20/02/2020

STF suspende efeitos do Parecer Antidemarcação da AGU em processo sobre terra indígena do povo Xokleng

Criado ainda sob governo Temer, o Parecer 001/2017 vem sendo usado por Bolsonaro e Moro para barrar demarcações

Povo Xokleng acompanha audiência sobre ACO 1100 no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Povo Xokleng acompanha audiência sobre ACO 1100 no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi

Em decisão proferida nesta quinta-feira (20), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnô, do povo Xokleng, localizada em Santa Catarina. Também conhecido como Parecer Antidemarcação, este instrumento criado sob determinação de Michel Temer segue sendo utilizado pelo governo Bolsonaro para inviabilizar e reverter demarcações de terras indígenas.

Fachin atendeu a um pedido feito pelo povo Xokleng no âmbito da Ação Cível Originária (ACO) 1100, que discute a demarcação de sua terra tradicional. Embora se aplique somente a esta terra indígena, a decisão é entendida como precedente importante para que o Parecer seja derrubado e seus efeitos sobre as terras indígenas sejam interrompidos.

Recentemente, os processos demarcatórios de ao menos 17 terras indígenas foram devolvidos à Funai, para que fossem revistos com base no Parecer Antidemarcação. A ação do ministro da Justiça, Sérgio Moro, afetou cinco terras que aguardavam decreto de homologação da Casa Civil e outras 12 terras que aguardavam a emissão de portaria declaratória.

“Essa decisão traz benefícios não só para o povo Xokleng, mas para todas as terras indígenas”

“Esse Parecer acolhe as teses do marco temporal e as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol”, explica Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Cimi e um dos advogados do povo Xokleng no processo.

O território de ocupação tradicional do povo Xokleng foi sucessivamente reduzido ao longo dos séculos XIX e XX – período durante o qual o próprio povo foi perseguido e morto pelos chamados “bugreiros”. Nos anos 1990, os indígenas buscaram a revisão dos limites de sua terra, para incluir na demarcação áreas que haviam sido excluídas do perímetro reservado aos Xokleng até então.

O relatório de identificação e delimitação da revisão de limites da TI Ibirama La-Klãnô foi concluído pela Funai e a portaria declaratória da área foi publicada pelo Ministério da Justiça em 2003, mas agricultores e empresários da região contestaram judicialmente a demarcação por meio da ACO 1100.

Recentemente, em suas alegações finais no processo, a União juntou o Parecer Antidemarcação e pediu que o caso Xokleng fosse analisado segundo as suas orientações.

“O pedido da União poderia resultar na negativa dos direitos territoriais indígenas”, aponta Cupsinski.

“Considerando que havia o risco do processo dos Xokleng ser devolvido do Ministério da Justiça para a Funai, desconstruindo o que já havia sido elaborado e aprovado nas diferentes fases do processo demarcatório, nós ingressamos no STF, a pedido da comunidade, com essa solicitação”.

O pedido, originalmente, solicitava a suspensão de todos efeitos do Parecer 001/2017. Fachin, entretanto, atendeu ao pedido referente apenas à TI Ibirama La-Klãnô. Apesar disso, na avaliação de Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng, a decisão trará benefícios “não só para nosso povo, mas para todas as terras indígenas do Brasil”.

“Acho que isso ajuda bastante na demarcação das terras indígenas e também no respeito aos povos em luta por suas terras tradicionais e seus direitos, que jamais podem ser esquecidos pelas autoridades e pela lei”, avalia a liderança.

Clique aqui para ler o pedido dos Xokleng analisado por Fachin

Clique aqui para acessar a decisão do ministro

“Essa decisão reforça a leitura de que a paralisação das demarcações de terras indígenas e o Parecer são totalmente inconstitucionais”

Indígenas protestam contra Parecer Antidemarcação na Advocacia-Geral da União. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Indígenas protestam contra Parecer Antidemarcação na Advocacia-Geral da União. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Parecer Antidemarcação

Elaborado em 2017 pela AGU e publicado pelo presidente Michel Temer, o Parecer 001/2017 busca vincular toda a administração pública e obrigar todos os órgãos do Executivo, inclusive a Funai, a aplicarem as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol e a tese do marco temporal em qualquer procedimento envolvendo demarcação de terras indígenas.

Sob a justificativa de aplicar as definições do STF sobre o tema das demarcações de terras indígenas, a AGU assumiu como “jurisprudência consolidada” o caso Raposa e um pequeno conjunto de decisões da Segunda Turma do STF, ignorando diversas outras decisões que iam em sentido oposto.

Além das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol – que impedem, por exemplo, a revisão de limites de terras já demarcadas – o Parecer incorporou a tese do marco temporal. Defendida por ruralistas, o marco temporal é uma reinterpretação da Constituição Federal segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse comprovada em 5 de outubro de 1988.

Desde então, o Parecer Antidemarcação vem sendo amplamente criticado por povos indígenas, organizações indigenistas e juristas. Por outro lado, segue sendo utilizada pelo governo Bolsonaro como recurso para barrar ou retroceder processos demarcatórios.

“Apesar de se escudar em uma suposta jurisprudência do STF, que se comprovou não existir, o governo brasileiro se utiliza de artifícios para sonegar os direitos dos índios aos seus territórios”, aponta nota técnica sobre o Parecer produzida pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2018.

Para o secretário Executivo do Cimi, Eduardo Antônio de Oliveira, a recente decisão no STF abre espaço para novos questionamentos ao Parecer na Justiça e para outras decisões favoráveis à regularização dos territórios indígenas.

“Essa decisão vem ao encontro da nossa leitura de que a paralisação das demarcações de terras indígenas e o Parecer são totalmente inconstitucionais. Portanto, é uma vitória no âmbito do Judiciário, reforçada pela mobilização dos povos indígenas e aliados. Temos que continuar lutando”, avalia Oliveira.

Admitidas como parte do processo, lideranças do povo Xokleng falam durante audiência no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Admitidas como parte do processo, lideranças do povo Xokleng falam durante audiência no STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Acesso à Justiça mudou rumo do processo

A recente decisão do ministro Edson Fachin só foi possível porque o povo Xokleng é parte no processo da ACO 1100. Em 2016, após um pedido dos indígenas, os Xokleng foram admitidos como parte interessada no processo que discutia a demarcação de seu território.

“Aquela decisão permitiu que a comunidade indígena questionasse, no processo, o Parecer 001/2017 da AGU”, avalia Adelar Cupsinski.

“É uma decisão responsável do STF e uma forma de respeito aos povos indígenas”

A admissão da comunidade Xokleng como parte do processo judicial que discute a demarcação de seu território representou uma importante vitória na luta por acesso à Justiça que é travada cotidianamente pelos povos indígenas em todas as instâncias do Judiciário.

Embora a tutela dos povos indígenas tenha sido superada pela Constituição Federal de 1988, na prática, a maioria das decisões judiciais que afetam os povos originários – muitas vezes, anulando demarcações ou determinando reintegrações de posse – são tomadas sem que os indígenas sequer sejam ouvidos.

“Essa é uma decisão responsável do Supremo Tribunal Federal e uma forma de respeito aos povos indígenas. Seria importante, como foi para nós participar do processo, que todos os outros povos também seguissem nessa linha”, afirma Brasílio Priprá.

 

Repercussão Geral

A TI Ibirama La-Klãnô também é tema de outro processo, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discute a posse de parte do território Xokleng. Este processo teve sua repercussão geral reconhecida pelo STF, de maneira que a decisão tomada neste caso terá consequências para todas as terras indígenas do Brasil.

O povo Xokleng também foi reconhecido como parte neste processo, igualmente sob relatoria do ministro Edson Fachin. Diversas organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas já foram admitidas no processo como “amigas da corte” e buscam influenciar o STF a reafirmar o caráter originário dos direitos indígenas declarados na Constituição Federal.

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