29/04/2020

Aumenta o número de casos de covid-19 entre povos indígenas na Amazônia, aponta Coiab; em Manaus, mortes são diárias

De acordo com levantamento realizado pela Coiab já são 16 mortes por covid-19 confirmadas até esta terça, 28

Os povos do Vale do Javari encontram sérias dificuldades no atendimento à saúde, visto que muitas aldeias se localizam em áreas de difícil acesso, onde a locomoção chega a levar 15 dias. Foto por Cristina Alejandra/Cimi Norte I

Os povos do Vale do Javari encontram sérias dificuldades no atendimento à saúde, visto que muitas aldeias se localizam em áreas de difícil acesso, onde a locomoção chega a levar 15 dias. Crédito da foto: Cristina Alejandra/Cimi Norte I

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

No final da tarde desta terça-feira, 28, o professor Aldenor Tikuna morreu em sua casa na comunidade Wotchimaucu, localizada no bairro Cidade de Deus, em Manaus (AM). Conforme Marcivana Sateré Mawé, da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), o indígena estava com todos os sintomas da covid-19, mas não foi testado ou recebeu qualquer atendimento médico nos hospitais da capital.

De acordo com levantamento realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) já são 16 mortes por covid-19 confirmadas até esta terça. Destes óbitos, apenas cinco estão nos boletins da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Ocorre que o órgão do Ministério da Saúde só contabiliza casos entre indígenas considerados “aldeados”, aqueles que vivem em terras indígenas afastadas dos centros urbanos.

Aldenor Tikuna, portanto, não entrará nas estatísticas da Sesai; assim como qualquer outro indígena que esteja em contexto urbano na cidade de Manaus e seu entorno, onde a Copime estima viverem cerca de 30 mil indígenas. A distinção é encarada pelo conjunto do movimento indígena e indigenista como discriminação e está em contrariedade com a Constituição Federal e tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT, que não permitem tal diferenciação na aplicação de políticas públicas.

Marcivana Sateré Mawé explica que o caso do professor, dos demais doentes e infectados e de outros óbitos entre indígenas, que ocorrem diariamente desde o final da semana passada, são invisibilizados nas estatísticas porque a Sesai decidiu não tratar como indígenas aqueles que vivem em contexto urbano, lançando-os ao colapso do sistema público que enclausura Manaus em uma bolha de morte. “Precisamos de um hospital de campanha para os indígenas que vivem em Manaus e no entorno. São muitos doentes com os sintomas de covid-19 sem testes, sem cuidados médicos”, diz.

Longe das estatísticas, os indígenas que vivem na cidade enfrentam a pandemia sem o subsistema de saúde e submetidos à roleta russa dos efeitos do vírus em cada organismo. “Na comunidade, todos os integrantes ficaram doentes, apresentando os mesmos sintomas que levaram o professor à morte. Em outras comunidades a situação é igual. Não aparece nas estatísticas e então a política pública não chega para os indígenas no contexto urbano”, afirma.

Para a integrante da Copime os indígenas não estão totalmente invisibilizados porque as autoridades públicas sabem que eles existem. “Mas esses são dados não vão aparecer nos dados oficiais do Ministério da Saúde. É uma situação dramática, crítica. Quando conseguem algum atendimento, os parentes fazem inalação, tomam um remédio e voltam para casa. Não são sequer testados para a covid-19. Por isso, muitos parentes têm optado por ficar em casa e esperar passar ou morrer”, lamenta a indígena.

O corpo do professor Aldenor foi retirado de sua casa e levado para uma igreja para aguardar doações suficientes para a compra de um caixão. O serviço público funerário entrou em colapso e não consegue atender as demandas. “Mesmo sem ter teste positivo, a orientação é que não ocorra velório. Então os corpos vão direto para o cemitério, mas não foi possível pela falta do caixão”, diz Marcivana.

Ela explica que a comunidade Wotchimaucu é uma das mais organizadas entre as existentes em Manaus e no entorno. Mesmo assim não conseguiu conter o vírus. “Agora imagina as mais vulneráveis. Sem a Sesai, sem o apoio do subsistema público, a covid-19 foi contaminando um a um, se espalhando pela comunidade. A política da Sesai é discriminatória diante da pandemia. Estamos gritando, pedindo socorro”.

Mais de 300 indígenas se concentraram na sede do DSEI, localizado na zona Centro Sul da capital amazonense. Foto por José Rosha, da Ascom Cimi Norte I

Mais de 300 indígenas em protesto na frente do DSEI Manaus: problemas com discriminação e prestação do atendimento básico já habitavam a pauta dos indígenas desde antes da pandemia. Crédito da foto: J. Rosha/Cimi Norte I

“As mortes são causadas também pela discriminação”

Em nota, a Coiab afirma que “na última semana, o número de casos suspeitos, confirmados e de mortes pelo coronavírus entre as populações indígenas na Amazônia brasileira aumentou assustadoramente”. Com a ajuda de lideranças e caciques, agentes de saúde indígena, técnicos dos 25 Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEIs) da região e organizações de base como a Copime, a Coiab vem fazendo o que a Sesai não faz: um diagnóstico do avanço da covid-19 na Amazônia brasileira.

“No dia 20 de abril, Yuri Ticuna informou sobre a morte do seu tio, Abezio Flores Salvador Ticuna, de 50 anos, que estava internado em um hospital de Manaus. Quatro dias depois, chegaram notícias de mais dois falecimentos: Domingos Baré, na comunidade Nova Esperança, no entorno de Manaus, e Raimundo Quirino Ramos Ticuna, técnico de enfermagem, no Alto Solimões. No último domingo, dia 26, a confirmação da morte de uma indígena de 35 anos do povo Palikur, no Amapá”, cita como exemplos a nota da Coiab.

Segundo a Sesai, existem 84 casos confirmados entre as populações indígenas na Amazônia. A Coiab aponta ao menos 14 casos a mais da doença entre indígenas dos povos Apurinã, Baniwa, Baré, Borari, Cocama, Yanomami, Mura, Palikur, Sateré-Mawé, Tikuna e um caso entre o povo Warao, que migrou da Venezuela para o Brasil. Para a integrante da coordenação da Coiab, Valéria Payé, a decisão da Sesai em criar categorias de indígenas é um caso de racismo institucional.

“Quando vimos que a Sesai não faria esse levantamento, decidimos fazer. Nossas lideranças, os técnicos que estão na ponta. Consolidamos os dados a partir disso. O que confirma o racismo institucional contra nós indígenas. É dever da Sesai garantir o atendimento e acompanhamento dos indígenas que não estão no território”, diz. Valéria aponta que as mortes também são causadas pela discriminação e destacou peculiaridades destes indígenas em contexto urbano.

“São indígenas que saem dos seus territórios por razões variadas. Seja para estudar ou por terem sido expulsos por invasores. Na Amazônia essa característica é ainda mais intensa porque há indígenas para todo lado. Mas que indígena ou povo quer viver fora de sua terra quando tem a escolha de estar nela? Se está na cidade tem uma razão, que no geral envolve muitos motivos”, explica.

A indígena observa um outro detalhe: a Sesai, ao desconsiderar os indígenas em contexto urbano, deixa de mapear retornos dos “parentes” às aldeias. “Se a Sesai tem mapeado nas estatísticas os de contexto urbano, consegue também proteger os que ela chama de aldeados porque há um fluxo de voltar e sair dos territórios no meio da pandemia. Quem faz essa proteção é a gente mesmo”, conta. Para a indígena, há falta de comprometimento com a vida por parte do governo federal.

Tanto a Coiab quanto a Copime confirmam que muitos indígenas foram infectados na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Manaus, gerenciada pela Sesai. No caso dos indígenas que historicamente encontram dificuldades de atendimento na capital, muitos foram contaminados enquanto buscavam atendimento para outros problemas de saúde nos aparelhos de saúde municipais e estaduais.

I Marcha do Povo Indígena Mura, ocorrida no dia dos povos indígenas, 19 de abril, no centro de Autazes, cidade que fica a 110 quilômetros de Manaus. Foto por José Rosha, do Cimi Norte I

I Marcha do Povo Indígena Mura, ocorrida em 2019 no dia 19 de abril, no centro de Autazes, cidade que fica a 110 quilômetros de Manaus. Crédito da foto: J.Rosha/Cimi Norte I

MPF se pronuncia

Diante da situação, o Ministério Público Federal (MPF) publicou uma carta aos povos indígenas e tradicionais da Amazônia. Nela oferece orientações, como “se alguém da comunidade estiver com tosse, febre e gripe, é importante ficar recolhido pelo menos 14 dias, pois se essa pessoa estiver com a COVID-19, pode contaminar outros parentes. Também é importante buscar ajuda de um profissional de saúde, se necessário. Você pode procurar o AIS ou ACS da sua comunidade, alguém do DSEI ou, se estiver na cidade, um posto de saúde ou hospital”.

O MPF afirma ainda que está cobrando do governo federal medidas urgentes “que facilitem o acesso a recursos e a cestas básicas nesse período. Enquanto isso, se precisar buscar alguma coisa na cidade ou pegar o dinheiro no banco, em vez de ir todo mundo, a comunidade pode escolher apenas algumas pessoas pra ir na cidade e resolver essas coisas. O diálogo nas associações e espaços deliberativos é fundamental neste momento”.

Como lembrou reportagem do Instituto Socioambiental (ISA), escrita pelo jornalista Oswaldo Braga de Souza, em março a Funai suspendeu as autorizações para entrada nas terras indígenas. A isso se somou o anúncio de que o órgão indigenista investiria R$ 6 milhões para distribuir 308 mil cestas de alimentos para cerca de 154 mil famílias em mais de 3 mil comunidades indígenas do país. Não explicou como faria e em qual prazo. Tampouco informou a razão de não ter gasto nenhum centavo dos mais de R$ 10 milhões recebidos em caráter extraordinário para combater a Covid-19, como revelou o jornal O Estado de São Paulo.

Fonte: Por Assessoria de Comunicação - Cimi
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