23/05/2019

“Não trocamos a vida dos nossos filhos pelas hidrelétricas”, afirmam lideranças Munduruku na França

Protesto contra projetos de hidrelétricas na abertura do Congresso Mundial de Hidrelétricas. Foto por Todd Southgate

Protesto contra projetos de hidrelétricas na abertura do Congresso Mundial de Hidrelétricas. Foto por Todd Southgate

Por Verônica Holanda*

Unindo-se a uma coalizão de organizações pelos direitos humanos e ambientais, lideranças Munduruku protestaram contra projetos de hidrelétricas na abertura do Congresso Mundial de Hidrelétricas. O evento bienal foi realizado dos dias 14 a 16 de maio e organizado pela IHA (Internacional Hydropower Association, Associação Internacional de Hidrelétricas em português). Ele tem por objetivo estabelecer prioridades para o futuro de tal forma de produção de energia.

A principal integrante do evento foi a EDF (Électricité de France, Eletricidade da França em português), maior distribuidora de energia elétrica da Europa e maior produtora de energia nuclear mundialmente. No Brasil, ela foi responsável pela construção da hidrelétrica de Sinop, localizada no rio Teles Pires, no Mato Grosso, e contribui com estudos para a construção da usina hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará. A construção de tal barragem, no entanto, inundaria a Terra Indígena Sawré Muybu, território do povo Munduruku.

O licenciamento de São Luiz do Tapajós foi arquivado em 2016, depois que os indígenas conquistaram a publicação do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Sawré Muybu. Apesar disso, os planos de concretização do megaprojeto que afetaria diretamente os Munduruku seguem ativos.

Alessandra Korap, Candido Waro e o cacique Arnaldo Kabá, as lideranças que participaram dos protestos em Paris, tentaram entregar uma carta aos representantes da EDF presentes no congresso. “Nós caciques, mulheres, pajés, guerreiros e crianças ouvimos os pássaros cantar mais baixo, os rios estão doente e vocês das empresas estão invadindo e acabando com a Amazônia”, afirmam no texto. Contudo, o grupo da empresa se recusou a encontrar e dialogar com os indígenas.

Nesta edição, o principal objetivo do congresso era classificar a energia produzida em hidrelétricas como renovável e sustentável, características essenciais para cumprir as medidas do Acordo de Paris e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Entretanto, a construção de barragens possui um longo histórico de catástrofes ambientais e sociais, desperdícios econômicos e grandes esquemas de corrupção, como aponta o documento elaborado pelo conjunto de organizações da sociedade civil que se opuseram ao congresso.

Leia a carta na íntegra abaixo:

CARTA MUNDURUKU

Nós do povo Munduruku sempre decidimos continuar resistindo, defendendo a vida dos nossos filhos, mostrando e ensinando o caminho sem ganância, sem doenças, sem ameaças para nosso povo. Não trocamos a vida dos nossos filhos pelas hidrelétricas, mineração, portos, concessão florestal, ferrovia e hidrovia. O governo e as empresas continuam matando a nossa mãe terra. Já mataram a mãe dos nossos peixes como Karobixexe e Dekokaía. Agora, o novo governo não é diferente. É o mesmo pariwat (branco) inimigo dos povos indígenas.

Estamos aqui mandando o recado: não trocamos e nem negociamos a vida do nosso povo! A cada dia, a cada minuto, o governo Bolsonaro quer acabar com o nosso direito, com nosso território, não queremos que as empresas junto com o governo brasileiro destrua o nosso rio como vocês fizeram com a Usina Hidrelétrica Belo Monte, Teles Pires, São Manoel e tantas outras barragens. Nós caciques, mulheres, pajés, guerreiros e crianças ouvimos os pássaros cantar mais baixo, os rios estão doente e vocês das empresas estão invadindo e acabando com a Amazônia. O presidente Bolsonaro não quer demarcar as nossas terras mais querem acabar com elas, não respeita a VIDA que temos. Viemos de tão longe da nossas casas pra deixar bem claro que vamos continuar fazendo autodemarcação, vamos continuar a fazer nossos encontros de RESISTÊNCIA, lutando contra esses monstros que querem arrancar as nossas florestas, matar os nossos animais. Vamos defender os nossos locais sagrados, que as empresas destruíram e querem destruir, como o nosso Karobixexe (onde os espíritos se juntam), Dekuka’a (morro dos macacos) e Dajekapap (os fechos atravessia dos porcos).

O Governo está rasgando a Convenção 169 da OIT, está declarando guerra contra os povos indígenas, mais nós fizemos os nossos próprios protocolos de Consulta Munduruku e outros povos que estão fazendo os seus próprios protocolos.

Além de tudo, os políticos e empresários são surdos aos reclames da nossa Awaidip (floresta). Mas nós a escutamos e sabemos que a cada barragem construída, um dedo do tatu que sustenta o planeta é cortado … por isso todo esse desequilíbrio, essas mortes, essas tragédias. São provocadas pelo pariwat e todos nós sofremos, que sofrem com a morte dos seus rios e com todos aqueles que foram vítimas desses crimes cometidos pelas barragens. E nos Munduruku vamos continuar defendendo os nossos rios para que as futuras gerações tenham o território garantido, possam continuar existindo do nosso modo e cultivando o nosso bem VIVER.

Sawe, sawe, sawe!

Paris, 14 de maio de 2019

 

*Estagiária sob supervisão de Tiago Miotto

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