CNDH e MPF recomendam que Funai revogue medida que possibilita contato com isolados em meio à pandemia
Determinação contraria o regimento interno da própria Funai, indicam Conselho Nacional de Direitos Humanos e Ministério Público Federal
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e a Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF) recomendaram ao presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) que revogue a liberação de contato com povos indígenas em situação de isolamento voluntário durante a pandemia de coronavírus.
A determinação contestada pelos órgãos foi incluída pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier, numa portaria publicada nesta terça-feira (17). Em meio a “medidas excepcionais para a contenção da epidemia de covid-19”, como a restrição do acesso às terras indígenas para civis e a redução das atividades de agentes da Funai nos territórios, a portaria abre margem para a realização de contatos com povos indígenas isolados.
No seu quarto artigo, a portaria estabelece que “ficam suspensas todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas”, mas permite que essa determinação seja ignorada “caso a atividade [de contato] seja essencial à sobrevivência do grupo isolado”.
Segundo a portaria, a avaliação da necessidade e a autorização do contato caberia às Coordenações Regionais (CRs) da Funai, o que contraria o ordenamento interno do órgão indigenista estatal e coloca em cheque uma política de não contato e de respeito à autonomia dos povos indígenas isolados estabelecida há mais de três décadas.
O CNDH lembra que, segundo o regimento da própria Funai, compete à Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) coordenar e supervisionar “ações de contato e pós contato com povos indígenas isolados”.
O Conselho também destaca a existência de uma portaria conjunta do Ministério da Saúde e da própria Funai, publicada em 2018, que define “princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” e prevê normas específicas para atuação em caso de surtos e epidemias.
Entre outras coisas, a Portaria Conjunta nº 4.094 prevê a elaboração de um Plano de Contingência para Surtos e Epidemias, que deve ser produzido, executado e avaliado de forma conjunta pela Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (Sesai) e pela Funai, “em conformidade com suas atribuições técnicas e funcionais”.
A determinação conjunta também prevê a criação de uma “Sala de Situação”, voltada a agilizar o compartilhamento de informações entre estes mesmos órgãos para subsidiar a tomada de decisões.
Tanto o CNDH quanto o MPF recomendam ao presidente da Funai a revogação do artigo 4º da portaria, suprimindo a flexibilização da política de contato com povos isolados, e a implementação das medidas previstas na Portaria Conjunta do Ministério da Saúde e da Funai.
A Sexta Câmara do MPF recomenda ainda ao presidente da Funai que se abstenha de promover “ações e/ou atividades, laicas ou religiosas, terrestres, fluviais e/ou aéreas nas imediações dos povos isolados”.
Nesta quinta-feira (19), a Funai emitiu uma nota reafirmando o conteúdo da portaria e salientando que se trata de uma medida “temporária e excepcional”, decorrente da situação de emergência causada pela expansão do coronavírus.
“Essa medida da Funai é temerária, porque ela coloca o termo ‘excepcionalidade’ sem deixar claro do que isso se trata. E essa excepcionalidade pode vir a ser a possibilidade de abertura desses territórios para a entrada de não indígenas”, avalia Antônio Eduardo de Oliveira, Secretário Executivo do Cimi. “Esses territórios são alvo de disputa para a entrada de igrejas fundamentalistas e de projetos econômicos voltados à exploração dessas áreas”.
Há 114 registros de povos isolados ou livres no Brasil, segundo o último relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – 113 dos quais estão localizados na Amazônia Legal. Entre os setores que mais pressionam estes povos e seus territórios está o das mineradoras, como evidencia um levantamento feito em janeiro pelo Observatório da Mineração. A reportagem identificou que as terras com registro de indígenas isolados são alvo de quase 4 mil requerimentos minerários.
Loteamento político e proselitismo religioso
Além do desrespeito ao próprio regimento da Funai, preocupa a decisão de delegar aos coordenadores regionais do órgão a deliberação sobre a necessidade ou não de realizar possíveis contatos com povos indígenas isolados.
Sob o governo Bolsonaro, as coordenações regionais da Funai passaram a sofrer um processo intenso de loteamento político e de militarização – o que também ocorre nas diretorias e coordenações nacionais. Em Brasília, além do presidente Marcelo Xavier, outros dois delegados da Polícia Federal ocupam os cargos de Diretor de Proteção Territorial e de Coodenador-Geral de Monitoramento Territorial.
“Em todas as Coordenações Regionais houve substituições, principalmente aquelas que têm atuação em territórios com índios isolados. Colocaram militares, que estão ali para cumprir ordens”, avalia a coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré, em entrevista à agência Amazônia Real.
A nomeação de militares para coordenações regionais da Funai já gerou protestos de indígenas na CR Alto Solimões, no Amazonas, na CR Litoral Sudeste, em São Paulo, e na CR Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
A recente nomeação do pastor evangélico Ricardo Lopes Dias para a coordenação de povos isolados da Funai também foi alvo de críticas de diversas organizações indígenas e indigenistas. O MPF ajuizou uma ação civil pública para suspender a nomeação do missionário, ex-integrante da Missão Novas Tribos do Brasil.
Desde a nomeação, ocorrida em fevereiro, povos indígenas têm denunciado a pressão e a presença de missionários ligados ao fundamentalismo religioso em áreas com indígenas isolados e de recente contato.
Em março, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) denunciou que “alguns missionários vêm intensificando ações de cooptação de indígenas” na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, e lideranças denunciaram a presença de membros da Missão Novas Tribos do Brasil em aldeias do povo Deni do rio Xeruã, na região do rio Purus, no Amazonas.