Ancião Guarani Kaiowá segue detido após ação truculenta da polícia em Caarapó
Além da detenção, há feridos por balas de borracha e atropelamentos. Helicóptero foi usado no ataque. MPF abriu inquérito para investigar ação da polícia
Ambrósio Alcebíades Guarani Kaiowá, 70 anos, segue detido após o ataque de forças policiais, no último domingo (26) a indígenas do tekoha – lugar onde se é – Guapo’y, em Caarapó, Mato Grosso do Sul, ao lado da reserva indígena Tey’i kue, onde vivem mais de cinco mil indígenas. Revoltada com a situação do ancião, que está sem tomar os remédios para tratar da hipertensão e apresenta distúrbios mentais, de acordo com os advogados do indígena, a comunidade decidiu esperar três dias pela soltura de Ambrósio; do contrário, ações de protesto serão organizadas. O tekoha Guapo’y fica dentro da Terra Indígena Dourados-Amambaipegua I – já identificada pelo Estado brasileiro.
Além da prisão, aos menos seis indígenas foram alvejados, entre eles o próprio Ambrósio, por tiros de bala de borracha e outros três, conforme denúncias dos Guarani e Kaiowá, foram atropelados por veículos da Polícia Militar. Uma indígena precisou ser encaminhada ao socorro médico, de acordo com informação obtida e confirmada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Não há indígenas sob risco de morte ou gravemente feridos.
Os Guarani e Kaiowá negam a versão veiculada pela imprensa, a partir de fontes policiais, de que tenham iniciado uma ‘invasão’ à sede da Fazenda Santa Maria, feito reféns e roubado pertences alheios. “Existe uma decisão da presidente do STF [Supremo Tribunal Federal], ministra Carmen Lúcia, de suspensão de segurança da reintegração de posse da área que retomamos, em 2016. Não tem sentido invadirmos algo que está dentro do tekoha retomado”, explica Kunumi Guarani Kaiowá.
“Não prendemos nenhum fazendeiro ou caseiro. Também não roubamos nada. Polícia não questionou essa acusação dos fazendeiros. Como se fossem seguranças privados, apenas cumpriram ordens”
Conforme o relato dos Guarani e Kaiowá, o conflito foi iniciado por não indígenas na manhã de domingo, quando estes estouraram um rojão sobre uma indígena que colhia mandioca. A Secretaria de Segurança Pública do Estado, apenas a partir da versão dos fazendeiros, autorizou a intervenção policial e deflagrou sobre as famílias Guarani Kaiowá uma operação de guerra, que contou com helicóptero, pelotões do Batalhão de Choque, Força Tática e do Departamento de Operações de Fronteira (DOF).
“A menina, filha da dona Maria, foi arrancar mandioca ao lado da casa da tia, que fica perto da sede da fazenda. Os homens soltaram foguete nela. Caiu no chão e depois correu de volta (pro tekoha). Todo mundo se revoltou. Fomos lá (na sede da fazenda) saber porque fizeram aquilo e nos xingaram. Depois soltaram foguete na gente. Teve princípio de confusão, mas ficamos de longe e sem ir embora”, conta Ñapotyryby Guarani Kaiowá.
Pouco antes da hora do almoço, de acordo com a indígena, um dos homens disse ao grupo Guarani Kaiowá: “Fica com a terra, é terra de vocês”. Então carregaram caminhonetes com móveis, objetos da casa e animais. Partiram deixando para trás a sede vazia. Os Guarani Kaiowá permaneceram no local. “Pegaram tudo, não ficou nada. Ninguém ficou lá, nada. Não houve reféns, nada. Não queríamos retomar, não era a ideia”, explica Ñapotyryby.
Por conta da saída por livre e espontânea vontade dos não indígenas, causou espanto e surpresa o ataque da polícia, sem negociação prévia. “Não prendemos nenhum fazendeiro ou caseiro. Todo mundo foi embora sem a gente mandar. Também não roubamos nada. Polícia não questionou essa acusação dos fazendeiros. Como se fossem seguranças privados, apenas cumpriram ordens. Quem começou tudo isso foram eles, é uma covardia”, diz a Guarani Kaiowá.
Policiais atiravam nos indígenas a partir do helicóptero, em um ataque aéreo com voos rasantes sobre as cabeças da comunidade em pânico (ver o vídeo acima). Pelo chão, tropas do Choque, da Força Tática e do DOF cercavam os indígenas com veículos, tiros de balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e agressões físicas. Quatro indígenas foram atingidos por um carro, uma caminhonete e um “carretão que levava os soldados”.
“Me desviei por muito pouco, mas o carro ainda me acertou. Cai no chão com tudo e machuquei o pescoço. Uma mulher chamada Zilda ficou mais machucada. Atacaram a gente de todos os lados, de todas as formas. Não deu tempo de nada, foi correria mesmo. Nem tinha como se defender”, lembra Kunumi Guarani Kaiowá. Os indígenas voltaram à retomada em que estavam e ainda se encontram, distante menos de 1 km da sede da fazenda – palco de todo o desencadear dos fatos.
Sem conseguir correr junto com os demais, Ambrósio Alcebíades Guarani Kaiowá ficou parado e acabou preso. “O Ambrósio tá com mais de 70 anos. Ninguém sabe a idade dele certa. O que todo mundo sabe é que ele tem uns problemas na cabeça. Como podem prender um ancião que você vê que entende tudo diferente? Qualquer um percebe. Tão acusando ele de um monte de crime. São covardes”, se revolta Ñapotyryby.
Busca e apreensão
Na manhã desta segunda-feira (27), por volta das oito horas, a equipe da Funai chegou ao tekoha Guapo’y para prestar assistência às 24 famílias atacadas no dia anterior. Com uma população composta por cerca de 40 crianças e adolescentes, a comunidade está na área retomada em 2016, após o assassinato do agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu Guarani Kaiowá. Esta retomada está localizada em uma das várias matrículas que compõem a Fazenda Santa Maria.
“Pouco depois da nossa chegada, a polícia fez uma nova incidência. Desta vez na área retomada há dois anos atrás, localizada a cerca de 300 metros da sede da fazenda. Estavam com uma ordem de busca e apreensão porque houve uma denúncia de que os Guarani Kaiowá tinham roubado móveis, porcos e alimentos”, explica a indigenista Ellen Cristina de Almeida, servidora federal da Funai. A indigenista tentou contato com o comandante da ação, mas foi impedida pelo chefe da operação.
Diante da negativa em negociar a suspensão da operação, Ellen pediu um tempo para avisar aos Guarani e Kaiowá o que estava prestes a acontecer e assim evitar conflitos. “Conseguimos inicialmente que eles ficassem onde estavam, mas o chefe da operação ressaltou que tínhamos apenas dois minutos. Os indígenas estavam muito nervosos, tensos. Pedi a eles calma”, lembra Ellen. A servidora ainda ouviu de um policial que se tratava de uma iniciativa para “acobertar os bandidos”.
Os policiais entraram de casa em casa. Permitiram a entrada dos agentes da Funai apenas na primeira residência. Numa das moradias, disseram ter encontrado um porco na geladeira, que os indígenas dizem ser, na verdade, um javali caçado dias antes. “Reviraram tudo. Como vão encontrar móveis e animais no meio de roupas?”, questiona Ñapotyryby. A servidora da Funai diz que os policiais só levaram utensílios de roça (que não estavam na lista de supostos roubos). “Não levaram o que acharam ser um porco e tampouco os itens alimentícios, que os indígenas provaram fazer parte das cestas básicas que recebem. Houve busca, mas não apreensão de objetos roubados”, informa a indigenista da Funai.
A ação de revista da polícia levou mais ou menos 15 minutos. Mesmo assim, os servidores da Funai ouviram o disparo de um tiro. “Não sabemos se foi do helicóptero ou dos batalhões que estavam divididos em dois flancos”, diz Ellen. O petardo, aparentemente uma bala de borracha, atingiu o ombro de um Guarani Kaiowá.
Além dos fatos ocorridos na segunda-feira, analisa a servidora da Funai, no domingo houve duas ações da polícia: “uma no começo da tarde, para um suposto resgate de reféns, e este foi o momento que eles nos ligaram para informar a situação e solicitar mediação, mas os indígenas afirmaram que nunca detiveram ninguém, e outra no final da tarde quando eles tiraram os Guarani Kaiowá da sede da fazenda na ação que todos vimos o resultado”. Na ocasião, a polícia informou à Funai que os indígenas faziam duas pessoas de reféns.
A Funai confirma ainda a versão dos indígenas de que não havia intenção prévia de retomar a sede da fazenda. “Todos os relatos dos indígenas dão conta de que eles não iam pegar a sede da fazenda e isso só ocorreu porque uma Guarani Kaiowá foi catar mandioca e sofreu um ataque com fogos de artifício. Ela correu e avisou os demais. Um grupo foi até o local. Gerou um desentendimento e os indígenas decidiram ficar na sede da fazenda quando os ocupantes saíram com pertences”, diz Ellen.
“Não há nenhuma decisão em vigor que ordene a retirada da comunidade. E, mesmo que houvesse, o comando teria que ser da polícia federal. Foi totalmente irregular o que aconteceu lá”
MPF investigará ação policial
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito civil público para investigar a ação da Polícia Militar durante o conflito. Segundo informações da imprensa local, o MPF avalia que a PM fez uma “reintegração de posse sem qualquer ordem judicial”.
Em abril deste ano, uma decisão da presidente do STF, Carmen Lúcia, suspendeu uma liminar de reintegração de posse contra a comunidade de Guapo’y, em favor dos proprietários da fazenda Santa Maria. A decisão da ministra suspendeu o despejo no último instante, num momento em que a tensão tomava conta da comunidade e policiais cercavam a área, e mencionou o risco de acirramento do conflito e “agravamento do quadro de violência na região”.
A presidente da Corte também levou em consideração o fato de que a área adjacente à reserva está em processo de demarcação, pois é reivindicada pelos indígenas como parte de seu território tradicional – o que foi reconhecido pelo Estado em 2016, quando a Funai publicou o relatório que identifica e delimita a Terra Indígena Dourados-Amabaipegua I.
“A polícia não poderia ter feito o que fez”, avalia Anderson de Souza Santos, assessor jurídico do Cimi Mato Grosso do Sul. “Não há nenhuma decisão em vigor que ordene a retirada da comunidade. E mesmo que houvesse, o comando teria que ser da polícia federal, porque a questão indígena é de competência federal. Então, foi totalmente irregular o que aconteceu lá”.
Uma operação de busca e apreensão – conforme o MPF, sem mandado – e a negociação pela liberação de funcionários que teriam sido feitos de reféns foi utilizada como justificativa pela polícia para avançar sobre a retomada já estabelecida.
A ação policial foi acompanhada, de helicóptero, pelo comandante-geral da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, Waldir Ribeiro Acosta, e pelo secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Antonio Carlos Videira. Ainda segundo a imprensa local, um contingente da Força Nacional no Mato Grosso do Sul está sendo deslocada para a região.
Empresa privada
Desde a tarde de segunda (27), uma empresa privada de segurança está vigiando a sede da fazenda Santa Maria. Funcionários da empresa Safety Assessoria, Planejamento e Execução em Segurança foram identificados por indígenas.
“A presença de empresas privadas de segurança em área de conflito com indígenas gera tensão entre os indígenas e receio, pois há um histórico na região de atuação de empresas de segurança como milícias privadas, que atuam de forma violenta contra os indígenas”, avalia Matias Benno, do Cimi.
Em um caso de grande repercussão, a Justiça Federal determinou a dissolução da empresa Gaspem Segurança Ltda, além do cancelamento do seu registro na Polícia Federal e de uma multa de R$ 240 mil por danos morais. A empresa foi denunciada pelo MPF por constituição de “força paramilitar ou milícia privada” e pelo seu envolvimento no assassinato de duas lideranças Guarani Kaiowá e várias outras ações violentas contra essas comunidades.
Matéria atualizada quarta-feira, 29, às 10h17.