“Não trocamos a vida dos nossos filhos pelas hidrelétricas”, afirmam lideranças Munduruku na França
Unindo-se a uma coalizão de organizações pelos direitos humanos e ambientais, lideranças Munduruku protestaram contra projetos de hidrelétricas na abertura do Congresso Mundial de Hidrelétricas. O evento bienal foi realizado dos dias 14 a 16 de maio e organizado pela IHA (Internacional Hydropower Association, Associação Internacional de Hidrelétricas em português). Ele tem por objetivo estabelecer prioridades para o futuro de tal forma de produção de energia.
A principal integrante do evento foi a EDF (Électricité de France, Eletricidade da França em português), maior distribuidora de energia elétrica da Europa e maior produtora de energia nuclear mundialmente. No Brasil, ela foi responsável pela construção da hidrelétrica de Sinop, localizada no rio Teles Pires, no Mato Grosso, e contribui com estudos para a construção da usina hidrelétrica São Luiz do Tapajós, no Pará. A construção de tal barragem, no entanto, inundaria a Terra Indígena Sawré Muybu, território do povo Munduruku.
O licenciamento de São Luiz do Tapajós foi arquivado em 2016, depois que os indígenas conquistaram a publicação do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Sawré Muybu. Apesar disso, os planos de concretização do megaprojeto que afetaria diretamente os Munduruku seguem ativos.
Alessandra Korap, Candido Waro e o cacique Arnaldo Kabá, as lideranças que participaram dos protestos em Paris, tentaram entregar uma carta aos representantes da EDF presentes no congresso. “Nós caciques, mulheres, pajés, guerreiros e crianças ouvimos os pássaros cantar mais baixo, os rios estão doente e vocês das empresas estão invadindo e acabando com a Amazônia”, afirmam no texto. Contudo, o grupo da empresa se recusou a encontrar e dialogar com os indígenas.
Nesta edição, o principal objetivo do congresso era classificar a energia produzida em hidrelétricas como renovável e sustentável, características essenciais para cumprir as medidas do Acordo de Paris e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Entretanto, a construção de barragens possui um longo histórico de catástrofes ambientais e sociais, desperdícios econômicos e grandes esquemas de corrupção, como aponta o documento elaborado pelo conjunto de organizações da sociedade civil que se opuseram ao congresso.
Leia a carta na íntegra abaixo:
CARTA MUNDURUKU
Nós do povo Munduruku sempre decidimos continuar resistindo, defendendo a vida dos nossos filhos, mostrando e ensinando o caminho sem ganância, sem doenças, sem ameaças para nosso povo. Não trocamos a vida dos nossos filhos pelas hidrelétricas, mineração, portos, concessão florestal, ferrovia e hidrovia. O governo e as empresas continuam matando a nossa mãe terra. Já mataram a mãe dos nossos peixes como Karobixexe e Dekokaía. Agora, o novo governo não é diferente. É o mesmo pariwat (branco) inimigo dos povos indígenas.
Estamos aqui mandando o recado: não trocamos e nem negociamos a vida do nosso povo! A cada dia, a cada minuto, o governo Bolsonaro quer acabar com o nosso direito, com nosso território, não queremos que as empresas junto com o governo brasileiro destrua o nosso rio como vocês fizeram com a Usina Hidrelétrica Belo Monte, Teles Pires, São Manoel e tantas outras barragens. Nós caciques, mulheres, pajés, guerreiros e crianças ouvimos os pássaros cantar mais baixo, os rios estão doente e vocês das empresas estão invadindo e acabando com a Amazônia. O presidente Bolsonaro não quer demarcar as nossas terras mais querem acabar com elas, não respeita a VIDA que temos. Viemos de tão longe da nossas casas pra deixar bem claro que vamos continuar fazendo autodemarcação, vamos continuar a fazer nossos encontros de RESISTÊNCIA, lutando contra esses monstros que querem arrancar as nossas florestas, matar os nossos animais. Vamos defender os nossos locais sagrados, que as empresas destruíram e querem destruir, como o nosso Karobixexe (onde os espíritos se juntam), Dekuka’a (morro dos macacos) e Dajekapap (os fechos atravessia dos porcos).
O Governo está rasgando a Convenção 169 da OIT, está declarando guerra contra os povos indígenas, mais nós fizemos os nossos próprios protocolos de Consulta Munduruku e outros povos que estão fazendo os seus próprios protocolos.
Além de tudo, os políticos e empresários são surdos aos reclames da nossa Awaidip (floresta). Mas nós a escutamos e sabemos que a cada barragem construída, um dedo do tatu que sustenta o planeta é cortado … por isso todo esse desequilíbrio, essas mortes, essas tragédias. São provocadas pelo pariwat e todos nós sofremos, que sofrem com a morte dos seus rios e com todos aqueles que foram vítimas desses crimes cometidos pelas barragens. E nos Munduruku vamos continuar defendendo os nossos rios para que as futuras gerações tenham o território garantido, possam continuar existindo do nosso modo e cultivando o nosso bem VIVER.
Sawe, sawe, sawe!
Paris, 14 de maio de 2019
*Estagiária sob supervisão de Tiago Miotto