A grande pandemia
Houve um tempo em que os povos nhandewa viviam felizes em suas terras e nada de mal os assolavam no território que Nhandedjary preparou
Houve um tempo em que os povos nhandewa viviam felizes em suas terras e nada de mal os assolavam no território que Nhandedjary preparou e que por muito tempo habitavam seus ancestrais. Os padrinhos Kwaray e Djatsy os iluminavam todos os dias e cada dia era um novo dia para refazer tudo o que realizavam coletivamente. A cada amanhecer o Nhanderuwitxa (que era o Grande Líder) era sempre o primeiro que acordava e já se conectava com Nhandedjary através da Tatatinadjara (o poder da Fumaça) depois que acendia o tata-gwaçu (a grande fogueira) no centro da tekoá. Ali ele pedia e agradecia por todos. Então o Grande Líder otsapukai chamava a todos:
– Nein ke! Pepu’ã pame! Pedju ko apy!
E aos poucos todos iam acordando e chegando: os txondaro-kwery, os konomin-gwe, as kunhatain-gwe, kunhan-gwe, mitan-gwe, nhaneramõe-kwery e por fim nhandetsy-kwery e iam formando um grande círculo em torno do tata-gwaçu para agradecerem também. Todos cantavam e dançavam para Nhanderu-utsu (nosso Grande Pai que também é o Nhandedjary o Criador). Então, iniciavam-se as atividades: txondaro-kwery iam buscar o pirá no jekí que deixavam armado na beira do rio, os konomin-gwe iam procurar djapeá para não deixar o fogo apagar, as kunhatai-gwe traziam yy para as nhandetsy fazer o mbaipy de milho colhidos na tarde anterior, no último dia do Ará Pyaú. Enquanto isso, as mitan-gwe brincavam, observavam e algumas até auxiliavam felizes nas atividades cotidianas. E todos os dias eram assim e quando anoitecia todos se juntavam novamente, ao redor do tata-gwaçu, após uma refeição coletiva, para agradecer a Nhandedjary pelo dia concluído e descansar para dar continuidade novamente no outro dia. E assim eram todos os dias. Aquele povo era muito abençoado por Nhanderu-utsu sendo prósperos em meio a natureza. Certa noite, o Nhanderuwitxa (O Grande Líder) teve um sonho e no sonho Nhandedjary pediu para que alertasse o seu povo, pois haveria uma grande tribulação naquela terra e pediu para todos se isolassem na Tupã Roká (na Grande Oka). Pediu também que guardassem as sementes sagradas, levassem muitos peixes, levar os animais que puderem, e muito djapeá para o fogo. Amanheceu e o Nhanderuwitxa nem tinha conseguido voltar a dormir tentando elucidar o significado daquele sonho. Então, como de costume o Nhanderuwitxa chamou a todos:
– Nein ke! Pepu’ã pame! Pedju ko apy! Amombe’u pamé mba’e atxara’u. Nhanderu-utsu oporandu amboatsa awã pendewy!
E na reunião matinal o Nhanderuwitxa contou a todos sobre o sonho. Ali todos rezaram, cantaram e dançaram pedindo a proteção de Nhanderu-utsu. Prepararam-se em três dias e se fecharam na Grande Oka. Todos obedeceram os mandamentos de Nhanderu-utsu menos um txondaro que não quis dar ouvidos às palavras do Grande Líder e embrenhou-se na selva achando que nada de mal iria acontecer, pois estava em meio à natureza, que era o seu lugar e conhecia cada palmo daquelas terras. Enganou-se. E assim aconteceu. As nuvens começaram a se revirar no céu e o dia foi dando lugar a um grande breu e não se enxergava mais nada. Tudo que era belo foi ficando feio. Então veio o Anhã (o Espírito mal) e espalhou mba’e atsy (doenças e pragas) por toda a terra e a terra ficou seca e doente… E nada sobreviveu a essa Pandemia… Ao se passar os quarenta dias o nhandewa desobediente ficou muito doente e debilitado e não conseguia mais nem se arrastar para se esconder ou procurar algo para comer ou alguma erva curadeira para se fortalecer. Não achou mais nada. Não restou nada. E o nhandewa falava com Nhandedjary:
– Apy aikó! Anhimboatsy! Ma’e txewy!!
Mas Nhanderu-utsu não ouviu. E o nhandewa procurou pelo seu povo, mas não o achou. Os outros que estavam na Tupã Roká sobreviveram os quarenta dias rezando, cantando e dançando para Nhandedjary e ficaram muito mais fortalecidos para o recomeço. Depois que Nhandedjary limpou a terra de todo o Mal abriram-se as portas da Grande Oka e todos saíram para o replantio, mas a terra já não estava tão devastada e as mitan-gwe corriam felizes e esparramavam as sementes sagradas para todos os lados e os rios foram se enchendo novamente, cada vez mais límpidos, as árvores cresciam mais rápidas que o normal e os pássaros dançavam e cantarolavam ao refazerem os seus ninhos. Passou-se algum tempo, não se sabe ao certo quanto, até que encontraram aquele nhandewa muito raquítico, esquelético, quase um morto vivo e o carregaram para dentro da Grande Oka onde todos passaram mais três dias e três noites rezando e cuidando daquele txondaro com ervas de cura. Deram-lhe comida e água e colocaram em seu pescoço um Mbo’y Pyaú Marãegatu (um Colar Novo e Sagrado) somente com sementes de Capiá. Logo ele se reestabeleceu e foi nomeado como um grande Líder, o chefe dos txondaro-kwery, o Txondaro Ruwitxa. E o Nhanderuwitxa chamou a todos:
– Pedju pamé pendu awã! Aỹ a’e oikó Txondaro Ruwitxa nhande tekoá-py! Nein ke! Petsapukai!
E assim que a terra ficou limpa tudo voltou ao normal. E Nhanderu-utsu viu bondade no coração de todos e os abençoou para sempre e perpetuaram toda a terra, pois era uma nova terra, uma Terra sem Males. A’ewe’i!
Escrevo este texto junto com a família em isolamento social contra a pandemia da COVID-19, que assombra o planeta neste exato momento.
*Lenira vive na aldeia Nhamandu Mirim, Terra Indígena Piaçaguera, em Peruíbe (SP)