Protesto pela execução de sentença da CIDH contra Estado brasileiro leva povo Xukuru a Brasília
Além de demarcar e desintrusar a Terra Indígena Xukuru, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou o pagamento de indenização no valor de um milhão de dólares
Uma delegação de indígenas Xukuru do Ororubá está em Brasília para pressionar o governo federal pelo cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que condenou o Estado brasileiro no caso envolvendo as violações sofridas pelo povo. Os Xukuru devem se reunir nesta terça-feira, 4, com representantes do governo federal, para tratar da execução da sentença, proferida em março deste ano após julgamento ocorrido um ano antes, em 23 de março de 2017, na Guatemala. O governo brasileiro tem, portanto, até março do ano que vem para apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para o cumprimento das obrigações. Nenhum dos pontos da sentença foi executado até o momento.
A sentença condena o Estado brasileiro a concluir a demarcação do território do povo Xukuru, localizado na Serra do Ororubá, município de Pesqueira, agreste pernambucano. Da mesma forma, a Corte determina ao governo federal que realize a retirada de ocupantes não indígenas, fazendo os pagamentos aos remanescentes de boa-fé na terra indígena. Determina ainda o pagamento de indenização por danos imateriais ao povo no montante de um milhão de dólares. Trata-se de uma decisão inédita, denunciando as violências e violações contra os povos indígenas, promovidas por omissão ou até mesmo diretamente pelo Estado brasileiro, com repercussões negativas ao país em caso de descumprimento pelo governo.
Conforme nota explicativa da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), uma das representações legais dos Xukuru, “em caso de descumprimento da sentença, o caso é levado à Assembleia Geral da Organização Internacional dos Estados Americanos e as sanções podem se dar no campo político, econômico, social e mercantil. O ideal é que o Brasil cumpra espontaneamente a sentença internacional. Nesse caso, será desnecessário qualquer expediente judicial para fazê-la valer dentro do Brasil”. O Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e a Justiça Global também representam os Xukuru na Corte Interamericana.
A sentença condena o Estado brasileiro a concluir a demarcação do território do povo Xukuru, localizado na Serra do Ororubá, município de Pesqueira, agreste pernambucano
“Eu vi o meu pai ser assassinado (o cacique Xikão Xukuru, em 1998). Eu vi o filho do pajé levar um tiro. A reconquista do território Xukuru não foi mérito do governo federal. Sempre houve uma pressão nossa para que o Estado brasileiro cumprisse o seu papel”, declarou o cacique Marcos Xukuru durante o julgamento da CIDH, na Guatemala. O processo foi impetrado na Corte Interamericana após os episódios ocorridos em 2003. Uma emboscada sofrida pelo cacique Marcos Xukuru, na estrada que leva à Vila de Cimbres, alto da Serra do Ororubá, vitimou de forma fatal os indígenas Milson e Nilson Atikum. Ambos faziam a segurança do cacique Marcos, que assumiu o posto do pai, Xikão Xukuru, executado cinco anos antes por um pistoleiro.
O atentado gerou revolta no povo Xukuru provocando uma onda de retomadas no território reivindicado. A intenção era retirar fazendeiros e jagunços que seguiam praticando violências contra os indígenas. Este processo levou alguns anos se inscrevendo entre as lutas populares mais icônicas no início do século XXI (leia mais abaixo). “Todo jovem Xukuru aprende a história de lutas do povo. Se trata de algo que está em todos os espaços de formação Xukuru. Em muitos desses episódios envolvendo o que está sendo julgado pela Corte Interamericana, eu ainda era bem garoto como muitos jovens Xukuru. Sem dúvida, essa memória e a reparação que esperamos que ocorra compõem a nossa história”, diz o jovem Guilherme Xukuru, que recentemente passou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
A audiência do dia 23 de março de 2017 foi a primeira e única durante todo o julgamento do caso, que levou quase 15 anos para acontecer. “Muitos povos indígenas do Brasil esperam vinte, trinta anos enquanto os processos de demarcação se arrastam e resultam em situações de violência e criminalização”, avalia o cacique Marcos Xukuru. “Há um conjunto de ações do Estado brasileiro que inviabilizam a reconquista de nossos territórios e a efetivação de direitos que temos garantidos. Sem voz frente ao Estado, ficamos numa vulnerabilidade muito grande. Não vemos outra maneira de resolver, a não ser pela pressão internacional”.
Histórico do caso
A Serra do Ororubá, em Pesqueira (PE), município encravado no Vale do Ipojuca, é o cenário de um contexto com mais de três séculos de espoliação e morte do povo Xukuru. Mas, nos anos 1980, essa trajetória começou a mudar. Com a nomeação de Xikão como cacique, os Xukuru se articularam e, após quase 20 anos de luta, em 2001, conseguiram a homologação dos 27.555 hectares em que vivem. Essas mesmas terras que já viram tanta morte abrigam, hoje, mais de 11 mil indígenas que lutam diariamente contra o preconceito e a violência para manter sua cultura viva.
“Eu vi o meu pai ser assassinado (o cacique Xikão Xukuru, em 1998). Eu vi o filho do pajé levar um tiro. A reconquista do território Xukuru não foi mérito do governo federal. Sempre houve uma pressão nossa para que o Estado brasileiro cumprisse o seu papel”, declarou o cacique Marcos Xukuru
Com o fim do regime militar e a transição democrática, a Constituinte de 1988 tornou-se o centro da luta do movimento indígena. Em Brasília (DF), Xikão e outras importantes lideranças indígenas e entidades indigenistas percorreram gabinetes, arregimentaram apoiadores, discutiram propostas, organizaram manifestações e, no final, viram entrar na nova Constituição o direito dos povos originários a suas terras tradicionais.
A vitória trouxe ânimo e, em 1990, os Xukuru iniciaram a retomada de partes de seu território tradicional, enquanto aguardavam a demarcação de sua terra pelo Estado.
No decorrer dos anos 90, frente ao atraso da demarcação, uma sucessão de retomadas levou os fazendeiros a reagir. Em 1992, Pajé Zequinha teve o filho assassinado e, em 1995, o advogado da associação, Geraldo Rolim, também procurador da Funai, foi morto a tiros pelas costas. Xikão sempre acreditou que a base da mudança de seu grupo estava na educação e na organização. Promoveu a criação de comissões de saúde e educação nas aldeias e da Associação do Povo Xukuru – sistema que funciona até hoje e estimula a participação dos indígenas nas decisões do grupo, geralmente discutidas em assembleias e seminários. Na manhã de 20 de maio de 1998, Xikão saía de casa, no bairro Xukuru, em Pesqueira, quando percebeu a chegada de um pistoleiro. Não teve chance de defesa. O assassinato teve repercussão internacional e mobilizou seu povo. Três anos depois, o líder da aldeia Pé de Serra, Chico Quelé, foi assassinado.
No dia 7 de fevereiro de 2003, com a terra Xukuru homologada há dois anos, a história mais uma vez se repetiria. Uma emboscada contra o cacique Marcos, filho e sucessor de Xikão, resultou na morte de dois indígenas responsáveis por sua segurança. Ao saber do atentado, os Xukuru decidiram reagir. Na véspera do carnaval daquele ano, um rastro de fumaça no céu indicava que a Vila de Cimbres havia sido retomada pelos Xukuru, 300 anos depois de construída em território sagrado indígena pelos colonizadores portugueses.
Criminalização
A reação dos Xukuru resultou na condenação de 35 indígenas, entre eles o cacique Marcos, a quatro anos de prisão. As investigações e denúncias afirmam que Marcos armou o atentado e a morte de dois indígenas para aguçar a revolta do seu povo e a saída das famílias não índias da vila. O mesmo ocorreu nas investigações dos assassinatos do cacique Xikão e de Chico Quelé, pelos quais foram culpados indígenas Xukuru.