01/07/2025

Povos Madija Kulina e Kanamari promovem troca de saberes tradicionais em saúde e mantém vivos os conhecimentos ancestrais

Cerca 90 lideranças indígenas da Terra Indígena Kulina do rio Uerê e representantes de organizações indigenistas participam da Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Por Ascom e equipes do Cimi Regional Norte I (Prelazia de Tefé e médio rio Juruá)

“Espaço de troca, partilha de múltiplos saberes, fortalecimento, preservação, valorização, transmissão de práticas tradicionais de cura e valorização cultural por meio das danças, cantos e pinturas”, assim se caracterizou a Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na aldeia Matatibem da Terra Indígena (TI) Kulina do Rio Uerê, em Carauari (AM), entre os dias 09 a 11 de junho.

O encontro contou com a participação de aproximadamente 90 pessoas, lideranças e professores indígenas, das aldeias Taquara, Matatibem e Bauana, dos povos Kanamari e Madja Kulina de Carauari, e organizações da sociedade civil parceiras na luta em defesa dos povos indígenas em Tefé e Carauari. A oficina aconteceu como uma roda de conversa sobre o tema o “Fortalecimento, Preservação, Valorização e Transmissão de Saberes e Práticas Tradicionais de Saúde nas aldeias”.

“A oficina foi uma espaço de troca, partilha de saberes, fortalecimento, preservação, valorização, transmissão de práticas tradicionais”

Entre os objetivos está justamente fortalecer, por meio da troca e do diálogo, esses conhecimentos que benzedeiras, rezadores, pajés, curadores e parteiras tradicionais indígenas possuem. Também propôs o fortalecimento de parcerias e articulações com o movimento indígena, organizações parceiras indigenistas e com a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes.

Para a equipe do Conselho Indigesta Missionário (Cimi) Regional Norte 1, equipes de Tefé e médio Juruá, “há necessidade de valorização desses saberes e práticas de saúde para o enfrentamento aos impactos causados pelas secas dos rios e na reparação das violências e violações individuais e coletivas de crianças, adolescentes, jovens, mulheres e homens indígenas”, afirma Francisca Cardoso, missionária da equipe do Cimi Prelazia de Tefé, destacando que são saberes essenciais, principalmente pelos desafios que as mudanças climáticas impõem aos povos indígenas.

“É muito importante fortalecer esses saberes locais de cura, principalmente pelas mudanças climáticas”

“É muito importante fortalecer esses saberes locais de cura, principalmente pelas mudanças climáticas que, nos últimos anos, têm ocasionado grandes desafios e impactos para a população indígena. [A seca extrema] impõe isolamento forçado aos indígenas das aldeias. Quando precisam se deslocar à sede dos municípios para acessar as políticas de saúde enfrentam inúmeras dificuldades”, contextualiza e enaltece as práticas indígenas de cura.

“Nesse contexto climático e social, práticas tradicionais de cura realizadas por benzedeiras, rezadores, pajés e parteiras tradicionais indígenas devem ser reconhecidas e valorizadas, integradas às políticas públicas, porque são tratamentos de cura eficientes, feitos com receitas de plantas medicinais, óleos vegetais, raízes, cascas de árvores, sementes e folhas, e transmitidos de geração em geração. São saberes dos antepassados que se misturam com crenças religiosas e possuem ligação estreita com a natureza, com a floresta”, explica a missionária.

“Práticas tradicionais de cura realizadas por benzedeiras, rezadores, pajés e parteiras tradicionais indígenas devem ser reconhecidas e valorizadas”

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Conhecimentos que incidem

A oficina integra dois projetos que buscam o fortalecimento dos saberes indígenas: “Povos indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes”, apoiado pela Agência Católica para o Desenvolvimento Ultramarino, comumente conhecida como CAFOD; e “Atuar na incidência política, organização social, projetos de vida e defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas na região Amacro”, apoiado pela Cáritas Alemã.

Amacro é um acrônimo das três unidades federativas do Brasil: Amazonas, Acre e Rondônia. Região destinada à expansão do agronegócio e que, por conta dessa ação dos poderes econômico e político, tem trazido como consequência muitas mazelas sociais e ambientais, entre elas desmatamento acelerado e vulnerabilização das populações tradicionais.

“A valorização e incentivo dos saberes tradicionais reúne importantes parceiros”

Enfrentando essas violências e violações de direitos que as populações tradicionais vêm sofrendo, a valorização e incentivo dos saberes tradicionais reúne importantes parceiros: Pastoral da Criança da Prelazia de Tefé, Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Associação Estadual das Parteiras tradicionais do Amazonas (Aptam) Algodão Roxo, Associação dos Moradores Extrativistas da Comunidade de São Raimundo e a equipe de combate à malária na aldeia Matatibem da Secretaria Municipal de Saúde de Carauari, por meio da Gerência de Endemias da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) do Amazonas.

Os temas trabalhados abrangeram as ações desses parceiros pelos seus expertises, habilidades, experiências e conhecimentos em suas respectivas áreas: valorização, transmissão e utilização das práticas tradicionais de saúde nas aldeias; saúde e cuidados necessários para melhoria na qualidade de vida; direitos e proteção à pessoa desde a gestação; Parteiras Tradicionais e seu Trabalho Social na Comunidade e o reconhecimento da profissão pelo estado e pela comunidade científica; conhecer e cuidar do corpo da mulher observando sua cultura, cresças e espiritualidades que envolvem o período gestacional, parto, pós-parto e maternidade e medicina tradicional, remédios caseiros e alimentos naturais.

“As práticas de cura tradicionais fazem parte das ações preventivas de saúde, nutrição, educação e cidadania das comunidades indígenas”

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

A líder da Pastoral da Criança da Prelazia de Tefé, Francisca Colares, destaca que orientações sobre nutrição com uso dos alimentos regionais existentes na aldeia e de remédios caseiros que compõem a medicina tradicional contextualiza as relações do humano com a natureza desde a sua concepção. “Atender de forma integral o desenvolvimento das crianças, da concepção até aos seis anos de idade, em seu contexto familiar e comunitário, a partir de ações preventivas de saúde, nutrição, educação e cidadania são fundamentais”, disse a líder, destacando as linhas de ação prioritárias da Pastoral: “promoção humana no combate à mortalidade infantil, à desnutrição e à marginalidade social”.

Rafaela Rodrigues, representante da Aptam Algodão Roxo, aponta que a associação tem promovido o reconhecimento do ofício das parteiras tradicionais como profissão e, também, sua qualificação, por meio de formações, oportunidades, meios e condições para a atuação de base e para gerar melhores condições das práticas realizadas. “Precisamos garantir a continuidade da prática das parteiras tradicionais como patrimônio cultural imaterial dos povos tradicionais da Amazônia, pelo conhecimento recebido das gerações passadas”, afirmou.

“Precisamos garantir a continuidade da prática das parteiras tradicionais como patrimônio cultural imaterial dos povos tradicionais da Amazônia”

Floresta que cura

Durante os três dias, mais de 50 receitas com uso de raízes, folhas, cascas de árvores, sementes, frutas, flores, óleos vegetais, peixes e animais silvestres foram partilhadas e registradas pelos indígenas, além de parceiros. Algumas delas constam da Cartilha Medicina Tradicional Indígena, publicada pela Equipe do Cimi da Prelazia de Tefé, em 2009, e distribuídas nas aldeias e comunidades ribeirinhas da região de Carauari e Tefé.

Entre as receitas trocadas estão remédios tradicionais para tratar pneumonia, cansaço, frieza no corpo, aumento da imunidade, mordida de cobra, conjuntivite, gripe e resfriado, Covid-19, dor de estômago, hemorragia, cólica de criança, anemia, dor de dente e ouvido, verminose e desnutrição. Doenças que para a liderança indígena da aldeia Matatibem, José Pio Kara Kulina, podem ser tratadas com remédios da floresta.

“Os indígenas conhecem muitas plantas que são remédios e que servem para muitas doenças, mas não são valorizados”

“Eles [os indígenas] conhecem muitas plantas que são remédios e que servem para muitas doenças, mas não são valorizados. Até na própria aldeia. Agora as pessoas preferem remédio da farmácia, dizem que cura mais rápido. Assim vão deixando de lado os remédios caseiros, como o chá de plantas, cascas de árvores, sementes, óleos de andiroba, copaíba, mel de abelha”, falou entristecido, mas com a certeza de que é possível multiplicar esses conhecimentos para que não se percam com o tempo.

A parteira tradicional, Hawa Maria Kanamari, da aldeia Bauana, já há muitos anos atua na comunidade atendendo as mulheres grávidas, mas não deixa de aconselhar que, se for preciso, ela deve ir para a cidade.

“Quando as mulheres grávidas vêm pra mim, pedir para olhar a barriga, acompanho a grávida até a criança nascer”

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

“Já fiz muitos partos de crianças na aldeia. Quando as mulheres grávidas vêm pra mim, pedir para olhar a barriga, acompanho a grávida até a criança nascer. A barriga vai crescendo e eu vô sentindo e vendo como o bebê está na barriga. Também como tá a saúde da grávida. Aconselho pra fazer o pré-natal e que vá para a cidade se puder, para não correr risco na aldeia”, contou, dizendo que dar à luz na aldeia não traz problemas, desde que mãe, bebê, a família e a comunidade estejam bem, mas por precaução, se tiver algum sinal de perigo ou se for o desejo da mãe, é necessário ir para a cidade fazer o parto no hospital.

Para Marywam Kanamari, da aldeia Taquara, a oficina foi importante porque “os parentes trocaram conhecimentos” que devem ser repassados ao retornar para sua aldeia. “A gente trouxe os conhecimentos que temos e levamos outros que aprendemos para os parentes que não puderam participar. Aprendemos muito sobre os remédios tradicionais repassados pelos parentes das outras aldeias”, contou satisfeito, inclusive com os conhecimentos sobre o trabalho das parteiras tradicionais.

“A gente trouxe os conhecimentos que temos e levamos outros que aprendemos para os parentes que não puderam participar”

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Surpresos com o volume de conhecimentos que cada “parente” apresentou, os indígenas manifestaram orgulho pelos conhecimentos sobre a saúde das pessoas e o poder de cura da floresta e da natureza. Mais satisfeitos ainda, por saber que esses conhecimentos são utilizados no dia a dia da aldeia. Perceberam que seus ancestrais e as pessoas mais velhas são “detentores” desses conhecimentos e estão repassando para as novas gerações.

Foram unânimes em dizer que a valorização destes conhecimentos preserva a memória e a história das rezadeiras, pajés e parteiras, e que sempre contribuíram com a saúde e o bem viver dos povos indígenas Kanamari e Kulina no município de Carauari.

“Os mais velhos da aldeia têm muito conhecimento sobre os remédios caseiros, sobre reza, sobre plantas que curam e os mais jovens devem aprender”

O professor indígena e coordenador da Associação do Povo Madija Kulina de Carauari, Paulo Kulina, da aldeia Matatibem, não escondeu sua admiração e disse que o momento foi de muito aprendizado que devem continuar sendo repassados aos mais jovens.

“Os mais velhos da aldeia têm muito conhecimento sobre os remédios caseiros, sobre reza, sobre plantas que curam muitas doenças e que os mais jovens devem aprender para não deixar morrer estes conhecimentos. São saberes de saúde que existem nas aldeias e precisam continuar contribuindo com a melhoria da qualidade de vida das famílias, nas casas e na aldeia toda”, concluiu.

“São saberes de saúde que existem nas aldeias e precisam continuar contribuindo com a melhoria da qualidade de vida”

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Ciência e tradição

As organizações parceiras também analisaram junto com os indígenas que os conhecimentos tradicionais e científicos “devem andar juntos, de mãos dadas, porque esses saberes podem se ajudar”, disse a representante do Instituto Mamirauá e membra da Aptam Algodão Roxo, Maria das Dores Marinho.

Reforçou também, que os profissionais de saúde devem ser consultados sempre que possível para iniciar qualquer tratamento ou prática de saúde “para garantir segurança e eficácia dos procedimentos” e destacou que devem ser seguidos “o respeito às tradições e aos conhecimentos tradicionais, evitando a apropriação cultural”, reforçou Das Dores.

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Oficina de Valorização e Incentivo às Práticas e Saberes Tradicionais de Saúde, realizada na Terra Indígena Kulina do rio Uerê, em Carauari (AM). Foto: Cimi Regional Norte 1

Contribuindo com o trabalho das parteiras tradicionais, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), por meio do Programa Qualidade de Vida, entregou lanternas ecológicas para cada uma das parteiras presentes e cadastradas. As lanternas são acompanhadas de uma placa de energia fotovoltaica (solar) que tem duração de 10 anos.

Como última atividade da oficina foram cadastradas 21 parteiras tradicionais das aldeias Matatibem, povo Madija Kulina, e das aldeias Taquara e Bauana do povo Kanamari, que passaram a constar no banco de dados das parteiras tradicionais do estado do Amazonas. O objetivo é apresentar às Secretarias Municipais de Saúde quantas são, quem são e onde estão as parteiras tradicionais existentes e atuantes no estado.

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