19/12/2018

Menos médicos: saúde indígena permanece deficitária após fim do prazo de inscrição dos médicos brasileiros

Desistências e falta de procura pode agravar a carência de atendimento nos Distritos Especiais de Saúde Indígena, que apresentam 63 vagas não preenchidas

As mulheres indígenas e sua crianças são hoje as principais vitimas dos problemas do Subsistema de saúde Indígena. Foto: Matheus Alves/MNI

Por Michelle Calazans, da Ascom Cimi

Enquanto o governo federal está preocupado em apresentar ‘números’ acerca do preenchimento de vagas do Programa Mais Médicos, ‘vidas’ estão em risco. A prorrogação do prazo para inscrição de médicos brasileiros, encerrado nessa terça-feira (18), não foi suficiente para preencher a demanda deixada pelos médicos cubanos na saúde indígena. As vagas em aberto nos Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEIs), que representa 59% da vacância nacional (106 vagas), não preenchida na primeira fase, podem se agravar ainda mais.

O balanço parcial divulgado pelo Ministério da Saúde, nessa quarta (19), revelou que, 2.439 médicos brasileiros inscritos no Programa ainda não compareceram aos locais de trabalho. Das 332 vagas disponíveis em DSEIs, 63 não foram preenchidas por médicos brasileiros. Para o levantamento final, o Ministério da Saúde soma as desistências com as vagas que não tiveram procura por esses médicos.

A situação é mais crítica do que parece. Com o fim da cooperação entre a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Cuba no programa Mais Médicos, no início de novembro deste ano, a saúde indígena perdeu 81% do contingente de médicos. Um déficit real de 301, do total de 372 médicos que atendiam a população indígena no Brasil.

“O reconhecimento à saúde indígena está previsto na Constituição Federal de 1988, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e também em outras instâncias internacionais que o Brasil é signatário”

Criança indígena é atendida em campanha de vacinação ocorrida durante o ATL 2018. Foto: Leonardo Milano/MNI

Em algumas regiões do país, a exemplo do norte do Amazonas – tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru -, não houve reposição de profissionais após a saída dos médicos cubanos. O coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Dollis Barbosa da Silva, indígena do povo Marubo, no Vale do Javali, explicou que o atendimento médico nas comunidades era feito exclusivamente por cubanos. “Mais de seis mil indígenas recebiam atendimento de 10 médicos cubanos, em oito polos base de saúde. Após a saída desses médicos, não houve reposição ou qualquer tipo de esclarecimento às comunidades. Estamos totalmente desassistidos e aguardamos alguma posição do governo”, lamentou.

O coordenador da Univaja espera que a substituição dos médicos cubanos siga o atendimento já realizado nos últimos anos às comunidades. “Existia um regime de plantão médico para atendimento, cada médico cubano passava uma temporada de 60 dias até a chegada do próximo profissional, tendo em vista a dificuldade do acesso às aldeias, realizado somente por helicóptero ou barco. Nesse período além do atendimento, os médicos cubanos ensinaram, por meio de oficinas e palestras, a utilizar as ervas medicinais, disponíveis na natureza, como prevenção de doenças. Essa atenção diferenciada nos permitiu continuar em nossas comunidades, pois no atendimento convencional dos brancos, nas cidades, existe muito preconceito e racismo contra a população indígena. É importante ressaltar, também, que os casos de hepatite foram reduzidos significativamente, pois passamos a tomar a vacinação no tempo certo, o que antes não sabíamos. E as doenças cuidadas na atenção básicas já não existem mais”, esclareceu.

O vice-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Nildo Fontes Tukano, assegura que apesar das dificuldades de infraestrutura para o atendimento médico aos indígenas do Rio Negro (AM), a população de 40 mil indígenas contava com o trabalho de 11 médicos desde 2013. “O principal desafio da nossa região é o descolamento para ter acesso às comunidades indígenas, somada à falta de insumos para esse atendimento”, pontuou.

“Apesar da demanda apresentada pela Sesai, os médicos brasileiros não aceitavam trabalhar nas nossas comunidades, por serem acampamentos com situação extremamente precária”.

Cacique Ilson Soares, da Tekoha Y’Hovy, em Guaíra. Oeste do Paraná. Foto. Michelle Calazans, Cimi

A situação de carência no atendimento à saúde indígena não é diferente em Guaíra e Terra Roxa, Oeste do Paraná. Segundo o Cacique do Tekoha Y’Hovy, Ilson Soares, antes da chegada dos médicos cubanos, em 2013, a população indígena nunca havia recebido atendimento médico. “Apesar da demanda apresentada pela Sesai, os médicos brasileiros não aceitavam trabalhar nas nossas comunidades, por serem acampamentos com situação extremamente precária. Um médico cubano era responsável pelo atendimento de três mil e quinhentos indígenas, de 14 acampamentos em Guaíra e Terra Roxa. Quatro aldeias eram visitadas por dia. Esse médico era a favor da medicina tradicional, inclusive remendava alguns remédios. Agora não temos ninguém para fazer esse atendimento”, afirmou.

Próxima etapa

Nesse sentido, o Ministério da Saúde informou ainda que, nos dias 20 e 21 de dezembro, as vagas remanescentes serão ofertadas novamente aos profissionais com registros nos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs). Além disso, nos dias 27 e 28 de dezembro, os médicos brasileiros formados no exterior terão acesso ao sistema para escolherem as vagas em aberto, segundo informações do Ministério da Saúde. Em janeiro de 2019, os médicos estrangeiros terão a mesma oportunidade para se inscrever, nos dias 03 e 04.

Direito à saúde indígena

O reconhecimento à saúde indígena está previsto na Constituição Federal de 1988, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e também em outras instâncias internacionais que o Brasil é signatário. Atualmente, a Convenção nº 169 é considerado o instrumento jurídico do Direito internacional mais atualizado e abrangente em respeito às condições de vida e trabalho dos indígenas e, sendo um tratado internacional ratificado pelo Estado tem caráter vinculante.

Lideranças indígenas se preparando para reivindicação de veículos sanitários. Foto: Cátia Salles

Nesse sentido, em 1999 foi criado o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, por meio da Lei nº 9.836/99, conhecida como Lei Arouca. Esse Subsistema integra os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) que se configuram em uma rede de serviços implantada nas terras indígenas para atender essa população, a partir de critérios geográficos, demográficos e culturais. Seguindo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), esse subsistema considerou a participação indígena como uma premissa fundamental para o melhor controle e planejamento dos serviços, bem como para reforçar a autodeterminação desses povos.

Tanto a Lei Arouca (1999) quanto a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena, aprovada pelo Ministério da Saúde em 2002, foram baseadas inteiramente nas resoluções e no modelo de atenção diferenciada preconizado pela Segunda Conferência Nacional de Saúde Indígena, que foi protagonizada pelo movimento indígena pegando de surpresa os gestores da saúde indígena na época.

Na verdade, a autonomia administrativa e financeira dos Distritos Sanitários Indígenas é o principal fundamento do modelo de gestão propugnado nas conferências de saúde indígena e deve contemplar além dos aspectos meramente administrativos, questões como a democratização e a descentralização das decisões. Além do fortalecimento do controle social e da gestão participativa, a realização de investimentos permanentes na formação dos profissionais indígenas, e a valorização da Medicina Tradicional Indígena.

Os diversos órgãos que têm se sucedido na gestão da saúde indígena no país sempre se caracterizaram por uma cultura institucional autoritária, burocrática e tecnicista, permeada pelas ingerências constantes de grupos políticos anti-indígenas e pelos repetidos escândalos de corrupção.

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