Em meio a ataques e agressões contra indígenas, juiz anula demarcação em Guaíra e Terra Roxa
“O clima começou a ficar tenso. Estão achando que podem nos expulsar com força bruta”, afirma liderança Avá-Guarani
Uma decisão da Justiça Federal de Guaíra, no Paraná, adicionou mais tensão ao já difícil contexto vivido pelos indígenas Avá-Guarani e Guarani Mbya da região oeste do estado. Em sentença proferida no dia 17 de fevereiro, o juiz Gustavo Chies Cignachi determinou a suspensão de qualquer ato de demarcação de terras indígenas nos municípios de Guaíra e Terra Roxa e a anulação do relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, que compreende 14 aldeias Guarani localizadas em ambas as cidades.
O juiz atende ao pedido da prefeitura de Guaíra e determina, ainda, multa diária de 75 mil reais à Fundação Nacional do Índio em caso de descumprimento da decisão. A medida ocorre em meio a relatos recentes de agressão física, ameaças e ataques a tiros contra indígenas nas aldeias da região.
“Essa decisão do juiz de nenhuma maneira vai fazer com que a gente abandone as terras que estamos ocupando”
“Essa é uma decisão que nos preocupa”, avalia o Avá-Guarani Ilson Soares, cacique do Tekoha Yhovy, que fica em Guaíra e é um dos que compõem a TI Tekoha Guasu Guavirá.
“Aqui na cidade, o clima começou a ficar tenso, porque eles estão achando que podem fazer o que quiserem, que estão vencendo e querem aproveitar isso para pisar na gente. Estão achando que podem tirar a gente da área que a gente ocupa usando de força bruta”, relata o cacique.
“Mas era algo que já prevíamos que poderia acontecer. Já faz tempo que o município reclama de não ter tido participação. Essa decisão do juiz de nenhuma maneira vai fazer com que a gente abandone as terras que estamos ocupando”, completa Ilson.
“Essa sentença carrega vícios insanáveis”
Decisão contém ilegalidades
O juiz da 1ª Vara Federal de Guaíra atende, em sua decisão, à solicitação do município de Guaíra, que argumenta que a demarcação deveria ser anulada porque a Funai não permitiu ao município participar dos estudos e levantamentos realizados para a demarcação da TI Tekoha Guasu Guavirá.
Na avaliação do assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Rafael Modesto dos Santos, a decisão apresenta diversas ilegalidades, contraria determinações de instâncias superiores e não tem condições de se sustentar.
“Há vícios insanáveis no processo, como, por exemplo, a falta de citação válida dos indígenas como partes imediatamente afetadas. Além disso, ninguém pode pleitear direito alheio em nome próprio e os municípios autores não têm legitimidade para defender a propriedade privada. O município não pode ser tutor de posseiros ou sitiantes”, avalia o advogado.
O juiz Cignachi cita o caso Raposa Serra do Sul como referência para a suposta obrigatoriedade de participação dos municípios “desde o início” dos processos demarcatórios. Rafael explica, entretanto, que a decisão do caso Raposa não foi vinculante e não se sobrepõe ao Decreto 1775/96, que regulamenta as demarcações de terras no Brasil.
“O Decreto 1775 não prevê a obrigatoriedade da participação do município, apenas a fixação do edital na sede da prefeitura. Ademais, há espaço para a participação dos entes federados na fase de contestação, prevista pelo próprio decreto”, salienta Rafael. “Os Tribunais Superiores vêm decidindo nesse sentido, como ocorreu nos casos Tupinambá e Pataxó, no STJ, e Jenipapo-Kanindé, no STF. Essa sentença, sem dúvida nenhuma, será anulada por carregar vícios insanáveis”.
O juiz ainda defende que “as comunidades indígenas obviamente estiveram em posição privilegiada em detrimento de demais interessados” durante os estudos de demarcação, o que ofenderia os “princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia” – uma posição que também contradiz tribunais superiores, lembra Rafael Modesto.
“A Suprema Corte já disse que os laudos antropológicos são necessários, tem método científico próprio e são o meio de prova mais eficaz pra aferir sobre a tradicionalidade da ocupação indígena”, destaca o assessor.
A demarcação do Tekoha Guasu Guavirá, identificada em outubro de 2018 pela Funai, já estava suspensa desde o início do ano passado, quando a quarta turma do Tribunal Regional Federal da quarta região (TRF-4) atendeu ao pedido da Federação dos Agricultores do Estado do Paraná (FAEP).
Juiz já havia decidido contra indígenas
Esta não é a primeira decisão que o juiz da 1ª Vara Federal de Guaíra, Gustavo Chies Cignachi, profere contra os Avá-Guarani de Guaíra e Terra Roxa. Em março do ano passado, Cignachi proibiu os indígenas de realizarem manifestações em rodovias da região.
Atendendo a pedido da Advocacia-Geral da União, o juiz ainda estabeleceu uma multa de cinco mil reais por hora para cada indígena em caso de descumprimento da decisão e determinou que o Conselho Tutelar de Guaíra recolhesse “crianças e menores indígenas”, caso estas participassem de algum protesto. A decisão foi suspensa e a ação extinta em julho pela 2ª Vara Federal de Umuarama.
“Isso acontece porque estamos reocupando nossos tekoha. Eles querem fazer a gente desistir da luta, do nosso território”.
Agressões e ataques continuam
A decisão da Justiça Federal pode agravar os conflitos que já estão deflagrados na região oeste do Paraná. Os Ava-Guarani do tekoha Yvyraty Porã, que integra a TI Guasu Guavirá, denunciam que continuam sendo vítimas de ameaças, ataques a tiros e agressões – uma situação recorrente que também se repetiu nas últimas semanas.
No dia 9 de fevereiro, um indígena foi agredido depois de questionar um homem que dirigia pela área do tekoha sem a autorização das lideranças. O agressor estava acompanhado e, segundo os Avá-Guarani, carregava uma arma no interior de seu veículo. A agressão foi filmada pelos indígenas.
“Quando chamamos a Polícia Militar, a Polícia Civil, eles disseram que precisam de autorização da Funai para nos atender”, relata uma liderança do tekoha, cuja identidade não será revelada por motivo de segurança. “Eles [os agressores] falam: pode fazer as denúncias onde você quiser. E ficamos com medo, porque já fomos em vários lugares e nunca fomos atendidos”.
Os indígenas relatam que aos finais de semana, com frequência tiros são disparados contra a aldeia. “Eles ameaçam, falam que ali não é lugar dos índios, que índio é vagabundo, que não trabalha”, afirma a liderança.
Tentativas de atropelamento também são comuns. Um agente de saúde indígena, não identificado pela mesma razão, conta que estava acompanhando um paciente para o atendimento médico por uma das estradas que margeiam o tekoha quando viram um carro acelerar em sua direção.
“Vimos o carro vindo e nos jogamos, pulamos uma cerca para escapar. Isso é comum. Quando vemos um carro vindo, já ficamos atentos”, explica o agente. “Isso acontece porque estamos reocupando nossos tekoha. Eles querem fazer a gente desistir da luta, desistir do nosso território”.
A situação de desamparo por parte das autoridades policiais contribui para aprofundar a insegurança em que vivem os Avá-Guarani. Uma situação ocorrida no tekoha Tajy Poty, que também compõe a TI Guasu Guavirá, é outro exemplo desta situação.
Segundo o relato dos indígenas, eles acolheram em seu tekoha um não-indígena paraguaio que havia sido expulso da fazenda onde trabalhava. Passado algum tempo, ele estuprou uma mulher indígena.
Os Avá-Guarani chamaram a polícia e, como não obtiveram resposta, acabaram agredindo e algemando o homem, antes de chamar uma ambulância para encaminhá-lo ao hospital. Quando o fazendeiro tomou conhecimento da agressão, passou a ameaçar de morte lideranças da aldeia.