Associações Xavante questionam “condução ilegítima” de consulta sobre hidrelétricas que afetam seus territórios
Lideranças denunciam interferência de empresários e políticos e apontam tentativa de dividir indígenas em projeto de hidrelétricas no Rio das Mortes, em Mato Grosso
Caciques, lideranças e associações do povo Xavante divulgaram uma nota denunciando o que consideram uma “forma ilegítima” de conduzir o processo de consulta aos indígenas a respeito da construção de três Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) no rio das Mortes e no rio Cumbuco, no município de Primavera do Leste, em Mato Grosso.
“Desde o primeiro momento em que o empreendedor busca o povo Xavante para apresentar o seu projeto, trabalha na divisão de nosso povo”, afirma a nota divulgada por caciques, lideranças e Associações das Terras Indígenas (TIs) São Marcos, Areões, Pimentel Barbosa e Sangradouro no dia 20 de março.
Os indígenas questionam a interferência de empresários, políticos e representantes de fazendeiros da região nos debates a respeito da realização da Consulta Prévia, Livre e Informada sobre o empreendimento junto aos povos Xavante e Bororo.
“O Rio das Mortes é nosso rio sagrado, sua vida é fundamental para a nossa cultura”
O projeto da empresa Bom Futuro Energia S.A, atualmente sob licenciamento na Secretaria do Meio Ambiente do estado de de Mato Grosso, prevê a construção da PCH Entre Rios no rio das Mortes e das PCHs Cumbuco e Geóloga Lucimar Gomes num de seus afluentes, o rio Cumbuco. A empresa é vinculada ao grupo Bom Futuro, que tem atuação no setor agropecuário e pertence à família do ex-ministro da Agricultura, ex-senador e ex-governador do Mato Grosso Blairo Maggi.
Determinada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Consulta Prévia, Livre e Informada é um requisito para o licenciamento de projetos que afetem a vida e os territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais.
No caso das PCHs no rio das Mortes e no rio Cumbuco, os Xavante questionam o fato de apenas uma comunidade indígena ter sido considerada afetada pelo projeto. A empresa Bom Futuro e a MRS Consulturia, contratada para realizar o Estudo de Componente Indígena para o licenciamento das obras, apontaram como diretamente afetada pelos empreendimentos apenas a TI Sangradouro, dos povos Xavante e Bororo.
A terra indígena fica localizada dentro do raio de 40 quilômetros das obras, distância indicada pela Portaria Interministerial nº 60, de 2015, como medida para definir a área potencialmente afetada por empreendimentos hidrelétricos e adotada pelas empresas como parâmetro no licenciamento das PCHs.
A própria portaria, entretanto, estabelece que este limite pode ser alterado “em função das especificidades da atividade ou do empreendimento e das peculiaridades locais”. É o que cobram os Xavante, que exigem a consulta a todas as terras indígenas que são banhadas pelo rio das Mortes e ficam localizadas abaixo do local previsto para a construção das PCHs – e que poderão ser afetadas, portanto, por qualquer mudança no fluxo do rio e eventuais impactos na quantidade de peixes disponíveis, por exemplo.
“Esta é uma manobra burocrática para não consultar o conjunto de nossas comunidades”, afirma a moção Xavante. Os indígenas exigem que a consulta seja feita de acordo com um Protocolo de Consulta construído pelas comunidades Xavante e Bororo de todas as terras afetadas e sem a participação da empresa interessada na construção das PCHs.
“Para fazer o Protocolo de Consulta do Povo Xavante é inaceitável a presença do empreendedor e, o que é ainda mais complicado, o seu dinheiro. Temos autonomia para decidir!”, afirma a nota. Os indígenas defendem que a TI Merure, do povo Bororo, e as TIs Areões, São Marcos e Pimentel Barbosa, do povo Xavante, façam parte da comissão responsável por preparar o Protocolo de Consulta.
“O Rio das Mortes passa nesses territórios e é central para a reprodução da nossa vida e da nossa cultura. Entendemos que a participação dessas comunidades é essencial para que a Consulta seja legítima”, prossegue o documento. “O Rio das Mortes é nosso rio sagrado, sua vida é fundamental para a nossa cultura”.
“Não concordamos com a forma ilegítima como este processo está sendo conduzido”
Os indígenas ainda criticam a condução de três reuniões já realizadas pelos empreendedores com as lideranças da TI Sangradouro, denunciando a “manipulação” do processo e a omissão de posições contrárias ao empreedimento nas atas. A nota afirma, inclusive, que a presença de lideranças Xavante críticas à obra foi barrada numa reunião que teve, por outro lado, a presença representantes do governo estadual, de outras associações e até do Sindicato Rural de Primavera do Leste.
“Não concordamos com a forma ilegítima como este processo está sendo conduzido”, afirmam os Xavante. “Este trabalho criminoso está sendo apoiado pelos inimigos dos direitos indígenas”.
Confira a moção na íntegra:
Moção Xavante a respeito da condução do processo sobre as Centrais Hidrelétricas no Rio das Mortes
Nós caciques, lideranças e Associações das Terras Indígenas São Marcos, Areões, Pimentel Barbosa e Sangradouro, vimos a público para denunciar a forma como está sendo conduzido o processo de discussão a respeito do projeto de três Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCHs) no Rio das Mortes, de autoria da empresa Bom Futuro Energia: PCH Cumbuco, PCH Geóloga Lucimar Gomes e PCH Entre Rios. Esta empresa explora as terras do Mato Grosso, instalando seus empreendimentos ao lado de grandes terras indígenas.
Desde o primeiro momento em que o empreendedor busca o povo Xavante para apresentar o seu projeto, trabalha na divisão de nosso povo. Essas reuniões são espaços de cooptação e exclusão das posições contrárias; e os documentos produzidos não expressam o que de fato aconteceu nos encontros. As atas das reuniões omitem as discussões que se deram a respeito do projeto das hidrelétricas. Igualmente a condução dos debates acerca da Consulta Livre, Prévia e Informada por parte do empreendedor visa manipular este processo na comunidade de Sangradouro.
A Ata da primeira reunião, realizada em 5/12/19, diz que o empreendedor apresentou seu projeto e falou sobre os termos da consulta livre prévia e informada. Nessa reunião, o Sr. Norberto Tseredawa, secretário da Associação Warã, propôs incluir no processo de consulta mais três Terras Indígenas Xavante – São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa e a Terra Indígena Bororo Merure, porque o Rio das Mortes passa nesses territórios e é central para a reprodução da nossa vida e da nossa cultura. Entendemos que a participação dessas comunidades é essencial para que a Consulta seja legítima. A Ata afirma que “foram escolhidos representantes” que possuam capacidade de deliberar os procedimentos da Consulta.
Na segunda reunião realizada em Primavera do Leste, realizada em 27 de janeiro de 2020, foi decidido que somente os membros desta Comissão de representantes estivessem presentes. Embora, além desses membros, estivessem presentes a Associação Pareci, o sr. Aguinaldo Santos, superintendente Assuntos Indígenas do estado do Mato Grosso e o Presidente do Sindicato Rural de Primavera do Leste, favoráveis ao projeto; por outro lado foi barrada a participação de Felix A´uwe, vicepresidente da Associação Xavante Warã, por não fazer parte da Comissão. A permissão de participação dos primeiros e a proibição da presença de Felix, favorecem a posição do empreendedor. Na reunião dessa Comissão vai-se construindo o consenso em torno das PCHs, a mesma que está sendo responsabilizada por conduzir o processo de Consulta.
Defendemos a elaboração do Protocolo de Consulta em que todo o povo A´uwe Xavante possa decidir e participar da Consulta livre, prévia e informada, uma vez que o Rio das Mortes é um elemento sagrado em nossos territórios, fundamental para a reprodução de nossa forma de vida. Já estamos vendo com preocupação o que vem ocorrendo no Rio Teles Pires, onde a hidrelétrica Sinop vem sendo responsável por um grande mortandade de peixes, em 2019 e já neste ano. Não queremos que o mesmo aconteça com nosso rio sagrado.
Nesse processo o Termo de Referência emitido pela Funai é específico para a Terra Indígena Sangradouro, excluindo todas as outras terras indígenas Xavante e Bororo, afetadas pelo empreendimento. Argumentam de forma legalista, com base em portaria que delimita 40 km como área afetada por empreendimento. Esta é uma manobra burocrática para não consultar o conjunto de nossas comunidades. Esse não pode ser o ponto de partida para a construção de nosso Protocolo de Consulta porque entendemos que o conjunto das TIs Xavante deve participar da Consulta.
Na Ata da terceira reunião dessa Comissão, realizada no dia 11 de fevereiro de 2020, autointitulada “Grande Reunião para a Consulta Prévia”, documenta a presença de todo o corpo técnico das empresas (Bom Futuro Energia e MRS Consultoria) em seus debates e termina dizendo que os Xavante não são contra a continuidade dos estudos para execução das Hidrelétricas e da possibilidade da empresa custear a elaboração do Protocolo de Consulta.
Para fazer o Protocolo de Consulta do Povo Xavante é inaceitável a presença do empreendedor e o que é ainda mais complicado, o seu dinheiro. Temos autonomia para decidir! Defendemos que a Terra Indígena Merure (Bororo), e as Terras Indígenas Xavante Areões, São Marcos e Pimentel Barbosa, todas afetadas pelos empreendimentos, devam fazer parte da comissão responsável por preparar o nosso Protocolo de Consulta.
Igualmente não devem estar presentes nessa Comissão os representantes do empreendedor, Assuntos Indígenas do Estado do Mato Grosso, técnicos pagos pela empresa, entre outros. Não concordamos com a forma ilegítima como este processo está sendo conduzido. Os que defendem as hidrelétricas estão trabalhando pela divisão do povo Xavante, nossas comunidades estão sendo assediadas pelos empreendedores no sentido de aprofundar divisões e rivalidades. Este trabalho criminoso está sendo apoiado pelos inimigos dos direitos indígenas.
O Protocolo de Consulta deve ser elaborado de maneira autônoma e independente pelos A´uwe Xavante, sem ingerência dos interessados nas hidrelétricas, que só trarão dependência, piora nas condições de vida e sérias dificuldades para a cultura de nosso povo. O Rio das Mortes é nosso rio sagrado, sua vida é fundamental para a nossa cultura. Enquanto povo A´uwe Xavante queremos construir nosso Protocolo de Consulta, segundo nossa maneira própria, de forma independente e de acordo com nossa organização tradicional, como reconhece a Convenção 169 da OIT, somente depois disso é que seria possível encaminhar o processo de consulta de nosso povo, e de outra maneira este processo não é legítimo.
Barra do Garças/MT, 20/03/2020