“O direito é nosso, posso até derramar sangue no meu território, eu não vim de outro país”, afirma liderança Kinikinau
Os Kinikinau estavam com a posse consolidada durante o despejo extrajudicial indígenas: foram surpreendidos com ataques de gás lacrimogêneo e balas de borrachas, sem aviso prévio
Com o objetivo de retornar ao seu território tradicional, reivindicado há pelo menos 100 anos, por volta das 4h da manhã desta quinta-feira (1), cerca de 500 lideranças do povo Kinikinau, no Mato Grosso do Sul, realizaram uma retomada na Fazenda Água Branca, município de Aquidauana. O retorno ao lugar onde estão suas referências e raízes ancestrais, com direito de ocupação reservado pela Constituição Federal, durou apenas algumas horas.
Os Kinikinau estavam com a posse consolidada desde a madrugada. No final do dia, a polícia agiu sem ordem judicial. Cerca de 130 homens da Polícia Militar, apoiados por dois helicópteros, realizaram, já no final do dia, o despejo de forma violenta, com bombas e tiros de bala de borracha contra crianças, idosos e mulheres, chegando de surpresa em uma operação não esperada pelos Kinikinau, sem aviso prévio, e tampouco com autorização judicial – até o fechamento deste texto, a polícia não havia apresentado nenhum despacho judicial determinando o despejo sem comunicação antecipada e após o horário estabelecido por protocolos de direitos humanos.
“Eles chegaram já largando bomba e atirando, pegou na minha cabeça, eu tirei minha perna e atingiu minha cabeça, na hora eu caí e levantei. Eles vieram por de trás das casas atirando pra fazer isso com a gente. Eu tô no meu direito, o direito é nosso, eu posso derramar sangue no meu território, eu não vim de outro país, eu tenho o meu território aqui”, afirma Manoel Kinikinau.
De acordo com advogados consultados, a Constituição Federal veda expressamente a remoção de povos indígenas de suas terras ocupadas. “Além disso, os Kinikinau fizeram a retomada na madrugada e a posse estava consolidada. Apenas no final do dia a polícia realizou o despejo. No âmbito do Direito, a posse estava consolidada, sendo assim, só é possível reintegrar com decisão judicial”, explica a equipe da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A decisão judicial, por sua vez, é acompanhada de notificação prévia à Fundação Nacional do Índio (Funai) e à comunidade alvo.
“Enquanto os anciãos e lideranças descansavam, e as crianças brincavam, eles chegaram jogando gás lacrimogêneo e atirando balas de borracha que acertou e feriu uma liderança do povo Kinikinau”
Cacique Célio Kinikinau, da aldeia bananal, descreve o momento do ataque policial: “enquanto os anciãos e lideranças descansavam, e as crianças brincavam, eles chegaram jogando gás lacrimogêneo e atirando balas de borracha que acertou e feriu uma liderança do povo Kinikinau. Não teve nenhum diálogo, eles chegaram para machucar e tentar humilhar o povo Kinikinau, realmente”.
Conforme relato dos indígenas, enquanto estavam sendo atacados pela Polícia Militar destacaram um Kinikinau para tentar fazer contato com o delegado da Polícia Federal de Aquidauana. Conforme os indígenas, o delegado teria dito “não poder fazer nada, e que o mesmo não se responsabilizaria pelo que viesse a acontecer, afinal a PM estaria cumprindo a suposta ordem policial de retirar os índios”.
Lideranças Kinikinau chegaram a pedir ao chefe da operação que mostrasse a eles a ordem judicial de reintegração de posse. Porém, isso não aconteceu. O comandante teria desconversado, entre negativas, o que abriu indícios aos indígenas de se tratar de uma ação da extrajudicial. De tal maneira, os Kinikinau exigem uma investigação sobre a investigação que feriu indígenas e aterrorizou um povo que há um século luta pelo território tradicional no qual tentaram reaver apenas um pedaço com a retomada desta quinta.
Nesta sexta-feira (2), um grupo de advogados e advogadas ligados aos Juristas pela Democracia, Defensoria Pública da União, membros do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Coletivo Terra Vermelha visitaram a comunidade Kinikinau de Agachi para prestar solidariedade, ouvir e relatar providências a serem tomadas sobre o fato bárbaro do despejo ilícito, realizado pela polícia do Estado do Mato Grosso do Sul, que culminou do ferimento de liderança Kinikinau (na foto acima).
Áudios nas redes sociais: “ordem de Brasília”
Diferentes áudios que circulam na internet, atribuídos ao prefeito de Aquidauana, Odilon Robeiro, deixam a entender que ele tenha negociado a retirada dos indígenas da Fazenda Água Branca: “[…] vão tirar por bem ou por mal, já me pediram aqui 2 ônibus para levar 90 policiais militar (sic), lá já tem uns 40 e vai tirar ou por bem ou na força”, consta trecho de um dos áudios em posse dos indígenas e organizações de direitos humanos e indigenistas. O prefeito afirma que a ordem teria partido de Brasília e ainda argumenta, tropeçando em sua fala anterior, sobre a necessidade do governo se posicionar referente “à ordem e à paz para todos os que moram no país”.
Diante do ocorrido, a liderança do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Câmara Federal solicitou esclarecimento ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. Entre as solicitações, questiona sobre “a presença de uma equipe da Polícia Federal com o objetivo de coletar informações para repassar ao Ministério da Justiça. E também, questiona a presença da Polícia Militar, já que a competência constitucional é de competência da Polícia Federal”.
Em nota, a Aty Guasu, a Grande Assembleia do Povo Guarani e Kaiowá, diante da violência em andamento contra as lideranças do povo Kinikinau, convoca os indígenas contra o massacre e extermínio dos povos tradicionais. “Nós guerreiros do povo Guarani e Kaiowá estamos nos organizando e vamos proteger e defender a vida das crianças e a terra do povo Kinikinau juntamente com outros povos indígenas do Mato Grosso do Sul e do Brasil”.
A ação violenta causa apreensão e medo aos indígenas. No entanto, asseguram seguir a luta pelo seu território. “Estamos firmes e o povo Kinikinau segue acampado nos arredores de sua terra tradicional, junto ao povo Terena que hermana seu apoio e solidariedade neste momento”, assegura Manoel Kinikinau. Seguido por dona Flaviana Kinikinau, “eu sou daqui, eu não vim de fora, eu só quero a minha terra de volta, nós queremos um lugar pra morar, um lugar pra deixar as minhas crianças, um lugar pro meus netos ficar”.
Quem são os Kinikinau?
O povo Kinikinau foi expulso de seus territórios tradicionais na região de Aquidauana e Miranda, no Mato Grosso do Sul, no início do século passado, e levado pelo então Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para a Terra Indígena Kadiwéu, na Serra de Bodoquena (MS), onde viveram por quase 100 anos. Além da negação de seus territórios tradicionais, o Estado brasileiro há época obrigou o povo Kinikinau a assumir a identidade de outros povos indígenas do Estado, integrando-se aos Terena.
A maior parte do povo Kinikinau encontra-se na aldeia São João, sudeste da Reserva Indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho. Alguns vivem em aldeias Terena, nos municípios sul-mato-grossenses de Aquidauana (Bananal e Limão Verde), Miranda (Cachoeirinha e Lalima) e Nioaque (Água Branca e Brejão).