Terra Indígena Palmas: ministra do STF suspende decisão baseada no marco temporal
Decisão da ministra Cármen Lúcia garante direito originário do povo Kaingang e corrobora importância do caso de Repercussão Geral que pode definir futuro das terras indígenas
O alvorecer do dia 25 de setembro de 2002 foi celebrado com festa e alegria na aldeia do povo indígena Kaingang de Palmas, localizada no município de Palmas, região sudeste do Estado do Paraná. Embora com mundividêncais próprias, as histórias da aldeia e da cidade, contadas no site da Prefeitura Municipal[1], região inicialmente denominada de Campos de “Bituruna” ou “Ibiturana”, Terra Alta ou Terra das Palmeiras”, na respectiva tradução do idioma indígena, estão interligadas.
Naquela data setembrina, os Kaingang comemoravam a aprovação dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Palmas, realizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), aprovados pelo Ministério da Justiça e através de Decreto Presidencial, em 2007. Em seguida a Terra Indígena foi registrada no Cartório de registro de Imóveis de Palmas, com superfície aproximada de 3.770 hectares. A “notícia boa”, longamente esperada, havia chegado e a vida na aldeia poderia seguir seu curso, com base no ordenamento indígena.
O alvorecer comemorado pela comunidade indígena, porém, seria ofuscado recentemente, quando funcionários da Funai, a mesma instituição que levou a “notícia boa”, retornaram para dizer que havia um mal-entendido e que a comunidade deveria deixar parte da área, 718.474 metros quadrados, um pouco mais de 70 hectares, em decorrência de decisões judiciais em processos que sequer os Kaingang conheciam.
No direito indígena, aquele constituído na aldeia e reconhecido pela Carta Política, os acordos firmados jamais podem ser rompidos unilateralmente.
O relato acima foi extraído da conversa entre o cacique da aldeia de Palmas e advogados indigenistas, quando o primeiro buscava apoio jurídico para defender a causa do seu povo. Sabia, o cacique, que a história da aldeia teria um trágico fim, sem um local para a sobrevivência física e cultural do seu povo.
A decisão comunicada pela Funai tratava de uma ação anulatória de ato administrativo (n. 5001335-13.2012.4.04.7012/PR) cumulada com reivindicatória de propriedade ajuizada em face da União e da Funai, que reconheceu imóvel rural como de ocupação, domínio e posse do povo indígena Kaingang, ajuizada na Primeira Vara Federal da Subseção Judiciária de Pato Branco.
A ação tinha como argumento central a inexistência de ocupação indígena na área denominada Terra Indígena Palmas, do povo Kaingang, na data da promulgação da Carta Política brasileira. Na inicial, afirmava-se que o Egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) teria definido, na Pet. 3388/RR, caso Raposa Serra do Sol, que o marco temporal de ocupação fundiária pelos índios teria de ser a data de 05.10.1988.
O Juízo Federal de Pato Branco sentenciou o processo, após concluir pelo julgamento antecipado da lide, sem realizar perícia judicial ou produzir outras provas. Também não ouviu a comunidade indígena, declarando nulo o processo administrativo de demarcação e o registro em cartório da Terra Indígena Palmas, já realizado em nome da União para usufruto exclusivo dos indígenas.
Sobrevieram as apelações da Funai, União e do Ministério Público Federal (MPF), mas a decisão de primeira instância foi mantida pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, sediado em Porto Alegre. Em seguida, foram interpostos os recursos especial e extraordinários, onde, em ambos casos, os Tribunais Superiores ratificaram, in totum, a decisão colegiada do Tribunal Regional. Sendo assim, o processo transitou em julgado em 04.04.2019 e foi aberto procedimento para o cumprimento de sentença na Vara Federal de Pato Branco.
“O acesso à Justiça tornou-se o cerne do princípio da dignidade humana, que também inclui os índios, suas comunidades e organizações sociais na condição de sujeitos de direitos”
Como já dito, não consta dos autos, em tempo algum, a determinação pelo Juízo de piso, ou a pedido das partes, a citação da comunidade indígena Kaingang, sendo ela diretamente afetada pela decisão judicial que anulou o processo de demarcação do seu território, já registrado em cartório em nome da União e em posse exclusiva da comunidade, por meio do Decreto Presidencial, por tempo superior a quinze anos.
No Brasil, a dignidade da pessoa humana foi elevada a princípio orientador de todo o ordenamento jurídico. O acesso à Justiça ou acesso ao Poder Judiciário tornou-se o cerne do princípio, que também inclui os índios, suas comunidades e organizações sociais na condição de sujeitos de direitos.
De acordo com Bonifácio (2008), a universalização do acesso à Justiça visa garantir um processo justo, assegura o exercício da cidadania pelos sujeitos de direitos e garante respeito às normas jurídicas, sob o conjunto de princípios dos direitos humanos.
Conforme se extrai da Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, sendo os índios, suas comunidades e organizações partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.
Quanto à matéria de direito, ou teses em disputa, os equívocos também precisam ser corrigidos, na medida em que somente parte do julgado do caso Raposa Serra do Sol foi acolhido, in concreto, pelo Poder Judiciário, justamente a parte que tratou da tese do marco temporal, que não fazia parte do objeto da disputa.
O julgado do caso Raposa Serra do Sol, todavia, foi muito mais amplo, pois a Suprema Corte reconheceu a constitucionalidade e legalidade dos atos administrativos do Poder Executivo e, com efeito, o reconhecimento da condição indígena da área demarcada em toda sua totalidade. Em sua ementa, o julgado firmou a demarcação das terras indígenas como capítulo avançado do constitucionalismo fraternal e a Constituição Federal como estatuto jurídico da causa indígena.
Em continuidade, o complexo julgado do caso Raposa Serra do Sol, concluiu pela inexistência de vícios no processo administrativo tendo ele observado as regras do Decreto 1.775/96, o reconhecimento científico dos dados colhidos e das peças antropológicas subscritas por profissionais qualificados. Na mesma linha, o julgado destaca que a demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade” (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força autoexecutória.
No entanto, se é verdade que sobraram arestas no julgado do caso Raposa Serra do Sol, elas foram superadas em decisões mais recentes, a exemplo do que a Corte definiu nas ações originárias 312/BA, 362/MT e 366/MT, estas duas últimas julgadas em agosto de 2017. Nestes casos, o STF reconheceu a tradicionalidade da terra, anulou títulos de propriedade incidentes nos territórios indígenas e repeliu a tese do marco temporal.
Mais que isso, em dezembro de 2018, em decisão unânime, os Ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceram a repercussão geral sobre a posse indígena e as possibilidades hermenêuticas do artigo 231 da Constituição da República, no Recurso Extraordinário Nº 1017365, relacionado a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, declarada de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e GuarANI. Na decisão que reconheceu a repercussão geral, ficou destacado que as questões indígenas, “apesar do esforço hercúleo da Corte na Pet nº 3.388, não se encontram pacificadas, nem na sociedade, nem mesmo no âmbito do Poder Judiciário”. Neste novo julgado que pretende realizar, o Supremo Tribunal Federal deve definir, com carga vinculante, as disputas sobre direitos indígenas.
Com base nessas considerações, entre outras, a comunidade indígena do povo Kaingang, da Terra Indígena de Palmas, ingressou com a Ação Rescisória de Nº 2.756, perante a mais alta Corte de Justiça brasileira, visando a suspensão do cumprimento de sentença, que objetiva a remoção dos indígenas da área demarcada, bem como requereu a anulação dos julgados, para que seja reconhecido o domínio indisponível, imprescritível e inalienável da União e o usufruto exclusivo dos Kaingang de Palmas sobre o território.
No dia 4 de setembro de 2019, a Ministra Cármen Lúcia deferiu a antecipação dos efeitos da tutela pleiteada pela comunidade indígena, para suspender os efeitos da decisão transitada em julgado proferida na Ação Anulatória n. 5001335-13.2012.4.04.7012/PR. Na mesma decisão, a Ministra do Supremo Tribunal Federal determinou a comunicação, com urgência, ao juízo da Primeira Vara Federal de Pato Branco, da Seção Judiciária do Paraná, do teor da decisão. Deste modo, a comunidade indígena não precisa deixar a Terra Indígena demarcada.
Conforme se observa, o sistema de justiça brasileiro e suas principiologias, aliado ao direito indígena consubstanciado nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, na Convenção 169 da OIT e no sistema universal de Direitos Humanos, aplicados aos povos indígenas, também não permitem o rompimento unilateral dos acordos firmados.
[1] Disponível em: https://pmp.pr.gov.br/website/sobre.php. Acesso em: 27.08.2019