“Marco temporal desconsidera histórica violência contra os povos”, afirma dom Roque Paloschi no Sínodo da Amazônia
“No Brasil há um enorme esforço para desconstruir os direitos conquistados pelos povos indígenas em 1988”, avaliou o presidente do Cimi durante coletiva de imprensa em Roma
A realidade dos povos indígenas no Brasil foi tema levado por dom Roque Paloschi à coletiva de imprensa do Sínodo da Amazônia na tarde de ontem (17), em Roma. Em análise conjuntural, o o presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e arcebispo de Porto Velho lembrou os cortes orçamentários e de servidores dos órgãos estatais responsáveis pelas políticas indígenas.
“No Brasil, há um enorme esforço para desconstruir os direitos conquistados pelos povos indígenas na Constituição Federal de 1988”, comentou. “Contudo, os povos sempre afirmam que são 519 anos de opressão e resistência e que não é um presidente que irá retirar seus direitos”.
Para Dom Roque, uma das atuais ameaças aos direitos originários é a teoria jurídica do marco temporal, defendida pelo agronegócio e por setores da mineração. Para ele, a tese ignora a histórica violência perpetrada contra os povos indígenas no Brasil. “No Brasil, os povos foram historicamente discriminados. O preconceito os jogou para o anonimato. Na Constituição de 1988, se tentou pagar uma dívida histórica com os povos estabelecendo e registrando na Carta Maior seus direitos originários”, lembrou o bispo.
“Marco temporal desconsidera histórica violência contra os povos”
A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, estabeleceu o tempo de cinco anos para que a demarcação dos territórios tradicionais fosse concluída. Dom Roque lembrou que, passados 31 anos, apenas um terço dos territórios indígenas foram delimitados. “Além de não ocorrer demarcações, as que já foram reconhecidas estão sendo invadidas e loteadas por grileiros, madeireiros, mineração e grande projetos”, denunciou. Segundo dados do Cimi, no país há 821 terras indígenas sem nenhuma providência administrativa para demarcação.
“Temos muitos povos indígenas que não estavam em suas terras em 1988 porque tinham sido expulsos dela” – Felício Pontes
Junto com o bispo, compôs mesa na coletiva destinada a jornalistas o procurador regional da República, Felício Pontes, que destacou a parcialidade da tese ao desconsiderar décadas de expulsão dos povos de seus territórios. “O marco temporal é uma teoria jurídica que prejudica os povos indígenas ao afirmar que somente deveriam ser demarcados os territórios que estivessem ocupados pelos povos indígenas em 1988, na data que a Constituição foi promulgada”, esclareceu o procurador. “Temos muitos povos indígenas que não estavam em suas terras em 1988 porque tinham sido expulsos dela”, ponderou ao indicar a fragilidade jurídica.
Junto com os povos
Quando era procurador no Pará, Felício Pontes travou batalhas contra grandes projetos que afetavam a vida dos povos na região. Pontes foi uma das vozes mais ativas na defesa de ribeirinhos e indígenas quando o assunto era a construção da Hidrelétrica Belo Monte, em Altamira, no Pará. Em Roma, o paraense afirma serem as “empresa madeireira, pecuarista, monocultura, de energia e mineração “os novos colonizadores da Amazônia. “A visão colonialista impede ver a Amazônia de outra maneira. Plantar soja e cana de açúcar é uma visão colonialista”, assegura. “É visão totalitária que transforma a floresta com maior sociobidiversidade do planeta em uma monocultura”.
“Os povos indígenas ensinam um modelo mais antigo que não vê a floresta como obstáculo ou como um lugar para ser destruído e desvendado”
Como alternativa, propõe a reflexão que se paute no valor econômico da floresta em pé. “O açaí e as castanhas são produtos que só existem na Amazônia. Podem ser trocados e mais lucrativos que commodities como soja e cana de açúcar. É possível respeitar a floresta e fazer dela uma fonte de renda”, garante Felício. O procurador lembrou ainda que, segundo estudos realizados em Belém (PA), são descobertas 15 novas espécies por dia na floresta amazônica. “Essa região do mundo é o maior banco genético e ali poderia estar a cura para doenças hoje incuráveis. Os povos da floresta são guardiões desse banco genético”.
“Nos processos judiciais que trabalho fica claro que há uma disputa na Amazônia por dois modelos de desenvolvimento: um modelo predatório e outro socioambiental. No predatório, sempre há uma empresa madeireira, pecuarista, monocultura, ou de energia e mineração”, lembrou o procurador. “Do outro lado, podemos notar um modelo de desenvolvimento da Amazônia concebido pelos povos da floresta”.
“Sínodo poderá ajudar na passagem de uma sociedade colonialista para uma sociedade plural, que respeita a todos”
Para o paraense, o Sínodo poderá ajudar a uma mudança de pensamento que permita “passar de uma sociedade colonialista a pluralista, que respeite o modo de vida de todos daqueles que vivem na floresta e distancie a doutrina integracionista das vidas dos povos originários”.