15/02/2019

Ministro revê decisão e índios Guarani serão ouvidos em processo de demarcação da TI do Morros dos Cavalos

A reconsideração do ministro relator, Alexandre de Morais, assegura o mesmo direito de voz no processo aos indígenas e aos não indígenas

Os Guarani passam a ser parte ativa no processo que discute a demarcação de sua terra tradicional. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Os Guarani passam a ser parte ativa no processo que discute a demarcação de sua terra tradicional. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Por Adilvane Spezia, da ASCOM/Cimi

O acesso à Justiça entre indígenas e não indígenas tem se dado de forma diferente no Brasil, especialmente quando o tema é demarcação de terras indígenas. Nesta quarta-feira, 13, os Guarani Mbya e Nhandeva da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos receberam com esperança a notícia de que o ministro relator da Ação Cível Originária (ACO) 2323, Alexandre de Moraes, reviu sua decisão anteriormente adotada e deferiu o pedido da comunidade localizada em Palhoça, Santa Catarina. Os Guarani passam a ser admitidos ao processo na condição de litisconsorte passivo necessário, termo técnico jurídico que assegura à comunidade o direito de acesso à Justiça. Sendo assim, os Guarani passam a ser parte ativa no processo que discute a demarcação de sua terra tradicional.

O trecho da decisão do ministro disponibilizada, ainda incompleta, foi assim registrado no site do Supremo Tribunal Federal (STF): “…RECONSIDERO a decisão agravada para admitir a Comunidade Indígena Guarani Morro dos Cavalos como litisconsorte no polo passivo da relação jurídica processual, ficando, por conseguinte, prejudicada a análise do agravo interno pelo Plenário da CORTE”.

“Só vai para julgamento se novamente houver recurso, do contrário, está resolvida a questão processual do litisconsórcio”

A decisão entra em vigor a partir de sua publicação, o que ocorrerá no dia 18. Só então começa a correr o prazo para possível recurso que, se aceito pelo STF, pode vir a ser julgado. “Só vai para julgamento se novamente houver recurso, do contrário, está resolvida a questão processual do litisconsórcio”, esclarece o assessor jurídico do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) e advogado da comunidade, Rafael Modesto dos Santos.

Os Guarani estiveram no STF em Brasília entre os dias 4 à 6 deste mês para acompanhar o caso. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Os Guarani estiveram no STF em Brasília entre os dias 4 à 6 deste mês para acompanhar o caso. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Os Guarani agora terão sua contestação novamente inclusa aos autos do processo, já que quando lhes foi negado o direito ao litisconsórcio, tirou-se a referida peça. “Para nós indígenas, a decisão do ministro representa uma conquista, pois somos sujeitos de direitos. Agora, está sendo cumprido o que a Constituição prevê”, afirma o cacique Guarani Nhandeva e advogado Hyral Moreira.

Com a definição desta quarta (13), a comunidade passa a ter direito de pleitear a produção de provas que achar necessário, como oitiva de testemunhas, perícias e juntar documentos. Mais que isso, explica Rafael Modesto, “a diferença entre o litisconsórcio e a assistência simples, que havia sido determinada anteriormente pelo ministro, repousa justamente na abrangência temporal da atuação no processo. Necessariamente, todos os atos decisórios devem ser anulados na primeira espécie”.

“O processo agora tem que permitir à comunidade atos processuais que já ocorreram, ou deveriam ocorrer, no passado”

Desta forma, o processo deverá retornar a sua fase inicial, permitindo aos Guarani produzir todas as provas que julgarem necessário. Por sua vez, a assistência simples garantia apenas o acompanhamento do processo a partir da fase em que se encontrava, tendo prejudicado a atuação da comunidade para questionar atos anteriores, aponta o advogado dos Guarani. “O processo pode ter um retardo, uma demora maior com a decisão do ministro, já que tem que permitir à comunidade atos processuais que já ocorreram, ou deveriam ocorrer, no passado”.

A delegação composta pelos Guarani Mbya e Xokleng estiveram na Capital Federal com o objetivo de serem ouvidos pela Suprema Corte. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

A delegação composta pelos Guarani Mbya e Xokleng estiveram na Capital Federal com o objetivo de serem ouvidos pela Suprema Corte. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Casos similares ao Morro do Cavalos tramitam no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ou seja, já existem processos que reconhecem a participação das comunidades como parte legítima, atuando diretamente no processo, uma vez que quem será afetada é a comunidade em qualquer decisão, seja ela a favorável ou não. Para os Guarani, serem admitidos no processo é de extrema importância, conta Kerexu Yxapyry, liderança da TI. “Morro do Cavalos é um pilar, uma base das demarcações e reivindicações de Terra Indígena no Brasil inteiro. Esse processo todo é fortalecido pela luta e defesa dos povos indígenas e de seus direitos tradicionais. Está luta não é só dos Guarani do Morro dos Cavalos é de todos os povos originários”.

 

Batalha por acesso à Justiça

O Judiciário brasileiro ainda precisa percorrer um longo caminho para que o direito dos povos indígenas de acessar a Justiça seja plenamente respeitado. “São vários os processos que acompanhamos com esse tema, desde Guarani, Guarani e Kaiowá, Tupinambá, Pataxó, Xokleng, Kaingang, Terena. Na maioria dos casos, quando é feito o pedido de ingresso, o juízo permite. Nesse caso de Morro dos Cavalos (ACO 2323) nós estávamos tendo dificuldades, já que, em primeiro momento, o ministro indeferiu o litisconsórcio e deferiu apenas a assistência simples”, esclarece Modesto. “Como se a comunidade indígena não fosse diretamente afetada por qualquer decisão que venha a ser tomada no processo”.

O Judiciário brasileiro ainda precisa percorrer um longo caminho para que o direito dos povos indígenas de acessar a Justiça seja plenamente respeitado. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

O Judiciário brasileiro ainda precisa percorrer um longo caminho para que o direito dos povos indígenas de acessar a Justiça seja plenamente respeitado. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

É comum o uso do argumento de que os indígenas são tutelados pela Funai, em casos no STF e STJ, e que por isso não carece a participação dos índios como parte, fundamento que cada vez mais tem sido questionado. A assessoria jurídica do Cimi tem pedido que seja declarado a inconstitucionalidade do regime tutelar do índio, nos termos do que já é reconhecido pela Constituição de 1988.

“os povos indígenas tem se mobilizado no intuito de que se cumpra o que determina o artigo 231 da Constituição Federal”.

Como aponta, Hyral, “povos indígenas, de maneira geral, tem se mobilizado no intuito de que se cumpra o que determina o artigo 231 da Constituição Federal”.

A ACO 2323 é uma ação do estado de Santa Catarina que, no mérito, busca anular a demarcação da TI Morro dos Cavalos com base na tese do chamado “marco temporal”. Trata-se de uma interpretação restritiva do artigo 231 da Constituição Federal, segundo a qual os indígenas teriam direito apenas às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988. O artigo 231, entretanto, é o marco do reconhecimento de direitos originários, ou seja, que já existiam antes mesmo do Estado brasileiro ser formado como Estado.

A ACO 2323 é uma ação do estado de Santa Catarina que, no mérito, busca anular a demarcação da TI Morro dos Cavalos com base na tese do chamado “marco temporal”. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

A ACO 2323 é uma ação do estado de Santa Catarina que, no mérito, busca anular a demarcação da TI Morro dos Cavalos com base na tese do chamado “marco temporal”. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

“Quando a Constituição Federal diz que ‘são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam’, isso quer dizer que o direito é anterior a Constituição Federal, no conceito de reconhecer, identificar e distinguir”, explica Hyral.

Com este precedente, aumentam as chances de que os processos das TIs Limão Verde, Guyraroka e Porquinhos, cujas demarcações foram anuladas em 2014 pela Segunda Turma do STF, sejam revistos. Nos três casos, os indígenas foram ignorados como sujeitos de direito e suas terras foram anuladas com base no marco temporal.

“A decisão do ministro deve causar um impacto importante nos processos julgados em 2014, já que tende a jogar por terra fator fundante daqueles julgados da Segunda Turma”

Casos como Morro dos Cavalos somam precedentes no STF e no STJ, dando garantia do direito dos índios de serem parte nos processos. Na avaliação de Modesto, os três processos mencionados devem ser revistos e os atos decisórios anulados, por se tratarem de matéria de ordem pública e que gera nulidade processual. “A decisão na ACO 2323, dos Guarani de Morro dos Cavalos, deve causar um impacto importante nos processos julgados em 2014, já que tende a jogar por terra fator fundante daqueles julgados da Segunda Turma”.

 

TI Morro dos Cavalos: entenda o caso

A Terra Indígena Morro dos Cavalos está localizada no litoral catarinense, região com forte pressão por parte do setor imobiliário e também de transportes, já que a área indígena é cortada ao meio pela BR-101. Em fase avançada do processo de demarcação, a área de 1.983 hectares tem sido alvo de inúmeras ofensivas de grupos que pedem a retirada dos Guarani Mbya e Nhandeva da terra tradicional, inclusive por interesse de grupos políticos ligados à bancada ruralista.

Os Guarani tem sido alvo de inúmeras ofensivas de grupos que pedem a retirada do grupo da terra tradicional. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

Os Guarani tem sido alvo de inúmeras ofensivas de grupos que pedem a retirada do grupo da terra tradicional. Crédito: Tiago Miotto/Cimi

A ACO 2323, em questão, é uma ação interposta pelo Estado de Santa Catarina contra a União Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai), que busca anular o processo administrativo que culminou na edição da Portaria Declaratória n.º 771, de 18 de abril de 2008, do Ministério da Justiça a qual reconhece a ocupação tradicional da Terra Indígena Morro dos Cavalos pelos Guarani.

A luta e resistência deste povo já se arrasta por alguns anos em defesa de seu território. Entre os dias 04 e 06 de fevereiro deste ano, uma delegação Guarani Mbya e Xokleng estiveram na Capital Federal com o objetivo de serem ouvidos pela Suprema Corte, além do julgamento do agravo regimental, a delegação realizou uma série de incidências políticas, o que segundo o grupo, foi exitosa.

Saiba mais: https://goo.gl/L1KoF6 e https://bit.ly/2BrUpfz

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