02/07/2019

Resolução aprovada pelo CNJ é marco para o tratamento jurídico-penal de pessoas indígenas no Brasil

Medida prevê garantias para superar invisibilidade de indígenas no contexto penal brasileiro, que inviabiliza aplicação diferenciada de políticas e direitos

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Michael Mary Nolan e Caroline Hilgert, da Assessoria Jurídica do Cimi

Há muitos anos, atuamos na defesa dos povos indígenas em processos penais, principalmente no contexto da luta pela demarcação de terras. Esta experiência nos possibilitou conhecer o enorme despreparo dos operadores do direito, inclusive juízes, para lidar e aplicar os direitos dos indígenas na esfera criminal: desde a invisibilização dos indígenas réus até a ignorância total de seus direitos específicos.

Para elucidar, citamos o Habeas Corpus nº 86.305/RS, apresentado em favor de 19 indígenas do povo Kaingang, em trâmite no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que se pleiteia a tradução do processo, a presença de intérprete para réus e testemunhas indígenas, bem como a realização de perícia antropológica, pedidos estes que foram negados pelas instâncias inferiores. Contudo, a falta de identificação da condição de indígena durante o processo revelou-se ainda mais grave, uma vez que impossibilita qualquer tipo de aplicação de direitos específicos.

“É impossível, no Brasil, ter a exata noção da quantidade de indígenas presos. E, como bem dito por Manuela Carneiro da Cunha, ‘se não há indígenas, tampouco há direitos’”

É impossível, no Brasil, ter a exata noção da quantidade de indígenas presos. E, como bem dito pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “se não há indígenas, tampouco há direitos”. A invisibilidade dos indígenas no contexto penal inviabiliza qualquer aplicação diferenciada de políticas e direitos. Não basta que os direitos sejam consagrados em lei nacional e internacional se, na prática, é impossível aplicá-los.

Por isso, a Resolução recém-aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um marco para o tratamento jurídico-penal brasileiro dos indígenas. Configura-se em um protocolo inédito para as ações dos juízes em todos os processos penais em que a pessoa se identifique como indígena. Além de abraçar o novo paradigma trazido pela Constituição Federal, considera também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e as Regras de Bangkok para dar as diretrizes afim de assegurar os direitos destas populações. A Resolução, aprovada no dia 25 de junho, entrará em vigor em 90 dias, e o CNJ elaborará um manual para orientar sua implementação.

O atual Código de Processo Penal brasileiro foi criado em 1941 e, apesar de ter sido substancialmente alterado ao longo dos anos, não há o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas consagrados na Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, nem daqueles decorrentes da ratificação da Convenção 169 da OIT. Desta forma, inexiste qualquer orientação legal do tratamento jurídico-penal devido aos povos indígenas ou quanto à obrigação de identificação da condição de indígena para possibilitar a garantia de seus direitos.

“Vamos aguardar que ocorra a implementação da Resolução em todo o judiciário e que, com isso, os direitos dos povos indígenas sejam mais conhecidos, mais visibilizados e, consequentemente, mais aplicados no cotidiano”

A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 231, para além do direito originário à terra que tradicionalmente ocupam, reconheceu aos indígenas o direito à organização social, a seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como, no artigo 232, reconheceu os indígenas como sujeitos de direitos. Com isso foi instituído um novo paradigma: deixa-se a política assimilacionista de lado e passa-se a respeitar os indígenas pelo que são, dentro do conceito antropológico de cultura dinâmica. Os citados artigos, em conjunto com os dispositivos da Convenção 169 da OIT, devem ser considerados de maneira transversal em todos os campos que permeiam a vida dos povos indígenas e seus membros e, em especial, na esfera jurídico-penal.

A Resolução, dentre outras coisas, prevê que, havendo indícios de que a pessoa seja indígena, a autoridade judicial deverá cientificá-la sobre a possibilidade de autodeclaração. Caso ocorra, sua identificação como indígena deverá constar no registro de todos os atos processuais, possibilitando assim a efetivação de seus direitos. Ainda, estão previstas as garantias de intérprete para os indígenas acusados em processo penal e de realização de perícia antropológica para aferir as circunstâncias pessoais, culturais e sociais da pessoa acusada, assim como os usos, costumes e tradições da comunidade a que ela se vincula. Também deve ser considerado o entendimento da comunidade indígena em relação à conduta típica imputada, bem como os mecanismos próprios de julgamento e punição adotados por seus membros.

Assim, vamos aguardar que ocorra a implementação da Resolução em todo o judiciário e esperar que, com isso, os direitos dos povos indígenas sejam mais conhecidos, mais visibilizados e, consequentemente, mais aplicados na prática jurídica cotidiana.

Share this:
Tags: