Funai atropela obrigações constitucionais e se nega a responder ação judicial envolvendo despejo de aldeia Tupinambá
“A Funai tem a obrigação legal de fazer a defesa dos seus atos administrativos, caso de uma demarcação”, explica assessor do Cimi
Em mais uma demonstração de como a Fundação Nacional do Índio (Funai) vem sendo utilizada pelo governo federal para atacar os direitos dos povos indígenas, o presidente do órgão, o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, endossou a orientação da Procuradoria Federal Especializada e em um despacho comunicou o abandono de interesse da União na defesa do povo Tupinambá em ação judicial de reintegração de posse de área tradicional localizada na Serra das Trempes, Terra Indígena Tupinambá de Olivença, município de Buerarema (BA).
A ação ajuizada por Nadir Alexandrina Nunes pretende despejar os indígenas do imóvel chamado de Conjunto Santa Maria, incidente sobre a Terra Indígena. A demanda havia sido levada à Procuradoria da Funai pela Coordenação Técnica Local de Ilhéus. No despacho, o presidente da Funai se baseia no seguinte argumento: cabe aos “indígenas integrados” responder pelos seus atos porque trata-se de invasão à propriedade privada. Conforme o documento, o caso em tela “abarca atos de violação da posse praticados por indígenas a propriedades particulares, situadas dentro ou fora de perímetro demarcável, ou seja, em estudo ou não de identificação e delimitação”.
“É uma imoralidade. Não dá pra ser aceito de nenhum jeito. O presidente da Funai está agindo inconstitucionalmente. Não cabe a ele tomar essa decisão. A Constituição diz que cabe ao governo demarcar e proteger as áreas indígenas. Cabe à Funai, que é o órgão do governo responsável por isso, cumprir parte disso. Não pode violar a Constituição. Está empurrando os indígenas como se fossem um grupo de sem-terra. Isso é muito grave”, ataca o cacique Babau Tupinambá.
O cacique explica que a sua aldeia, a Serra do Padeiro, está como o alvo da ação de reintegração, mas a área em litígio fica na aldeia Serra das Trempes. “Estive com o cacique lá, nos reunimos. Vamos tomar as decisões em conjunto, um ajudando o outro”, diz.
“É uma imoralidade. Não dá pra ser aceito de nenhum jeito. O presidente da Funai está agindo inconstitucionalmente. Não cabe a ele tomar essa decisão”, afirma cacique Babau Tupinambá
Para o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Adelar Cupsinski, a decisão da Procuradoria e do presidente da Funai “está em completa desarmonia com o sentido da Constituição Federal de 1988 e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)”. Cupsinski explica que não existe mais a diferenciação entre indígenas integrados ou não integrados. “Isso não existe mais, todos são índios para a proteção de direitos. Se trata de uma interpretação que consta no Estatuto do Índio de 1973, mas que não foi recepcionada pela Constituição”, diz.
Em uma outra parte do despacho, o presidente da Funai assinala que a tese da tutela absoluta não teria sido recepcionada pela Constituição. Portanto, a Funai não teria a obrigação de defender os indígenas na medida em que eles podem se defender judicialmente, ou seja, não são tutelados. Cupsinski afirma que de fato os indígenas não dependem mais que apenas a Funai os represente judicialmente, mas rechaça o argumento apresentado pelo órgão indigenista no despacho.
“A Funai deve fazer a defesa dos seus atos administrativos. Não pode usar esse argumento de que não tem a tutela dos índios para não fazer a defesa judicial dos indígenas. A Funai tem a obrigação legal de fazer a defesa dos seus atos administrativos, caso de uma demarcação. A União, por sua vez, tem que fazer a defesa do patrimônio público, porque toda Terra Indígena é um patrimônio da União”, explica Cupsinski.
Retomada: ação presente na vida indígena desde os anos 70
Além de defender que cabe aos “indígenas integrados” responder pelos seus atos e não à Funai, o despacho é enfático em outro ponto: trata-se de invasão à propriedade privada. O argumento aparece em outros dois despachos envolvendo o povo Guarani Mbya da Terra Indígena Palmas, no Rio Grande do Sul, e o povo Guarani Kaiowá de Ñanderu Marangatu, no Mato Grosso do Sul. “Estamos falando de pretensas propriedades privadas. A Constituição é clara quando diz que ficam nulos os títulos de propriedade concedidos em áreas de ocupação tradicional indígena. A propriedade no Brasil é, em última instância, uma pretensão de propriedade”, declara a antropóloga Daniela Alarcon.
A antropóloga estuda o processo de retomadas do povo Tupinambá de Olivença, e tudo o que envolve o retorno destes indígenas ao território tradicional, desde 2010. Parte do esforço etnográfico de Daniela, tendo como foco as retomadas da aldeia Serra do Padeiro, está no recém publicado O Retorno da Terra (Editora Elefante, 2019). “O que ocorre no sul da Bahia, e em muitas regiões do país, não são invasões, mas recuperação de áreas indígenas que foram esbulhadas ao longo do tempo e, em muitos casos, com a participação do Estado brasileiro”, explica.
“Quando partem para a ação direta, para as retomadas de terras – que inúmeros povos fazem desde pelo menos os anos 70, mas que podem ter feito antes, com outras designações – o que esses grupos fazem é tentar garantir direitos que o Estado brasileiro viola. Poderíamos qualificar como cínico o argumento sustentado neste despacho”, enfatiza a antropóloga Daniela Alarcon
Em seu estudo, Daniela constata que o caso dos Tupinambá “deixa bastante claro que a apropriação dessas áreas ao longo do tempo foi viabilizada pelo Estado brasileiro, que não cumpriu suas responsabilidades de proteção dos direitos indígenas e atuou direta e indiretamente para beneficiar particulares. É o Estado que instaura o conflito na região. Já se vão 16 anos desde que o processo de demarcação teve início. A morosidade interessada do Estado é a responsável pelo conflito”.
Quando o despacho sustenta que o Estado não faz parte do conflito, que cabe aos indivíduos e grupos que se sentiram lesados pelas ações políticas dos Tupinambá responsabilizá-los, sem a mediação da Funai, “o que o Estado tenta fazer é se caracterizar como um ente externo ao conflito, quando é a inação do Estado que gera o conflito”, conclui.
Para sustentar argumentos frágeis e nada cabíveis, o despacho revela-se bastante ideologizado, na opinião da antropóloga, incluindo a própria escolha dos termos com que qualifica os acontecimentos tentando se ater a uma suposta objetividade, “mas na verdade, ele vai de encontro ao que a Constituição determina e ao que é a realidade social tratada pelo documento”. O que os Tupinambá fazem, sustenta Daniela, é nada mais do que lutar por direitos.
“Quando partem para a ação direta, para as retomadas de terras – que inúmeros povos fazem desde pelo menos os anos 70, mas que podem ter feito antes, com outras designações – o que esses grupos fazem é tentar garantir direitos que o Estado brasileiro viola. Poderíamos qualificar como cínico o argumento sustentado neste despacho”, enfatiza.
Demarcação impedida pelo governo federal
Todas as análises se voltam para um problema de origem: a morosidade na demarcação da Terra Indígena, cujo procedimento foi devolvido pelo Ministério da Justiça à Funai. Os Tupinambá não são os únicos prejudicados. A antropóloga Daniela Alarcon destaca que enquanto não se conclui o processo demarcatório, também não indígenas têm os seus direitos lesados. “Porque muitos deles têm direito à indenização pelas benfeitorias de boa-fé e mesmo reassentamento, para aqueles que têm perfil para a reforma agrária. Quando o Estado se exime, como faz, abre margem para a intensificação da criminalização dos indígenas, um processo bastante dramático, e lesa não indígenas também”, define.
A Terra Indígena Tupinambá de Olivença deveria ter sido demarcada ainda durante a gestão de Dilma Rousseff. O ministro da Justiça na ocasião, José Eduardo Cardozo, não deu prosseguimento à demarcação porque os Tupinambá se negaram a reduzir o tamanho da terra deixando de fora do relatório áreas tradicionais solicitadas pelo ministro como parte de um acordo costurado pelo próprio Ministério com os pretensos proprietários delas, as chamadas mesas de diálogo.
Após o impeachment, a demarcação emperrou de vez ao lado de outras também retidas nas gavetas do Ministério. Os anos passaram até a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto com seu discurso antidemarcação. Mas havia algo já pavimentado e Bolsonaro tratou de aproveitar. No final de janeiro deste ano, o ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro utilizou um parecer aprovado pelo então presidente Michel Temer para devolver à Funai 17 processos de demarcação de terras indígenas que estavam no órgão à espera de uma decisão do ministro. Entre eles o da Terra Indígena Tupinambá de Olivença.
“A Funai tem a obrigação legal de fazer a defesa dos seus atos administrativos, caso de uma demarcação. A União, por sua vez, tem que fazer a defesa do patrimônio público, porque toda Terra Indígena é um patrimônio da União”, explica o assessor jurídico do Cimi, Adelar Cupsinski
Este parecer, o 001, formulado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e assinado por Temer em 2017, impõe a aplicação administrativa da tese do Marco Temporal para toda e qualquer demarcação em curso. O Marco Temporal é uma interpretação jurídica restritiva ao direito indígena à terra e não prevista na Constituição. A tese afirma que uma Terra Indígena só pode ser demarcada caso o povo que a reivindica comprovar que estava sobre ela em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
“Enquanto o governo se nega a demarcar nossa terra, mesmo com todo o procedimento pronto para seguir adiante, a mineração invade as nossas aldeias, que é o caso da retirada de areia, sempre aparece uma reintegração de posse, ameaças e a ação de pistoleiros contra o nosso povo que já tirou a vida de muito Tupinambá”, declarou o cacique Ramon Tupinambá durante protestos do povo em Brasília. Cacique Ramon vive na aldeia Tucum, visitada em 2016 pela relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz. A relatora esteve ainda a aldeia Serra do Padeiro e concluiu que nenhuma das recomendações da ONU feitas em 2009 foram cumpridas, incluindo a demarcação.
O processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença já se estende por 16 anos. Todos os prazos legais estabelecidos pelo Decreto n° 1.775/1996 foram violados, conforme declaração do subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha. Durante todo este tempo, cacique Babau, seus irmãos Teite e Glicéria, além de outras lideranças, foram presos com acusações frágeis e sem provas. Indígenas foram assassinados, agredidos e tiveram casas nos municípios do entorno da Terra Indígena saqueadas e incendiadas.
A situação não mudou de quadro. Em fevereiro do ano passado, cacique Babau denunciou ao Ministério Público Federal (MPF) que ele e sua família eram alvos de um plano de assassinato. De acordo com a declaração do Tupinambá nos autos de denúncia, o plano teria sido urdido em uma reunião entre fazendeiros e policiais civis e militares da região de Ilhéus em um hotel de Itabuna, no sul do estado.