30/04/2020

Em reunião da ONU sobre a pandemia, Cimi denuncia ineficiência do governo brasileiro e descaso com indígenas

“O governo federal não está apenas desconsiderando as obrigações positivas de cuidados especiais com os povos indígenas, mas também interferindo nas liberdades”

O representante do Cimi, Paulo Lugon, reportou à ONU a situação dos povos indígenas no Brasil em meio à pandemia. Crédito da foto: reprodução

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Em intervenção durante reunião virtual do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas nesta quinta-feira (30), com o tema Diálogo com os Procedimento Especiais no Contexto da Covid-19, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) fez duras críticas à ineficácia e medidas controversas do governo brasileiro no enfrentamento à pandemia entre os povos indígenas do país.

O encontro ocorreu no período da manhã, horário de Brasília, e contou com a presença de entidades e governos de todo o mundo. Para o Cimi, organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), falta um plano de contingência para evitar ao máximo o contágio das comunidades indígenas. Também a criação de categorias inexistentes na legislação, como a distinção entre “aldeados” e “não aldeados”.

“Lamentavelmente, no Brasil, o governo federal não está apenas desconsiderando as obrigações positivas de cuidados especiais com os povos indígenas, mas também interferindo nas liberdades dos povos indígenas durante a pandemias. Nos dois casos, os efeitos desastrosos sobre esses povos são incalculáveis”, diz trecho do pronunciamento lido pelo representante da entidade na reunião, Paulo Lugon.

O Cimi denunciou às Nações Unidas que no lugar de adotar medidas cabíveis e eficientes para enfrentar a pandemia do novo coronavírus entre os povos indígenas, o governo brasileiro publicou, através da Fundação Nacional do Índio (Funai), a Instrução Normativa n° 9. A medida tem um potencial catastrófico.

A Instrução permitirá que qualquer uma das 237 terras indígenas em procedimento administrativo anterior à homologação sejam consideradas imóveis privados. O instrumento retira ainda as terras não homologadas do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), cadastro do Incra com dados oficiais sobre os limites dos imóveis rurais.

Dessa maneira, as terras não homologadas poderão ser cadastradas no Sigef como propriedade rural privada. “Favorece a titulação de proprietários em terras indígenas, mesmo que o processo de demarcação esteja em estágio avançado, violando a constituição e o direito internacional do Brasil”, disse o Cimi no informe à ONU.

No informe o Cimi também comunicou que “o recém nomeado ministro da Justiça (André Mendonça), pastor de igreja pentecostal, pode favorecer o desejo do governo e aliados de converter comunidades sem contato. O novo ministro da Saúde tem tendência a privatizar os serviços de saúde indígenas, arriscando sua acessibilidade”.

A situação mais grave envolvendo os povos indígenas é em Manaus. De acordo com levantamento realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) já são 16 mortes por covid-19 confirmadas até esta terça. Destes óbitos, apenas cinco estão nos boletins da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

Ocorre que o órgão do Ministério da Saúde só contabiliza casos entre indígenas considerados “aldeados”, aqueles que vivem em terras indígenas afastadas dos centros urbanos. Os considerados “não aldeados” ficam de fora das estatísticas, não recebem kits de testes e são lançados ao colapso do sistema de saúde pelo qual passa a capital do Amazonas.

Pataxó barraram rodovia na região da Terra Indígena Comexatibá para proteger suas aldeias da contaminação por covid-19. Foto: povo Pataxó

Pataxó barraram rodovia na região da Terra Indígena Comexatibá para proteger suas aldeias da contaminação por covid-19. Foto: povo Pataxó

Povos indígenas resistem e ATL virtual

Para as Nações Unidas, o Cimi reportou que “os povos indígenas estão se organizando, tomando medidas de autoproteção e compartilhando informações relevantes sobre saúde. A edição deste ano do Acampamento Terra Livre, o maior evento indígena do Brasil, acontece nas mídias sociais”.

São dezenas de barreiras sanitárias criadas em vias de acesso às terras indígenas e mobilização da Frente Parlamentar Mista de Defesa dos Povos Indígenas, presidida pela deputada federal Joênia Wapichana, para garantir insumos sanitários, kits de teste para covid-19 e leitos hospitalares.

O momento também tem sido de muita denúncia por parte dos indígenas: “enquanto a gente está de quarentena, lutando para os povos ficarem nos territórios, nós vemos o aumento das invasões. Em um mês, foi um aumento de 29,3% do desmatamento. Isso são dados do Inpe”, disse Sônia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante o ATL 2020, que aconteceu de forma virtual.

Nesta quinta também se encerrou o atual mandato da Relatoria Especial da ONU para os Povos Indígenas. O Cimi expressa “sincera gratidão ao trabalho de Victoria Tauli-Corpuz por sua grande contribuição durante seu mandato e deseja todo o sucesso a José Fancisco Calí Tzay, como novo relator”.

Governo brasileiro ataca relatores da ONU

Na semana passada, relatores da ONU denunciaram o governo brasileiro diante do que chamam de “políticas irresponsáveis” durante a pandemia da covid-19. Conforme artigo de Jamil Chade, o especialista em direitos humanos e dívida externa Juan Pablo Bohoslavsky e o relator especial sobre pobreza extrema Philip Alston declararam que “a epidemia ampliou os impactos adversos de uma emenda constitucional de 2016 que limitou os gastos públicos no Brasil por 20 anos”.

Seguiram: “os efeitos são agora dramaticamente visíveis na crise atual”. A declaração  conjunta foi endossada por outros cinco relatores, além do Grupo de Trabalho da ONU sobre discriminação contra mulheres e meninas. A reação do governo brasileiro fez o Itamaraty abandonar a diplomacia e partir para um ataque agressivo.

Nesta quinta, durante a reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a embaixadora do Brasil Maria Nazareth Farani Azevedo não deu nenhum detalhe de como o Brasil tem agido e novamente atacou os relatores da ONU dizendo que eles ignoravam as vítimas da pandemia em busca de confronto com o governo brasileiro.

A prática é comum na estratégia bolsonarista durante esta crise sanitária: ao mesmo em que o governo não toma medidas adequadas e protocolares para enfrentar a pandemia, minimizando mortes e apostando no tensionamento, seus integrantes atacam os críticos de tal postura acusando-os de usar o drama vivido pelas pessoas para fazer política.

“Certamente não é o momento para os procedimentos especiais tentarem usar essa pandemia e a tragédia de tantas famílias (à medida que perdem seus entes queridos) como uma oportunidade de avançar em suas próprias agendas”, discursou a embaixadora numa tentativa de transformar o governo brasileiro em vítima.

Maria Nazareth afirmou que “há muita coisa acontecendo no Brasil na área da saúde, proteção social, direitos humanos (atenção às pessoas vulneráveis; combate à violência contra as mulheres, etc.)”, mas não citou nenhum exemplo tomando quase todo o tempo de sua fala com críticas aos relatores da ONU.

A embaixadora destacou que “este é um momento não para enfrentar, mas para confortar”. Enquanto isso, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta a única medida até agora efetiva de combate à pandemia do novo coronavírus: o confinamento horizontal, além de gerar sucessivas crises políticas. Bolsonaro tem incentivado carreatas contra a medida e participado de aglomerações públicas, sendo uma delas em defesa de um golpe militar.

O Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde, chegou a 85.380 casos confirmados de covid-19 e 5.901 mortos nesta quinta. O país superou a China, marco zero da pandemia, e está em 10° no ranking mundial. O presidente, questionado sobre estes números crescentes de casos e mortes, ontem, respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Fonte: Por Assessoria de Comunicação - Cimi
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