Em semana de lutas, povos da região Sul questionam marco temporal e exigem demarcação de suas terras
Lideranças também pediram a rejeição do projeto do governo Bolsonaro que libera a a mineração e empreendimentos em terras indígenas
Durante uma semana de lutas em Brasília, lideranças indígenas da região Sul do país buscaram respostas de órgãos do Poder Executivo e pediram a parlamentares, especialmente ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que barrem o Projeto de Lei (PL) 191/2020. O projeto do governo Bolsonaro pretende abrir as terras indígenas para a mineração, garimpo, hidrelétricas, agronegócio e exploração de petróleo e gás natural.
Os indígenas realizaram uma marcha pela Esplanada dos Ministérios contra o PL de Bolsonaro na quarta-feira (12). A manifestação culminou com a entrega de uma carta da delegação à chefe de gabinete do presidente da Câmara, a quem pediram que mantenha o compromisso assumido com os povos indígenas do Brasil. Ano passado, Maia afirmou que não permitiria projetos desta natureza avançarem na casa legislativa presidida por ele.
“Esse PL é um projeto de morte para os povos indígenas. Por isso, Rodrigo Maia, pedimos a você: não seja cúmplice do genocídio dos povos indígenas do Brasil”, afirmam as lideranças dos povos Guarani, Ava Guarani, Guarani Mbya, Kaingang e Xokleng no documento. “Nosso futuro, hoje, está em suas mãos. Esperamos que elas não se sujem com nosso sangue”.
Junto ao Executivo, as lideranças indígenas também fizeram uma série de questionamentos e entregaram documentos com reivindicações aos ministérios da Justiça (MJ), da Saúde e da Educação, além da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Esse governo vem tentando tirar nossos direitos garantidos na Constituição. Não houve nenhuma gestão em que os povos indígenas tenham sofrido mais”
No MJ, as lideranças questionaram a paralisação da demarcação de terras indígenas e a recente devolução de ao menos 17 processos demarcatórios em estágio avançado para revisão da Funai, com base no Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU).
O Parecer, considerado inconstitucional, prevê a aplicação da tese do marco temporal pelo Poder Executivo, consolidando uma reinterpretação da Constituição Federal que atende aos interesses dos ruralistas. Segundo esta tese, os povos indígenas teriam direito apenas à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Esta leitura, defendida pela bancada ruralista e outros setores econômicos interessados na exploração das terras indígenas, legitima a violência, as invasões e as violações de que os povos indígenas foram vítimas antes da promulgação da Constituição e que consolidaram o roubo de suas terras tradicionais.
“Sem que [o marco temporal] tenha sido aprovado, já estão tentando devolvendo nossos processos de demarcação”, questiona Zauri dos Santos Kaingang, liderança da Terra Indígena (TI) Toldo Imbu. Sua terra indígena, localizada em Santa Catarina, foi uma das afetadas pela medida.
“O ministério da Justiça devolveu nossa terra para a Funai. Já estamos esperando na nossa aldeia há quase vinte anos, só faltava a homologação. Esse governo vem, a cada dia, tentando tirar os nossos direitos que estão garantidos na Constituição. Não houve nenhuma gestão em que os povos indígenas tenham sofrido mais”, afirma Zauri.
“A suspensão das cestas básicas vai totalmente contra a própria função da Funai. Quem mais precisa de assistência é quem está sendo afetado”
Corte de cestas básicas será revisto, afirma diretor da Funai
Na Funai, a delegação de lideranças foi recebida pelo coordenador da Diretoria de Proteção Territorial (DPT), Alexandre Silveira de Oliveira. Os questionamentos foram tão variados quanto a gama de ataques recentes que o órgão indigenista oficial tem feito contra os direitos dos povos indígenas.
As lideranças pediram explicações sobre a recente nomeação de uma pessoa ligada ao fundamentalismo religioso para a Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), sobre a nomeação de pessoas ligadas à bancada ruralista nas coordenações regionais do órgão, sobre manifestações preconceituosas de pessoas com cargos de direção na Funai e sobre a suspensão de cestas básicas a “tribos” invasoras de “propriedades privadas”.
“Muitas coisas estão sendo feitas sem que nos perguntem se são coisas boas ou não”, questionou Maria Inês de Freitas Kaingang. “A suspensão das cestas básicas vai totalmente contra a própria função da Funai. Justamente quem mais precisa de assistência é quem está sendo afetado”.
Depois de apresentar a justificativa técnica para a medida – a suposta judicialização da Funai – o coordenador da DPT afirmou que, a pedido do ministro da Justiça, Sérgio Moro, pasta à qual o órgão está vinculado, esta medida está sendo revista. O pedido do ministro só foi feito depois que a situação ganhou ampla repercussão e foi questionada pelo Ministério Público Federal (MPF).
“Ele disse ‘isso aí não está correto, revejam essa posição’. Então, já foi revista a posição, a Funai vai voltar a fazer a distribuição. Quando ela não puder entrar na área junto com o pessoal que vai fornecer as cestas básicas, ela vai marcar um local para que vocês recebam estas cestas básicas – pode ser na CR [Coordenação Regional], ou na CTL [Coordenação Técnica Local], quando houver”, afirmou Oliveira.
Após as variadas críticas de lideranças indígenas a respeito das políticas anti-indígenas do governo Bolsonaro, o diretor da DPT afirmou que havia “exageros da imprensa” e que não via razão para se achar que o presidente tinha algo contra os povos indígenas. As lideranças não contiveram os risos.
Os questionamentos quanto à aplicação do marco temporal e do Parecer 001/2017 da AGU também foram respondidos com a justificativa de que seriam apenas questões técnicas.
“Hoje, a Funai tem medo dos fazendeiros, mas não tem medo dos indígenas”, rebateu Rodrigo Mariano, advogado Guarani Mbya e assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). “Sabemos que são medidas tomadas para retirar nossos direitos e inviabilizar as demarcações de terras. O que pedimos é que essas medidas sejam revistas, senão a única alternativa que vai nos restar será a judicialização”.
“O marco temporal é uma invenção dos ruralistas para mudar o sentido da Constituição e legitimar o roubo das nossas terras”
Repercussão Geral contra o marco temporal
Além das cobranças junto ao Executivo e ao Legislativo, as lideranças também solicitaram a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que reafirmem os direitos garantidos aos povos originários na Constituição Federal. Na quinta (13) à tarde, mesmo sob chuva, realizaram uma caminhada e um ato em frente à Suprema Corte.
Os povos indígenas buscam que a Suprema Corte garanta seus direitos originários no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, processo que discute a posse da terra tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina, mas que teve sua repercussão geral reconhecida pelo STF e pode, por isso, definir o futuro de todas as terras indígenas no Brasil.
Ao reconhecer por unanimidade a repercussão geral do RE 1.017.365, o STF apontou a necessidade de tomar uma decisão definitiva sobre as disputas envolvendo terras indígenas. Um dos principais focos de disputa é entre o conceito de direitos originários e a tese do marco temporal.
As lideranças indígenas da região Sul do país reforçaram aos ministros do STF o pedido para que a Corte reafirme seus direitos originários e enterre de forma definitiva a tese do marco temporal, que mesmo sem determinação do Supremo, vem sendo aplicada em decisões judiciais e medidas do Poder Executivo.
O marco temporal é “uma invenção dos ruralistas para mudar o sentido da Constituição e legitimar o roubo das nossas terras”, afirma o documento entregue pelas lideranças às autoridades.
Confira abaixo as reivindicações da delegação ou clique aqui para ler o documento entregue às autoridades:
– a rejeição do PL 191/2020, um projeto de morte e devastação para nossos povos e territórios;
– que o governo federal retome as demarcações de terras indígenas;
– que a Funai retome suas atividades locais, nas terras indígenas, atendendo inclusive as aldeias não demarcadas;
– o fim das nomeações de capachos de fazendeiros e fundamentalistas religiosos para cargos de direção da Funai;
– a continuidade da defesa judicial de nossos direitos por parte da Funai e da AGU;
– anulação dos atos do presidente da Funai que determinam que a Procuradoria Federal Especializada desista de ações judicias que dizem respeito aos nossos direitos. Terras indígenas são bens da União (art. 20 da Constituição Federal de 1988) e é obrigação do governo fazer a defesa dos interesses públicos e de seus bens;
– que o governo federal volte a investir na educação escolar indígena e na permanência indígena no ensino superior, garantindo a Bolsa Permanência a todos e todas os estudantes indígenas e quilombolas que ingressaram na universidade;
– o respeito à Constituição Federal e a anulação do Parecer 001/2017 da AGU, que segue violentando nossos direitos;
– a manutenção do Decreto 1775/1996, sem modificações. Não aceitaremos mudanças no procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.