31/01/2020

Procuradoria da República chama de torpe decisão da Funai de não levar alimentos a áreas tradicionais sem demarcação

A Procuradoria da República recomenda “o retorno imediato da entrega de alimentos do Programa de Segurança Alimentar às famílias indígenas”

Criança Guarani Kaiowá acompanha sessão no plenário do STF. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Criança Guarani Kaiowá acompanha sessão no plenário do STF. Crédito da foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Assessoria de Comunicação – Cimi

Em recomendação endereçada à Fundação Nacional do Índio (Funai) na segunda-feira, 27, o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria da República de Dourados, no Mato Grosso do Sul, afirmou que o órgão indigenista, ao se negar a entregar cestas básicas em áreas indígenas ainda não demarcadas, “estaria se beneficiando da própria torpeza” uma vez que a não identificação e delimitação das terras indígenas é ocasionada pelo atraso da própria autarquia.

A Procuradoria da República recomenda “o retorno imediato da entrega de alimentos do Programa de Segurança Alimentar e Nutricional às famílias dos povos indígenas Kaiowá e Guarani que se encontrem em terras indígenas, identificadas administrativamente ou não”. Também estipulou um prazo de 48 horas para o restabelecimento da prestação do serviço sob risco de arcar com medidas administrativas e ações judiciais.

No dia 16 de janeiro, o Procurador-Chefe da Funai, Álvaro Osório do Valle Simeão emitiu um despacho à Coordenação Regional (CR) Litoral Sul do órgão indigenista, em Santa Catarina, e recomendou que “tribos” invasoras de “propriedades privadas” não devem receber cestas básicas. O advogado da União recomendou que o serviço fosse prestado apenas em terras identificadas e demarcadas. Em contraponto, caso a Funai mantenha a assistência, alimentaria “o ato de invasão e de dano material privado”.

Os procuradores Marco Antonio Delfino de Almeida e Marcelo José da Silva revelam na recomendação que um ofício interno da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) informa sobre a suspensão temporária das entregas de cestas nas áreas jurisdicionadas pela Coordenação de Ponta Porã, devido a não participação da Coordenação Regional da Funai nas ações de distribuição de alimentos que estavam programadas para os dias 21, 22, 23, 28, 29 e 30 de janeiro deste ano.

A Funai “estaria se beneficiando da própria torpeza” uma vez que a não identificação e delimitação das terras indígenas é ocasionada pelo atraso da própria autarquia

Além disso, os procuradores tomaram conhecimento “sobre o possível perecimento das cestas de alimentos, sendo que foi realizada diligência de inspeção na Companhia Nacional de Abastecimento, oportunidade em que se constatou que parte dos produtos possuem prazo de vencimento para os próximos três meses (Relatório Técnico n. 07/2020)”. Enquanto centenas de indígenas perecem em acampamentos precários, por falta de demarcação, quilos de comida estragam nos depósitos da Conab.

“A maioria das terras indígenas localizadas no Estado de Mato Grosso do Sul estão sob disputa judicial (…) grande parte possui decisões judiciais quanto à reintegração de posse”, diz trecho da recomendação. Os procuradores citam ainda a Convenção 169 que reconhece “como terras indígenas os espaços indispensáveis ao exercício dos direitos identitários, bem como se entende por território indígena a totalidade do habitat das regiões que esses povos ocupam ou utilizam de alguma forma”.

Na recomendação ainda há trecho da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Nela está considera como discriminação múltipla “qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes”.

Guarani e Kaiowá manifestam-se durante visita à TI Guyraroka. Foto: CIDH/divulgação

Guarani e Kaiowá manifestam-se durante visita à TI Guyraroka. Foto: CIDH/divulgação

Crime contra a humanidade

Para os procurados, não restam dúvidas quanto ao fato de que a interrupção do fornecimento de cestas básicas acarreta em crime contra a humanidade. Documento publicado pela Organização das nações Unidas (ONU), o Fact Shett No.25, Forced Evictions and Human Rights, dispõe que a caracterização da remoção forçada de populações de seus territórios não ocorre apenas pelo uso da força física, bastando outros tipos de coerção.

“A título de exemplo, o simples fato de cortar o suprimento de água, eletricidade ou outras tentativas de fazer com que a permanência em seu lar se torne insustentável constitui uma tentativa de remoção forçada. Ademais, se um ocupante sair de seu lar por um período de tempo, seja voluntário ou por conta de um desastre natural ou por causa de um conflito, e posteriormente não for permitido retornar, essa situação também será considerada uma remoção forçada”, diz trecho da recomendação.

“O simples fato de cortar o suprimento de água, eletricidade ou outras tentativas de fazer com que a permanência em seu lar se torne insustentável constitui uma tentativa de remoção forçada”

Sem as cestas básicas no contexto de permanência em áreas próximas aos territórios tradicionais ou até mesmo neles, os Guarani Kaiowá, impedidos de cultivar a terra e garantir a subsistência, são forçados a abandonar suas terras ou condenados às danações mortais de uma vida em acampamentos no meio da soja e às margens das estradas. O instrumento internacional usado para impedir tal situação é o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado em 25 de setembro de 2002.

Nele está tipificado como crime contra a humanidadea deportação ou transferência forçada de uma população, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, de modo que se entende “deportação ou transferência forçada de uma população” o deslocamento forçado de pessoas, através da expulsão ou outro ato coercitivo, da zona em que se encontram legalmente, sem qualquer motivo reconhecido no direito internacional”.

Relatório da FUNAI do MS e constantes denúncias da Aty Guasu revelam racismo institucional e política etnocida em retirada de crianças Guarani Kaiowá. Crédito da foto: Ruy Sposati/Cimi

Funai desrespeita TAC desde 2007

O quadro de degradação e morosidade nas demarcações de terras no Mato Grosso do Sul, realidade comum em todo o país, se traduz na não finalização dos procedimentos administrativos de identificação e delimitação de terras indígenas. Em 2007, o órgão indigenista assinou o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC), junto ao MPF. A Funai não efetivou o compromisso e em 2010 o MPF entrou com uma ação judicial. Em setembro daquele ano a decisão garantiu legitimidade ao MPF para exigir a execução do TAC em juízo, que segue sem cumprimento pela Funai.

Em outra ação judicial, o MPF e a Defensoria Pública da União (DPU) conseguiram o cadastramento e fornecimento de cestas básicas para as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul. O Governo do Estado seria responsável pelas aldeias de áreas regularizadas. A União, por sua vez, às famílias indígenas em acampamentos/áreas de retomada não regularizadas pela Funai. Nestas áreas, inclusive, estão os principais casos apurados de crianças indígenas mortas por subnutrição.

Fonte: Por Assessoria de Comunicação - Cimi
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