DPU pede explicação e organizações se manifestam contra fundamentalismo religioso na Funai
A Defensoria Pública da União pediu explicações sobre a proposta de nomeação de fundamentalista religioso para a coordenação de povos isolados
Organizações indígenas, indigenistas e entidades da sociedade civil têm denunciado, desde a semana passada, o risco de abertura de uma das áreas mais sensíveis da Fundação Nacional do Índio (Funai) ao fundamentalismo religioso. As manifestações ocorreram depois da notícia, divulgada pela imprensa, do convite feito pelo presidente da Funai a um ex-integrante da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) para assumir a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC).
A MNTB tem um longo histórico de desrespeito aos povos indígenas e, especialmente, aos povos em situação de isolamento voluntário ou de contato recente com a sociedade não indígena, os quais são alvo de sua política fundamentalista de conversão evangélica e de desobediência à diretriz de não contato com povos isolados. Ricardo Lopes Dias, que atuou durante pelo menos dez anos pela MNTB, confirmou ter recebido o convite do presidente da Funai, o delegado Marcelo Xavier.
A notícia da indicação foi precedida por uma alteração em um regulamento interno da Funai, que permitia apenas que servidores do quadro técnico do órgão assumissem a chefia da coordenação que lida com o sensível tema dos povos livres ou isolados. Com a mudança, qualquer pessoa passou a ser considerada apta para assumir a área mais delicada do órgão indigenista oficial.
A Defensoria Pública da União (DPU), em ofício dirigido à presidência da Funai, pediu explicações acerca “das políticas de proteção aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato” e dos cuidados para que “a mudança no cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato não agrave as vulnerabilidades já enfrentadas por estes povos”.
No documento, A DPU manifestou preocupação com as mudanças no setor e afirmou que o risco de uma nomeação que não atenda a critérios técnicos na coordenação responsável pelos povos em isolamento voluntário e de recente contato “é a morte em massa de indígenas, decorrente de doenças a partir do contato irresponsável ou dos conflitos flagrantes com missões religiosas, madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais”.
A Defensoria ressalta, ainda, que a nomeação exclusiva de servidores do quadro técnico da Funai para a Coordenação em questão “traz uma garantia a mais para este tipo de política indigenista”. Ao coordenador, defende a DPU, não basta “somente um título acadêmico que supostamente cumpra um requisito legal”.
O ofício menciona, ainda, o reconhecimento internacional da política de proteção aos povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato, agora sob risco, e cita a recente recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), para que o Brasil estabeleça “mecanismos eficazes de proteção para prevenir e erradicar o acesso de terceiros aos territórios onde esses povos estão presentes”.
“A Funai, dirigida por um delegado indicado pela bancada ruralista, segue atentando contra os direitos dos povos indígenas, desmontando o órgão indigenista federal e uma política de não contato que tem reconhecimento internacional”
Organizações temem genocídio
Organizações indígenas, indigenistas e entidades da sociedade civil manifestaram indignação e preocupação com as recentes medidas da presidência da Funai e o risco de abertura de uma das áreas mais sensíveis do órgão ao fundamentalismo religioso.
“A Funai, dirigida por um delegado da Polícia Federal, indicado pela bancada ruralista, segue com mais este ato, atentando contra os direitos dos povos indígenas, desmontando o órgão indigenista federal e uma política de não contato com povos indígenas isolados iniciada em 1987 e que tem reconhecimento internacional”, afirmou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“As conquistas consolidadas por décadas na proteção aos índios isolados passam a estar ameaçadas”, criticou a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), que classificou a indicação como “estúpida e irresponsável”.
Em nota de repúdio, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) denunciou “os crimes de genocídio e etnocídio que serão cometidos contra os nossos parentes isolados e de recente contato caso se concretize a nomeação de uma pessoa ligada às atividades de proselitismo religioso” para a CGIIRC.
A Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP) também manifestou seu repúdio à indicação, afirmando que “a MNTB é uma missão cuja atuação proselitista tem provocado o etnocídio de vários povos amazônicos, contribuindo para a abertura das terras indígenas à exploração econômica dos garimpos, madeireiros, caçadores e pescadores”.
A Indigenistas Associados (INA), organização de indigenistas da Funai, também alertou para o “risco de danos irreparáveis” com a nomeação pretendida. “É em função da extrema vulnerabilidade destes povos que o cargo em questão, até o momento, foi ocupado apenas por profissionais com experiência”.
“Para povos indígenas isolados e de recente contato, amadorismos e experimentações como esta podem causar, rapidamente, danos irreparáveis, correndo-se riscos de genocídios e alterações traumáticas na organização social e cultural dos povos”, salienta a entidade.
Servidores da CGIIRC e das Frentes de Proteção Etnoambiental da Funai – bases de atuação local responsáveis pela proteção dos territórios onde há presença de povos isolados e de recente contato – emitiram uma carta na qual destacam a falta de diálogo e de qualificação técnica na indicação e pedem “a revogação do trâmite de nomeação de Ricardo Lopes Dias”.
“Se concretizar a referida indicação e acabar com a política de proteção dos índios isolados ou de recém contato, [Bolsonaro] será responsável por desencadear um processo de genocídio e etnocídio desses povos, representando um evidente crime contra a humanidade”
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em nota pública, também ressaltou a política de não contato, consolidada nas últimas décadas, como uma referência internacional no respeito aos povos isolados, “produto de uma avaliação crítica de políticas de contato provocado pelo próprio Estado” no passado e responsável por “inúmeras tragédias individuais e coletivas”.
“Se concretizar a referida indicação e acabar com a política de proteção dos índios isolados ou de recém contato, [o governo Bolsonaro] será responsável pelo desencadear-se de um processo de genocídio e etnocídio desses povos, representando um evidente crime contra a humanidade”, afirma a ABA.
“Colocar um missionário evangélico no comando do departamento de índios isolados da Funai é como colocar uma raposa no galinheiro”, afirmou Sarah Shenker, da Survival International.
Pesquisadores do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP) manifestaram repúdio à indicação para a CGIIRC, ressaltando o risco de mortes em massa e “situações de ameaça aos direitos humanos e às garantias constitucionais” que uma mudança na política da Funai para os povos isolados pode acarretar.
O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) defendeu, também em nota, que é “imperativo que o governo reavalie sua decisão” e afirmou que acompanhará o caso.
“A concepção evangelizadora que acompanha uma política pública que deve ser isenta de toda e qualquer lógica religiosa. Povos indígenas têm um patrimônio cultural e espiritual próprios. É dever do Estado protegê-los e garantir a sua preservação”, afirma o Conic.
Para o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), se consumada, a indicação para a CGIIRC e a mudança na política da Funai para isolados “significará o maior retrocesso na proteção de povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil desde a redemocratização do país”.
Os riscos que a alteração nesta política pública remontam a situações vivenciadas por diversos povos indígenas no passado recente do Brasil. Reportagem do Instituto Socioambiental (ISA) lembra que alguns povos chegaram a perder 90% de sua população após tentativas desastradas de contato, em decorrência de doenças e massacres.
O Conselho Indigenista Missionário – Cimi, também em nota pública, manifestou “grave preocupação e veemente repúdio” em relação às medidas recentes da presidência da Funai.
“O governo Bolsonaro dá evidentes sinais de abandono à perspectiva técnico-científica, do respeito ao direito de existência livre desses povos, com seus próprios usos, costumes, crenças e tradições, em seus territórios devidamente reconhecidos e protegidos, para uma orientação neocolonialista e etnocida, de atração e contato forçados, com o uso do fundamentalismo religioso como instrumento para liberar os territórios destes povos à exploração por grandes fazendeiros e mineradores”, afirma a nota.