetam 15 das 19 aldeias levantadas. Sem os recursos habituais para compra de cestas básicas e itens emergenciais (produtos de higiene, medicamentos), muitas aldeias têm apelado para campanhas online de doações para as famílias sem possibilidade de renda.
No caso das aldeias que estão na região Sul, o período de pandemia começa a avançar para o inverno. Agasalhos, cobertores e erva para o chimarrão são os itens mais necessitados para enfrentar a temperatura que aos poucos começa a cair. Os recursos financeiros são essenciais também para custear o deslocamento e transporte (como, por exemplo, ao posto de saúde ou para efetuar compras para a aldeia), além do tratamento de saúde que muitas vezes acontece sem a ajuda da Sesai.
Se nas cidades os não indígenas estocam alimentos muitas vezes acima do que precisam, incluindo água deixando os supermercados com as prateleiras vazias, nas aldeias os indígenas sonham com dinheiro para o armazenamento de água e compras de caixas d’água. Algumas aldeias vivem de doação de água. Por fim, os indígenas já pensam na pós-pandemia e pensam que estes recursos podem ajudar na reestruturação das organizações sociais dos povos.
A respeito das informações sobre a epidemia, as aldeias que responderam ao questionário alertam que as notícias chegam por intermédio de organizações indígenas, Agentes de Saúde Indígena, entidades aliadas e notícias que circulam pelas redes sociais nas comunidades que possuem sinal de internet. No entanto, uma dificuldade permanece em algumas aldeias.
“Por sermos falantes de uma outra língua, não temos obtido acesso às informações relativas à pandemia, que só existem em português. A falta de um plano específico de ação para a prevenção e combate do vírus para a nossa população também nos preocupa muito”, declarou uma das aldeias envolvidas no levantamento – as respostas foram em nome da comunidade.
Casos exemplares
Na aldeia Tupinambá de Olivença, localizada na Terra Indígena de mesmo nome, em Ilhéus (BA), vivem sete famílias. Na pesquisa, os indígenas apontam problemas generalizados e necessidades emergenciais, que os levaram a iniciar uma campanha de arrecadação de recursos. “É um momento de urgência. Aqui na nossa aldeia enfrentamos desafios relacionados a invasões e falta de demarcação”, diz cacique Ramón Tupinambá.
Ainda na região Nordeste, outro exemplo é a aldeia Central Japuara, em Caucaia (CE), do povo Anacé. São 459 famílias vivendo em áreas retomadas. As necessidades lá passam por alimentação, produtos de higiene, recursos financeiros e informações sobre a Covid-19. Situação similar vivenciada pelos Fulni-ô, em Águas Belas (PE), onde 5 mil indígenas vivem na Terra Indígena que é praticamente um grande bairro do município do agreste pernambucano.
Na região Sul, aldeias Guarani Mbya de Santa Catarina convivem com todas estas dificuldades e já se preocupam com o inverno que em breve diminuirá ainda mais a temperatura. As aldeias Pirá Rupá, em Palhoça, Morro Alto, em São Francisco do Sul, e Mymba Roka, em Biguaçu, somam 74 famílias com dificuldades de recursos, alimentares e de produtos de higiene.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em parceria com outras organizações da sociedade civil, tem distribuído cestas básicas para comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. “É um serviço de assistência às comunidades indígenas nesse momento difícil e de ausência do governo”, ressalta o missionário Roberto Antonio Liebgott, do Cimi Regional Sul – Equipe Porto Alegre.