27/09/2018

Ruralistas no poder: agressões e desafios aos Povos Indígenas

Instaurou-se nos diferentes poderes do Estado brasileiro uma atuação sistemática contra os povos, seus direitos e seus aliados. Contudo, os indígenas são resistentes por um projeto de futuro, inclusive no campo das disputas institucionais.

Cleber César Buzatto
Licenciado em Filosofia e Secretário Executivo do Cimi

A publicação do Parecer 001/2017 pela AGU pegou a muitos de surpresa, mas não à bancada ruralista: dias antes da medida ser oficializada, ela foi comemorada nas redes sociais pelo ruralista gaúcho Luis Carlos Heinze (conferir box ao lado). O episódio relata as artimanhas ruralistas e, com prova fornecida por uma das partes, comprova a existência de um acordo político da bancada ruralista com o governo Temer para a elaboração e adoção de um parecer vinculante contra a demarcação de terras indígenas no Brasil. Note-se que a divulgação do vídeo dos ruralistas e a publicação do Parecer antidemarcação ocorreu exatamente no período em que o presidente Michel Temer se defendia de acusações da Procuradoria Geral da República (PGR). Temer buscava apoio parlamentar para evitar abertura de processo de investigação contra sua pessoa. A declaração do ruralista serviu de recado explícito para que o governo cumprisse imediatamente a sua parte no acordo político firmado.

O governo Temer, por meio da ministra Grace Mendonça e do próprio presidente da República, assinou e aprovou o Parecer e determinou sua publicação e aplicação. Logo em seguida, no dia 02 de agosto de 2017, foi a vez dos ruralistas cumprirem a sua parte no acordo e serem os parlamentares que mais depositaram votos contra a abertura de investigação do presidente Temer [1]. Fica evidente, pois, que o Parecer 001/17 não resultou de um estudo jurídico sério coordenado pela Ministra da AGU. Daí seu conteúdo flagrantemente inconstitucional e avesso às decisões do Supremo Tribunal Federal [2] como atesta a nota técnica emitida pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal [3].

Este caso, embora emblemático, não se encontra isolado. Diversos outros instrumentos de ataque aos direitos indígenas têm sido manejados por parlamentares da bancada ruralista. Estudo realizado pelo Cimi [4] demonstra que mais de uma centena de proposições legislativas anti-indígenas tramitam no Congresso Nacional.  Das quais, a PEC 215/00 é a mais conhecida e a que mais tem preocupado e exigido mobilização dos povos indígenas e seus aliados nos últimos anos [5].

Foto: Tiago Miotto/Cimi

Na tentativa de frear a mobilização dos povos em defesa de seus direitos, os ruralistas investiram pesadamente no processo de criminalização de lideranças indígenas e aliados destes junto à sociedade brasileira. Para tanto, dentre outras iniciativas, fizeram uso de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) da Funai/Incra como arma principal.  Palco de requentadas e infundadas acusações, as CPIs comandadas pela bancada ruralista foram transformadas em palanque para discursos discriminatórios e de incitação ao ódio e à violência contra líderes indígenas, membros do Ministério Público Federal, profissionais da academia, pesquisadores, de modo particular da ciência antropológica, além de membros de organizações da sociedade civil que atuam legal e legitimamente em prol dos povos indígenas no Brasil.

Na CPI da Funai/Incra, mais de uma centena de representantes destes segmentos sociais foram vítimas de indiciamento, oito deles membros do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em relatório oficial destas CPIs aprovado pelos ruralistas e encaminhado para a Política Federal em estados como o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Bahia.

Incitação ao ódio

A incitação ao ódio, à violência e ao preconceito contra os povos indígenas tem sido uma constante em discursos e ações coordenadas por membros da bancada ruralista. A audiência pública organizada pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados e realizada em novembro de 2013, no município de Vicente Dutra, no interior do estado do Rio Grande do Sul [6] e o “Leilão da Resistência” realizado em Campo Grande, no estado do Mato Grosso do Sul, em dezembro de 2013, com o objetivo de arrecadar recursos para financiar milícias privadas 8][7] contra os povos indígenas são dois casos, dentre outros,  extremamente graves neste sentido. O leilão somente não se estendeu para outros estados em função de decisão judicial que bloqueou a utilização dos valores arrecadados para as finalidades almejadas pelos ruralistas [8].

Leilão da Resistência

Em dezembro de 2013, fazendeiros do MS organizaram o “Leilão da Resistência”, evento com finalidade de arrecadar recursos para ações de combate às ocupações de terras por indígenas no estado. O evento arrecadou R$ 640,5 mil com o arremate dos lotes de animais e cereais [10][9]. O leilão teve a presença e discursos de senadores da República, deputados federais e estaduais. Parlamentares ruralistas cogitaram a realização de leilões semelhantes em outros estados.

À época, os organizadores do “Leilão” declararam que os fundos arrecadados seriam para a contratação de segurança privada às propriedades localizadas em terras indígenas, além de compra de armamentos e “formação de milícia”. Fazendeiros e ruralistas falavam abertamente em se armar ‘oficialmente’ contra indígenas. No submundo, porém, contratam empresas de segurança para serviços de pistolagem, caso do assassinato do cacique Nísio Gomes Guarani Kaiowá [10].

Na ocasião, em nota pública, o Cimi pontuou a omissão dos poderes públicos, inclusive do governo federal, que permitiram um evento “pudessem livremente angariar e utilizar dinheiro deste leilão para “segurança privada ou milícias” – o que resultaria na intensificação das ameaças, dos ataques e, consequentemente, dos assassinatos de indígenas em Mato Grosso do Sul”.

“Ao silenciar, o governo compactua com as ofensivas dos ruralistas contra a vida dos povos indígenas, estes que historicamente são discriminados, perseguidos, ameaçados, vitimados por doenças e têm suas lideranças assassinadas em emboscadas, tocaias e em ações de setores que tomam nas mãos o que consideram ser a “justiça””, se posicionou o Cimi em documento, na época [11].

Disputa Político-Eleitoral

Neste contexto adverso, a disputa político-eleitoral ganha importância estratégica. O agronegócio investe pesadamente para ampliar sua representatividade nas mais diversas instâncias de poder, especialmente junto ao Congresso Nacional, onde os mesmos já possuem hegemonia [12]. Desavergonhados, em período eleitoral, buscam, inclusive, assediar e ludibriar lideranças, comunidades e povos indígenas.

Os povos, por sua vez, demonstram preocupação também com este campo de disputa e se organizam para ocupar espaços nestas instâncias institucionais. A demanda destes por informações fidedignas acerca do viés e espectro ideológico de cada Partido político e dos interesses realmente defendidos pelos candidatos que se apresentam nas disputas eleitorais é uma constante. Responder a essa demanda é uma necessidade premente que deve ser atendida por meio de diferentes mecanismos e instrumentos, a fim de que os povos não sejam levados a reforçar as fileiras de Partidos anti-indígenas e ou a votar e, com isso, ampliar as forças de seus inimigos. Mais do que isso: é urgente que se criem instrumentos adequados para que os povos construam suas próprias e comprometidas bancadas nos próximos pleitos.

Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Não restam dúvidas de que o agronegócio e os ruralistas constituem-se numa força política muito expressiva e com atuação sistemática nos diferentes poderes do Estado brasileiro contra os povos, seus direitos e seus aliados. Além disso, na tentativa de viabilizar politicamente suas propostas anti-indígenas, têm promovido e incitado a violência contra os povos por todo o país.

A exemplo, pontua-se a realidade do Rio Grande do Sul, onde deputados que se elegeram, repassaram cargos a filhos sob campanhas racistas e discriminatórias. Alimentar o preconceito e o ódio de parcela da sociedade gaúcha contra povos indígenas e seus aliados e, concomitantemente, se beneficiar político-eleitoralmente dos mesmos faz parte da ‘tradição’ de oportunistas e aproveitadores da boa-fé alheia.

Os povos indígenas, por sua vez, demonstram perspicácia, ciência dos fatos e disposição para continuarem travando a luta em defesa de seus direitos e projetos de futuro, inclusive no campo das disputas institucionais. Como aliado dos povos, o Cimi se alegra em disponibilizar esta publicação como mais um instrumento para contribuir nesta emblemática e complexa caminhada.

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