19/08/2019

Projeto ruralista que legaliza arrendamento de terras indígenas pode ser votado na Câmara

PEC 187, que também facilita exploração de recursos minerais e hídricos em terras demarcadas, pode ser votada da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados

Acampamento Terra Livre 2019. Foto: Christian Braga/MNI

Acampamento Terra Livre 2019. Foto: Christian Braga/MNI

Por Tiago Miotto, da Ascom/Cimi

Novamente, a bancada ruralista movimenta-se para desmontar os direitos constitucionais dos povos indígenas no Congresso Nacional. Desta vez, a investida ocorre por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 187/2016, que pode ser pautado para votação a qualquer momento na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

Sob relatoria do ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS), a proposta pretende alterar a Constituição Federal de 1988 para permitir a exploração de terras indígenas por não indígenas. O projeto busca legalizar o arrendamento das terras demarcadas, por meio do que é chamado pelos ruralistas de “parcerias agrícolas e pecuárias”.

Além disso, a PEC, conforme o relatório de Moreira, também abre caminho para a exploração de recursos hídricos e minerais em terras indígenas e retira a autonomia dos povos para decidir sobre o uso de seu território.

Apresentado em 2017 e arquivado ao fim da última legislatura, o parecer de Alceu Moreira foi desarquivado no início deste ano e chegou a ser colocado em votação na última sessão da CCJC, no dia 13 de agosto. Após acalorada discussão, foi concedida vista conjunta a todos os membros da Comissão, o que adiou a votação por uma semana.

Terminado o período de vista, o relatório chegou a ser reinserido na pauta de votação da reunião da CCJC desta terça-feira, 20 de agosto, mas foi retirado. A qualquer momento, pode ser pautado novamente.

Se aprovado o relatório ruralista, o próximo passo é a criação de uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados para analisar a PEC. Depois disso, ela ainda teria que passar pela votação em dois turnos no plenário da Câmara, onde precisa de pelo menos 308 votos, para então avançar ao Senado, onde também necessita da aprovação de dois terços dos senadores em outros dois turnos de votação.

“É uma proposta extremamente grave e agressiva aos direitos indígenas, pautada pelos interesses do agronegócio”

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Exploração por terceiros e desrespeito à autonomia

O parecer defendido pelo ruralista Alceu Moreira trata, de forma conjunta, de duas propostas: a PEC 187/2016 e a PEC 343/2017, que tramita apensada à primeira. No conjunto, elas pretendem alterar o artigo 231 da Constituição Federal para permitir a exploração de até metade da área de cada terra indígena por terceiros, acabando com o direito de usufruto exclusivo que os povos indígenas têm sobre suas terras tradicionais.

A negociação dos acordos de arrendamento ou “parcerias” seria feita entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e os fazendeiros, sem participação dos indígenas. Com isso, avalia a assessoria jurídica do Cimi, a proposta traz uma visão integracionista e “restitui a figura da tutela já superada pela Constituição de 1988, violando a autonomia e a autodeterminação dos povos indígenas”.

O direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, é ignorado neste e em outros aspectos da proposta, que deixa de exigir a autorização do Congresso Nacional para a mineração e o uso de recursos hídricos dentro dos territórios indígenas.

De forma ambígua, a proposta ainda abre a possibilidade de “transferência total ou parcial” das terras indígenas a terceiros, desde que conte com “prévia anuência do poder concedente” – no caso, a Funai.

Na avaliação da assessoria jurídica do Cimi, os direitos reconhecidos aos povos indígenas na Constituição Federal são cláusulas pétreas, estão interligados e não podem ser considerados de forma isolada.

“O artigo 231, especialmente, traz diversos elementos que abrangem a coletividade dos povos indígenas, suas formas de vida e de organização social. O usufruto exclusivo das terras indígenas, um direito originário, é essencial para garantir esse modo de vida. Esses itens não podem ser analisados isoladamente um do outro”, avalia Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Cimi.

“É uma proposta extremamente grave e agressiva aos direitos indígenas, pautada pelos interesses do agronegócio. Esperamos que os povos consigam fazer frente e impedir que mais esse ataque aos seus direitos seja efetivado pelos ruralistas em nosso país”, avalia o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.

As deputadas Joênia Wapichana (Rede-RR) e Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentaram votos em separado na CCJC, nos quais caracterizam a proposta ruralista como inconstitucional e defendem sua inadmissibilidade.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já se manifestou diversas vezes contra as tentativas de liberar o arrendamento de terras indígenas ao agronegócio, posição reforçada no documento final do último Acampamento Terra Livre.

A I Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu cerca de três mil participantes em Brasília, defendeu em seu documento final o direito “à posse plena de nossos territórios”, reafirmando a luta contra a mineração, “o arrendamento e a cobiça do agronegócio e as invasões ilegais que roubam os nossos recursos naturais e os utilizam apenas para gerar lucro, sem se preocupar com a manutenção da vida no planeta”.

“Os ruralistas, sentindo-se fortalecidos por um governo anti-indígena e favorável a suas demandas, decidiram mudar a estratégia e voltar a tentar alterar a Constituição”

Investidas sucessivas

No ano passado, os ruralistas tentaram aprovar na mesma Comissão o Projeto de Lei (PL) 490, que também propunha o desmonte do direito dos povos indígenas à demarcação e ao usufruto de suas terras tradicionais, inviabilizando novas demarcações e abrindo terras já demarcadas para a exploração econômica.

Com muita mobilização, os povos indígenas e seus aliados conseguiram barrar, ao menos por enquanto, a tramitação da proposta. Agora, os ruralistas buscam avançar com a PEC 187.

“Um projeto de lei é mais frágil do que uma PEC, e sua inconstitucionalidade é mais flagrante. Os ruralistas, sentindo-se fortalecidos por um governo anti-indígena e favorável a suas demandas, decidiram mudar a estratégia e voltar a tentar alterar a Constituição”, analisa Buzatto.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Congresso Anti-Indígena

A PEC 187 iniciou sua tramitação em 2016, quando foi apresentada pelo também ruralista Vicentinho Júnior (PL-TO). Em 2017, o Nelson Padovani (PSDB-PR), igualmente ruralista, apresentou a PEC 343, que foi apensada à primeira. No mesmo ano, Moreira foi designado como relator na Comissão.

Originalmente, a proposta de Vicentinho Júnior previa o acréscimo de um parágrafo ao artigo 231 da Constituição, para permitir aos povos indígenas a realização de “atividades agropecuárias e florestais” e a “administração de seus bens e comercialização da produção” – práticas que não são proibidas e que já são realizadas pelos povos originários em todo o Brasil.

A PEC 343, por sua vez, trata da abertura das terras indígenas para a exploração de terceiros, abrindo margem para a mineração e a construção de hidrelétricas e hidrovias nas terras demarcadas – propostas que foram incorporadas no parecer de Alceu Moreira.

Ambas as propostas fazem parte de um grupo de mais de cem proposições voltadas a retirar direitos dos povos indígenas que foram identificadas pelo Cimi em 2018 e divulgadas na publicação Congresso Anti-Indígena.

O relator das PECs, Alceu Moreira, tem uma longa trajetória de desrespeito e ataques aos povos indígenas. Em 2014, no município de Vicente Dutra (RS), incitou agricultores ao conflito contra indígenas, afirmando: “reúnam verdadeiras multidões e expulsem [os indígenas] do jeito que for necessário”. Ao seu lado, no mesmo evento, o então deputado, hoje senador, Luís Carlos Heinze (PP/RS) afirmou que “quilombolas, índios, gays, lésbicas” são “tudo que não presta”.

Em 2016 e 2017, Moreira presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai e do Incra, que foi criada e conduzida de forma unilateral por ruralistas e serviu de plataforma para a perseguição e criminalização de servidores públicos, lideranças indígenas, organizações indigenistas e até procuradores identificados como aliados dos povos indígenas.

Em 2014, último ano em que doações empresariais foram permitidas em campanhas eleitorais, o deputado – que é investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por crimes contra a Lei de Licitações e corrupção passiva – recebeu mais de R830 mil reais de empresas do agronegócio.

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