“Caso de repercussão geral é oportunidade para o Estado corrigir trajetória de agressão aos povos indígenas”
Consequências do processo do STF que pode definir o futuro das terras indígenas no Brasil foram debatidos durante evento paralelo na ONU, em Genebra
As possíveis consequências do processo de repercussão geral que pode definir o futuro dos direitos territoriais indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF) foram debatidas em Genebra, na Suíça, no dia 17 de julho, durante o evento paralelo intitulado Reconhecimento da Ancestralidade dos Territórios Indígenas – Oportunidades e Riscos no Caso Xokleng perante o STF.
A atividade, que ocorreu no Palácio das Nações durante a manhã suíça e a madrugada brasileira, foi realizada paralelamente à 12ª sessão do Mecanismo de Peritos sobre Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), que acontece entre os dias 15 e 19 de julho.
O caso que discute a posse da Terra Indígena (TI) Xokleng-La Klãnõ, do povo Xokleng, em Santa Catarina, teve sua repercussão geral reconhecida de forma unânime pelo STF, em abril. Isso significa que a decisão tomada neste processo servirá de referência a todos os demais que tratem sobre o tema.
“Esse processo é fundamental para o futuro dos povos indígenas, uma vez que a Suprema Corte brasileira deve encontrar uma solução definitiva para centenas de processos que vêm embargando os procedimentos demarcatórios”, avaliou Roberto Liebgott, coordenador do Cimi regional Sul, que participou do evento por videoconferência.
“Temos grande expectativa em relação a esse processo, na medida em que vão estar sendo confrontados dois conceitos: o conceito do indigenato, que é o conceito da Constituição Federal, que assegura aos povos o direito originário, em contraposição com a tese do marco temporal”, contextualizou.
Segundo a tese do marco temporal, “os indígenas só teriam direito à demarcação das suas terras se estivessem presentes na terra na data da promulgação da Constituição de 1988 e, se tivessem sido expulsos, foi-lhes atribuído o ônus de provar que eles resistiram à expulsão”, explicou a pesquisadora da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), Fernanda Bragatto.
“É uma prova extremamente difícil de se fazer, porque antes de 1988 os indígenas eram tutelados e se vivia uma Ditadura Militar”, prosseguiu Bragatto. Para ela, a tese do marco é, de acordo com a teoria da Justiça, como uma “iniquidade”.
“Ela premia os infratores e pune as vítimas. As vítimas foram expulsas das suas terras e hoje, caso não consigam provar que foram expulsas e resistiram, elas são punidas com a perda dos seus territórios”, avalia Bragatto, que também participou do evento à distância.
É este um dos pontos questionados por Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng.
“Se os povos indígenas não estavam morando nas suas terras nessa época, é porque tiveram que sair, já que o próprio Estado vendeu essas terras. Fomos expulsos de lá pelos colonizadores”, afirmou Brasílio, também por meio de videoconferência.
A liderança também manifestou preocupação com a possibilidade de a tese do marco temporal ser referendada pela Suprema Corte.
“O marco temporal traz uma grande preocupação para o povo Xokleng e para os povos indígenas do Brasil. Se for reconhecido pelo STF, trará um retrocesso muito grande para todas as terras indígenas. Estamos lutando para que isso não aconteça, mas sabemos que os interesses contra as demarcações de terras indígenas no Brasil são muito grandes”.
“É importante que o STF faça mais referência aos acordos internacionais que o Brasil já assinou. Diversos deles garantem proteção específica aos direitos territoriais dos povos indígenas”
Direito internacional, direito originário
Presente à mesa, cuja mediação foi de Paulo Lugon Arantes, a Relatora Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ressaltou a importância das demarcações de terras tradicionais para garantir as vidas indígenas e chamou atenção para o caráter originário dos direitos destas populações.
“Os direitos indígenas se originam da presença indígena, e não de uma concessão do Estado. Os atos de demarcação e registro são atos de reconhecimento de direitos, e não atos constitutivos”, resumiu a relatora.
Ela foi enfática em ressaltar que os direitos constitucionais indígenas “devem ser interpretados à luz dos padrões internacionais, tais como a Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, a OIT.
Tauli-Corpuz também relembrou a visita que fez ao Brasil em 2016, quando percorreu diversos estados, acampamentos e terras indígenas no país e a preocupação com os relatos ouvidos à época a respeito de conflitos e violência, assim como a aplicação do marco temporal, em três casos, pela Segunda Turma do STF.
“Considerando esses fatores, que resultaram em brutal violação ao direito dos povos indígenas a suas terras, territórios e recursos, incluindo remoções forçadas, enderecei uma recomendação ao STF solicitando que a Corte garanta que futuras decisões acerca dos direitos dos povos indígenas sejam plenamente condizentes com os padrões nacionais e internacionais”, afirmou Tauli-Corpuz, cuja visita ao país resultou num relatório com diversas recomendações ao Estado brasileiro.
Para a relatora, é importante que a Suprema Corte brasileira supere “as consequências da aplicação da decisão Raposa Serra do Sol” – primeira vez em que o marco temporal apareceu no STF, embora não tenha sido aplicado naquele caso em específico – e adote uma posição “baseada nos conceitos de uso e posse tradicional, sem qualquer limitação temporal, de acordo com a legislação internacional e a jurisprudência acerca dos direitos dos povos indígenas”.
A necessidade de observar os tratados internacionais que versam sobre os direitos indígenas e que são subscritos pelo Brasil também foi reforçada pela ex-presidente do Mecanismo de Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Erika Yamada. Na mesa, ela ressaltou a importância de levar ao STF uma discussão sobre o “controle de convencionalidade”.
“É importante pedir que o STF faça mais referência aos acordos internacionais que o Brasil já assinou. Diversos deles garantem proteção específica aos direitos territoriais dos povos indígenas, bem como a jurisprudência internacional e da região interamericana”, defendeu Yamada, citando a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil no caso do povo Xukuru.
“Se o STF votar pela tese do marco temporal, demarcações de terras indígenas no sul, sudeste e nordeste não mais serão realizadas e a grande maioria das áreas demarcadas poderão ser revisadas”
Visibilidade
Na avaliação de Yamada, o fato de a repercussão geral ter sido reconhecida em um caso envolvendo o povo Xokleng chama atenção para a situação dos povos indígenas fora da Amazônia, que têm “pouca visibilidade internacional”.
“Na região sul, vive uma das maiores populações indígenas do país num dos menores espaços de terra. Apenas 0,1% do território desses estados é reconhecido como terras indígenas regularizadas. Então estamos, sim, falando de situações de confinamento dos povos indígenas”, avaliou.
“Essas áreas diminutas demarcadas não atendem o próprio conceito constitucional de terras indígenas, que é para garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas no Brasil”, apontou ela, lembrando o relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos que, em 2016, expôs a grave situação e as diversas violações a que os povos indígenas na região sul do país estavam submetidos.
Para Liebgott, não por acaso, os povos indígenas das regiões sul, sudeste e nordeste estão entre os que seriam mais diretamente afetados no caso de uma decisão favorável ao marco temporal.
“Se o STF votar pela manutenção dessa tese, demarcações de terras indígenas no sul, sudeste e nordeste não mais serão realizadas e a grande maioria das áreas demarcadas poderão ser revisadas”, destacou o missionário.
Participação e voz
A ex-presidente do Mecanismo de Peritos da ONU também parabenizou o povo Xokleng pela luta para que tivesse voz no processo que discute a posse de seu território tradicional e pode ser decisivo para o conjunto dos povos indígenas do país. Em junho, o STF admitiu os indígenas como parte do processo, de maneira que poderão se manifestar ao longo do processo.
Durante a 12ª Sessão do Mecanismo, um dos pontos debatidos foi a forma de se assegurar uma participação mais ampla dos povos indígenas no Conselho de Direitos Humanos da ONU. A representação do governo brasileiro buscou emperrar a discussão e, assim, impedir avanços no tema.
“A gente teve um debate todo sobre a participação dos povos indígenas no Conselho de Direitos Humanos com espaços de fala, e no Brasil ainda temos que debater a possibilidade de vocês serem parte no processo judicial que discute a situação da terra de vocês”, afirmou Yamada.
“Esperamos que o Supremo não reconheça o marco temporal e pedimos que os países nos ajudem. Nunca estivemos num momento tão difícil como este”
Futuro em aberto
Os participantes avaliaram, de forma geral, que o processo de repercussão geral no STF pode ser determinante para o futuro dos povos indígenas no Brasil, aprofundando alguns dos conceitos e institutos presentes no artigo 231 da Constituição Federal brasileira.
Um desses conceitos, relembrado pela deputada federal Joenia Wapichana, presente em Genebra, é o direito à imprescritibilidade. “O direito de reivindicar a demarcação não tem prazo para acabar”, destacou a parlamentar, apontando que este é um dos princípios constitucionais que se opõe frontalmente às suposições da tese do marco temporal.
“Essa tese do marco temporal tem sido utilizada para retaliar os direitos indígenas e, por mais que seja um absurdo, muitos parlamentares têm tentado fazer com que essa tese se torne lei. Mas todos os esforços vão ser feitos para rebater essa interpretação inconstitucional”, afirmou a deputada.
“Esperamos que o Supremo não reconheça o marco temporal e pedimos que os países do mundo inteiro nos ajudem. Nunca estivemos num momento tão difícil como este, correndo um risco muito grande”, apelou Brasílio Priprá, fazendo referência às políticas do governo Bolsonaro. “Nada é favorável à demarcação de terras e à própria preservação do meio ambiente”.
Para a Relatora Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, as consequências do processo que ainda não tem data para ser julgado ultrapassam as fronteiras do Brasil.
“Eu gostaria de apelar ao Brasil novamente para que reafirme sua liderança na região em relação ao reconhecimento dos direitos indígenas, através de seu julgamento, que repercutirá não apenas na América Latina, mas também em diferentes partes do mundo”, disse Tauli-Corpuz.
Para Yamada, o Brasil tem, com o caso de repercussão geral, a chance de reverter as violações históricas praticadas contra os povos indígenas no país.
“O caso dos Xokleng, no qual o STF reconheceu a repercussão geral, é uma excelente oportunidade para o Estado brasileiro corrigir essa trajetória de agressão aos povos indígenas e cumprir com suas obrigações internacionais, afastando a aplicação da tese do marco temporal”, afirmou a especialista.
O evento paralelo foi realizado por Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Associação Juízes para a Democracia (AJD), Due Process of Law Foundation (DPLF), Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos e International Movement Against All Forms of Discrimination and Racism (IMADR).