31/01/2019

Cerca de 2 mil indígenas do Ceará realizam ‘Marcha da Resistência’ como parte do #JaneiroVermelho

A mobilização em Fortaleza, capital cearense, fez parte da programação da campanha #JaneiroVermelho – Sangue Indígena, Nenhuma Gota a Mais, organizada pela Apib

A Marcha da Resistência percorreu avenidas importantes de Fortaleza (CE) neste dia 31 de #JaneiroVermelho. Crédito: Renato Santana/Cimi

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi/Mobilização Nacional Indígena

As ruas de alguns bairros de Fortaleza, capital cearense, foram tomadas nesta quinta-feira, dia 31, pela Marcha da Resistência, realizada por cerca de 2 mil indígenas de todo o estado. O ato público, que contou com a participação de movimentos sociais, fez parte da programação de encerramento da campanha #JaneiroVermelho – Sangue Indígena, Nenhuma Gota a Mais, organizada pela Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Foram protestos em 22 estados, Distrito Federal e exterior.

Conforme a convocatória da Apib, o objetivo dos atos, país afora, é o “de denunciar a crescente ameaça que os povos originários e seus territórios têm sofrido, bem como os retrocessos impostos pelo Estado brasileiro”. O nome deste retrocesso tem nome e sobrenome: a Medida Provisória (MP) 870/19 do governo Jair Bolsonaro. “É uma ação que faz parte daquilo que esperamos que seja uma jornada de lutas dos povos indígenas contra medidas do tipo”, destaca Weibe Tapeba.

No Ceará, a marcha do #JaneiroVermelho visitou o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU), realizando audiências na rua, entre a multidão de manifestantes. Os povos indígenas protocolaram requerimentos solicitando que as instituições, conforme atribuições determinadas pela Constituição Federal, entrem com ações judiciais pela nulidade da MP 870, que ainda aguarda o prazo de 45 dias para ser votada pela Câmara Federal.

Weibe Tapeba ao lado do procurador da República responsável pela 6a Câmara da PGR no Ceará, Fernando Negreiros. Crédito: Renato Santana/Cimi

“Vocês vieram ao lugar certo. Não existe um só procurador da República neste país que não tenha claro que isso (MP 870) é absolutamente inconstitucional”, enfatiza o procurador da República, Fernando Negreiros, que responde pela 6a Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República (PGR) no Ceará. Já o procurador-chefe da República no estado, Rômulo Conrado, destaca que os direitos indígenas são “direitos reconhecidos na Constituição brasileira desde 1934, pelo menos. Não é admissível tamanho retrocesso, de quase 100 anos. A proteção destes direitos é um compromisso do Estado Democrático de Direito”.

A procuradora Nilce Cunha Rodrigues lembra que o MPF possui uma condição imposta pela Constituição Federal, que é a de defender os direitos dos índios. “Qualquer violação, ameaça, não vamos deixar passar em branco”. Nilce, diante das mudanças e confusões geradas pela MP 870, entende que mesmo antes, com a Funai apta a fazer essa defesa, “estava difícil de conseguir as demarcações”. A estrutura do órgão indigenista funcionava, mas não era eficiente. “Agora piorou muito, a Funai teve atribuições esvaziadas. Então estaremos prontos para estar ao lado de vcs”, conclui.

Na interpretação do procurador Ricardo Magalhães, “as medidas do governo recém empossado retiram a eficácia dos direitos indígenas, que estão previstos na Constituição e são normas importantes, garantia da terra e dos meios de vida”. Para ele “não há sentido” tirar as demarcações do Ministério da Justiça, bem como a Funai. “A não ser para atender interesses escusos de algum grupo político”. O procurador, porém, defende que o MPF atue de forma articulada “porque é um problema nacional”.

Além do MPF, os povos indígenas poderão contar também com a DPU. “A diminuição e precarização de direitos indígenas não afetam apenas os povos indígenas. Afetam também o meio ambiente. Não existe diferença entre o indígena e o meio ambiente. São um só. Para entendermos isso, é imprescindível a compreensão de que somos uma nação plurinacional, não temos apenas um padrão cultural a ser defendido”, analisa o chefe da DPU no Ceará, Filippe Augusto.

Já no primeiro dia de governo, Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP) nº 870, que transfere para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a atribuição de identificar, demarcar e registrar as terras indígenas (TIs), promovendo o esvaziamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro. A MP 870 retirou também a Funai do Ministério da Justiça e realocou-a no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta comandada por Damares Alves, pastora evangélica denunciada pelo sequestro de uma criança indígena, de acordo com reportagem da revista Época que chega às bancas neste final de semana.

Os 14 povos indígenas do Ceará enviaram delegações para a Marcha da Resistência do #JaneiroVermelho. Crédito: Renato Santana/Cimi

Caso exemplar

Quando olhamos para a situação fundiária dos territórios indígenas no Ceará, nos deparamos com um caso exemplar para a política indigenista pós-MP 870/19. São 22 terras tradicionais, dispostas em 20 municípios do estado, e apenas uma delas, a Córrego João Pereira, do povo Tremembé, está homologada. Todas as demais terras estão sem regularização, estacionadas em alguma etapa do procedimento demarcatório; outras, sem nenhuma providência.

São 14 povos espalhados entre o litoral e o interior, tendo a capital Fortaleza como a cidade com a maior concentração de indígenas (IBGE, 2010). Não é necessário fazer muitas contas para perceber que o Ceará é um dos estados com o maior déficit demarcatório do país. Em contrapartida, a MP 870, publicada pelo governo Bolsonaro, logo no primeiro dia do ano, transferiu para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a atribuição de identificar, demarcar e registrar as terras indígenas.

“Não sabemos como as demarcações ocorrerão, ninguém sabe. O que sabemos é que a MP é para inviabilizá-las porque o Ministério da Agricultura está nas mãos de uma ruralista (Tereza Cristina, da bancada ruralista da Câmara) e os procedimentos ocorrerão no âmbito da Secretaria de Assuntos Fundiários, que será controlado por outro ruralista (Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista)”, afirma Weibe Tapeba, também vereador no município de Caucaia.

O fechamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação, não é aceito pelos povos indígenas. Na Secadi havia a Diretoria de Diversidade, comandada por Rita Potiguara, e lá eram tratados os temas de Educação Escolar Específica, tanto para os povos indígenas quanto para os quilombolas. “Não sabemos como ficará a educação indígena sem a Secadi. Sou professor indígena e o que estamos querendo é que o governo volte atrás, restabeleça a Secadi porque é uma secretaria importante pra nosso projeto de educação diferenciada, de escola diferenciada”, protesta Thiago Anacé.

Na análise do deputado estadual Renato Roseno (PSOL), aliado dos povos indígenas na Assembleia Legislativa do Ceará,  “o que a Constituição de 1988 ratificou foi a conquista dos povos indígenas do direito à terra como um direito originário. Quem quer retirar esse direito são os ruralistas. Os mesmos que fizeram essa articulação com este governo de viés populista e autoritário. Porque querem, sobretudo, avançar o seu braço espoliador e destrutivo sobre os povos indígenas e suas terras”. Conforme Roseno, o dia de mobilizações do #JaneiroVermelho, seja no Ceará, no país ou no mundo, demonstrou que os povos indígenas têm a solidariedade e o apoio da sociedade.

Ceiça Pitaguary entrega ao chefe da DPU no Ceará, Filippe Augusto, pedido de ingresso de ação para anular a MP 870. Crédito: Renato Santana/Cimi

Mineração, saúde e a questão da mulher

Preá Jenipapo-Kanindé se deteve a um ponto, em conversa com outros indígenas: “não é brincadeira. As informações que chegam de Brasília é que o Ministério da saúde irá municipalizar a saúde indígena. Isso muda todo o Subsistema de Saúde Indígena, joga nossa saúde nas mãos de poderes que muitas vezes são contrários aos povos indígenas”. Não há nada oficial, tudo parte de especulações e informações, mas o ministro Luiz Henrique Mandetta, oriundo da bancada ruralista da Câmara Federal, disse em seu discurso de posse que mudanças ocorreriam nesta área da pasta.

“Creio que a lógica deste governo está clara: indígenas do Norte ainda não estão aculturados, por isso terão assistência diferenciada. Os demais já são aculturados, para eles. Não há porque ter saúde tampouco educação diferenciadas”, analisa o professor e pesquisador em bioética do curso de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Saulo Feitosa. Para o professor, que trabalha junto aos povos indígenas há mais de três décadas, a questão territorial será tratada sob os mesmos termos. “Em situações bem gritantes, como no Mato Grosso do Sul, poderão admitir compra de pequenas parcelas de terras dos latifundiários”.

A expectativa dos povos indígenas do Ceará é que a Marcha tenha sido a primeira de uma intensa jornada de lutas. Crédito: Renato Santana/Cimi

Em face da MP 870, além de tantas declarações racistas e agressivas contra os povos indígenas, antes e depois da campanha eleitoral, complementadas pelos pronunciamentos de posse dos ministros sinalizando para o enfraquecimento ou aniquilação de direitos, Ceiça Pitaguary não acha mais nada impossível. “Meu povo vive rodeado por pedreiras, que é uma forma de mineração. Tentam tirar 300 hectares das nossas terras para entregar para a mineradora. O que aconteceu em Brumadinho (MG), deixando a gente desalentado, é o que os povos indígenas vêm denunciando: é preciso parar governos que beneficiam empresas como a Vale em detrimento do meio ambiente, de povos e comunidades, vidas de todos os tipos e espécies”.

Ceiça destaca a situação da mulher indígena neste cenário. A Pitaguary diz que o presidente “é um misógino e machista declarado, que defende essas posturas”. Em recente reunião da Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará, Ceiça diz que as discussões giravam ao redor de perguntas: como fortalecer as mulheres numa luta que não tem apenas os povos indígenas como alvo, mas as próprias mulheres? Quais impactos afetarão as aldeias? Como fazer o enfrentamento? “Acredito que a mulher indígena precisa intensificar a sua pauta, se empoderar na luta coletiva pela terra, pelos direitos e por seus direitos”.

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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