Em oito meses, 16 crianças indígenas morreram apresentando sintomas como diarreia na TI Alto Rio Purus
De acordo com o Portal da Transparência, a Sesai realizou apenas 11% do orçamento total de 2019 (até setembro) para a rubrica Saneamento Básico
Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi
Retificação:
Diferente do publicado na quarta-feira (23), o número de crianças indígenas mortas entre janeiro e agosto deste ano na Terra Indígena Alto Rio Purus, no Acre, em levantamento parcial realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Amazônia Ocidental, é de 16 e não 20.
As 16 crianças foram a óbito com o quadro de diarreia, vômito, febre e cãibras. Os quatro casos computados anteriormente envolviam outras causas de morte, como pneumonia. No entanto, em alguns óbitos há causas não detalhadas ou com sintomas misturados.
Em uma das situações a conclusão é de que a causa da morte foi por choque hipotérmico, mas a criança apresentava também algum dos sintomas descritos acima. Em outros dois casos, suspeita de pneumonia associada com febre e diarreia.
O Cimi levantou os óbitos durante a primeira incidência à Terra Indígena, no início deste mês, para aprofundar as denúncias feitas por lideranças indígenas sobre estas mortes. Além disso, realizou um levantamento anterior junto a estas lideranças e agentes de saúde dos povos indígenas do Alto Rio Purus.
A apuração apresenta mortes subnotificadas. Estes casos de subnotificação são comuns em uma Terra Indígena afastada e extensa, com as especificidades inerentes aos povos indígenas. Para um levantamento detalhado, se faz necessária a ida em cada uma das 45 aldeias – o que pode aumentar ainda mais o número de óbitos.
Conforme levantamento do Conselho indigenista Missionário (Cimi) Regional Amazônia Ocidental, de janeiro a agosto deste ano morreram 16 crianças indígenas, tendo entre um mês e 11 anos de idade, na Terra Indígena Alto Rio Purus, no Acre. Os principais sintomas dos óbitos foram febre, vômito, cãibras e diarreia. Um idoso de 64 anos também morreu apresentando quadro clínico idêntico.
Nos meses de setembro e outubro ainda não foram verificadas mortes por diarreia, mas por outras causas. Os dados levantados são parciais, sujeitos a atualização. Durante o último surto de diarreia, entre outubro de 2011 e abril de 2012, 24 crianças morreram com os mesmos sintomas.
Entre as razões para o ciclo de mortes atingir periodicamente as aldeias do Alto Rio Purus está a ausência de saneamento básico provocando a contaminação da água consumida sobretudo no período das chuvas (leia mais abaixo).
De acordo com o Portal da Transparência, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) realizou apenas 11% do orçamento total de 2019 (até o dia 26 de setembro) para a rubrica Saneamento Básico em Aldeias Indígenas Para prevenção e Controle de Agravos. Em 2018, realizou 24%; 2017, 23%; 2016, 19% e 2015, 17%.
A Terra Indígena Alto Rio Purus está localizada entre os municípios de Santa Rosa do Purus, já nas proximidades da fronteira com o Peru, e Manoel Urbano. Lá vivem 3.336 indígenas (DSEI/2019) dos povos Huni Kui/Kaxinawa, Madja/Kulina e Jaminawa em cerca de 45 aldeias que, em sua maioria, estão instaladas às margens do rio Purus.
Mortes sem atestado de óbito
O Cimi levantou os óbitos durante a primeira de uma série de incidências à Terra Indígena, no início deste mês, quando a viagem precisou ser interrompida por suspeita de malária contraída por uma das integrantes da equipe, e em apurações junto às lideranças indígenas e agentes de saúde dos povos indígenas do Alto Rio Purus.
De acordo com o painel de Mortalidade Infantil e Fetal do Ministério da Saúde, apenas dez óbitos de crianças indígenas foram registrados em todo o estado do Acre. Quase a totalidade das mortes no Alto Rio Purus não foram atestadas por médicos porque as crianças sequer receberam atendimento enquanto estavam enfermas.
“Aí os pais fazem os rituais e enterram conforme a própria cultura. Depois que morre não vai tirar da aldeia e levar pro governo ver que morreu mesmo. Por isso precisa ter um acompanhamento, mas muitas vezes não há recursos pras equipes se deslocar”, diz um indígena ligado à saúde indígena do Acre e que prefere não se identificar.
No surto de diarreia de 2012, a Sesai levou à Terra Indígena uma equipe do Samu do Piauí com o apoio do Exército. Na ocasião, durante o mês de fevereiro, a reportagem do jornal Porantim percorreu o rio Purus e constatou a completa falta de saneamento em aldeias com intervenções desastradas do Poder Público.
Em algumas comunidades, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) construiu banheiros e fossas de cimento e ferro que logo se deterioraram sob a umidade amazônica. Se constatou casos de fossas cheias e destruídas, abertas debaixo da chuva e do sol. Os indígenas pediram que não fossem construídas daquela maneira.
Os poços artesianos foram abertos contrariando também a solicitação dos indígenas, que os queriam longe da margem do rio. Com a cheia, os poços foram inundados e inutilizados. Como as aldeias estão afastadas da floresta mais densa, com oferta de fontes em árvores e cipós, acessar a água limpa se torna mais difícil e improvável.
Um outro fator de dificuldade é a adequação do Poder Público às especificidades de cada povo. “Os Madja eles são mais fechados, não comunicam, não procuram atendimento. A gente precisa sempre ter recursos e equipes para ir até eles porque os Madja são assim. Se sentem mais seguros no tratamento interno. Evitam a Sesai”, conta um indígena ligado ao Polo Base de Saúde e que prefere não se identificar.
Ele explica que o principal problema, porém, é com a água consumida nas aldeias. “Distribuímos hipoclorito, mas (os povos do Purus) não usa porque é o que eu te disse da cultura. Não confiam, mas a questão se resolve com saneamento. Tem muita desnutrição também nos Madja porque é um povo que viaja e caminha muito. Quando voltam a produção que deixaram acabou já”, conta.
Saneamento básico e aparelhamento da Sesai
A liderança Ninawá Huni Kui explica que desde “2008, 2009 isso vem acontecendo no Purus, mas também em outras regiões do estado como no Alto Envira, por exemplo. No Purus tem se destacado por ter o maior número de óbitos, como os 24 que aconteceram entre 2011 e 2012”.
Quando tem início o período das chuvas, conta Ninawá, “os igarapés alagam, enchem, e vão dar nas cacimbas das aldeias e as contaminam. Todo mundo bebe dessa água e então começam os sintomas de vômito, diarreia e cãibras”. Cacimbas são covas abertas em terreno úmido até atingir um lençol d’água subterrâneo.
Para Ninawá esse é o primeiro motivo causador dos óbitos. Porém, o indígena aponta um segundo: a falta de providência dos órgãos públicos. “Em 2011/2012 o Ministério da Saúde fez um diagnóstico no Purus: só uma cacimba não estava contaminada. Então eles sabem a causa faz tempo. Distribuíram filtros, mas nada de política pública integral”, ataca.
Os povos indígenas do Acre, não apenas do Purus, têm defendido duas medidas para o Poder Público enfrentar a questão. A primeira ação é garantir, com as equipes multidisciplinares de saúde, o monitoramento das aldeias no período das chuvas a partir das Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) instaladas nas comunidades.
Por fim, “fazer o tratamento da água. É preciso investir no saneamento, construir reservatórios de água. Pra resolver mesmo precisa aplicar os recursos de saneamento dentro das comunidades indígenas. Precisa fazer saneamento dentro das aldeias pra que se tenha água tratada”, enfatiza Ninawá.
Se os governos estadual e federal nada fazem, não é por falta de comunicação. De 2012 para cá, os indígenas ocuparam durante nove meses a sede da Secretaria especial de saúde Indígena (Sesai) na capital Rio Branco. “Teve o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) do MPF com a Sesai e a Funai, com o governo do estado. Acordos e mais acordos”, diz Ninawá.
Os indígenas denunciam ainda o loteamento de cargos da Sesai no Acre. Conforme relatam, o estado é dividido em dois Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI): o do Juruá e o do Purus. O primeiro, do Juruá, foi ocupado com indicações do gabinete da deputada federal Jessica Sales (MDB/AC); já o segundo, do Purus, pelos escolhidos do gabinete do deputado federal Alan Rick (PRB/AC).
“A Sesai virou apenas um cabide de empregos. No Acre está assim. Existem critérios estabelecidos para ser coordenador da Sesai na região, no DSEI. Mas aqui tem virado brigas e perseguições por conta de indicações políticas. A liderança não pode mais criticar… aí é deputado, senador assumindo a autarquia e fica assim”, reclama Ninawá.
Dois procedimentos instaurados
A procuradora Luciana de Miguel Cardoso Bogo explica que há um procedimento instaurado pelo MPF para apurar a mortalidade infantil na área de atribuição do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Purus. De 22 óbitos de crianças indígenas até julho de 2019, 11 ocorreram em aldeias da região de Santa Rosa do Purus.
“Fizemos também várias reuniões, conseguimos mapear os óbitos de crianças indígenas por aldeias e causas. Por isso estamos articulando um plano de ação, focado nas aldeias Madja. Há suspeita de falta de autonomia alimentar, coleta e caça insuficiente e pouca produção de alimentos”, explica a procuradora.
No final de novembro, uma equipe do MPF, coordenada pela procuradora, fará uma visita a aldeias da Terra Indígena. “Conseguimos que um antropólogo do MPF nos acompanhe na visita para realizarmos uma escuta qualificada e para tentar identificar, por exemplo, possíveis causas para desnutrição das crianças”, diz Luciana.
Outra preocupação do Cimi e do MPF envolve a taxa de suicídios entre os jovens indígenas do Alto Rio Purus. Entre janeiro e maio deste ano, o Cimi contabilizou quatro atentados contra a própria vida durante ida à Terra Indígena. Todos em um mesmo povo sendo três na mesma aldeia. Os números são parciais e podem aumentar.
Diante do quadro, o MPF instaurou um segundo procedimento para investigar a questão dos suicídios “no qual já foi realizado estudo antropológico e reuniões com diferentes órgãos. Pedimos um projeto para aprimorar a educação indígena e a Coordenação de Educação Indígena que a Secretaria Estadual de Educação fez”, informa a procuradora.
Conforme Lindomar Padilha, do Cimi Regional Acre, “esperamos que as autoridades tomem medidas emergenciais para que cesse as mortes imediatamente e que haja um planejamento de longo prazo, e que seja efetivo”. Para o missionário, o problema é recorrente e negligenciado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).