13/04/2018

“A decisão do juiz faz nossa existência parecer um estelionato identitário”, diz Gamella

O juiz da 5ª Vara da Justiça Federal do Maranhão afirma que os Akroá-Gamella estão proibidos de impedir a passagem pelo território de Linha de Transmissão. Motivo: os Gamella não são reconhecidos pelo Estado

Foto: Andressa Zumpano

Juventude Akroá-Gamella marca presença em ocupação à sede da Funai, em São Luís (MA). Foto: Andressa Zumpano

Por Renato Santana, da Ascom/Cimi

Uma decisão da Justiça Federal, de junho de 2017, chegou ao conhecimento do povo Akroá-Gamella nestes últimos dias. Não por via oficial, porque até o momento os indígenas não foram notificados. O assunto da sentença e o tempo em que ela levou para não chegar à organização social Akroá-Gamella, no entanto, podem explicar de maneira eficaz o contexto de racismo institucional e violação de direitos associado à questão. “A decisão do juiz faz a nossa existência parecer um estelionato identitário”, afirma Kum’tum Akroá-Gamella.

Diz o juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara da Justiça Federal, em sua decisão liminar, que os Akroá-Gamella e a Fundação Nacional do Índio (Funai) estão proibidos de impedir, “direta ou indiretamente”, a passagem  pelo território tradicional da Linha de Transmissão Miranda do Norte – Três Marias. A liminar concede uma Tutela de Urgência (quando se antecipa os efeitos de uma decisão final) à Companhia Energética do Maranhão (Cemar) para seguir adiante com o empreendimento.      

A justificativa do togado é que “não se mostra razoável a criação de entraves por comunidades indígenas para impedir a passagem dos equipamentos necessários para a realização desses serviços, máxime – e este é um fato notório – quando a comunidade indígena ainda não teve seu reconhecimento formal pela Funai e nem seu território demarcado”. Na sentença, elogia a privatizada Cemar e aponta que impedir a obra compromete os serviços de energia.

Em agosto de 2017, a Funai ingressou com um agravo de instrumento – quando a decisão da Justiça pode causar danos de difícil reparação. Na peça jurídica, o órgão indigenista alega que nunca afirmou que os Akroá-Gamella não sejam uma etnia. Conforme a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), vale o direito da autodeclaração – seja do povo ou indivíduo (que precisa ter a identidade validade pelo coletivo a qual diz pertencer).

A assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Viviane Vazzi Pedro confirma que não há conhecimento de nenhum documento referente ao licenciamento ambiental da obra ou consulta prévia ao povo Akroá-Gamella. Na interposição da Funai, todavia, não há nenhuma menção ao direito de consulta aos povos, preconizado pela Convenção 169, quando grandes empreendimentos impactam seus territórios e modos de vida.

“Além disso, o juiz não sabe quais são os impactos socioambientais porque não houve licenciamento e consulta prévia. É como assinar um cheque em branco a ser pago pelos Akroá-Gamella”

“Fizemos um pedido de reconsideração, porque a decisão é muito grave. A justificativa na verdade é o mais grave. A interpretação do juiz não existe mais no que tange identidade indígena porque vai de encontro com a Convenção 169 e a Constituição Federal. Além disso, o juiz não sabe quais são os impactos socioambientais porque não houve licenciamento e consulta prévia. É como assinar um cheque em branco a ser pago pelos Akroá-Gamella”, pondera a assessora jurídica. Ela afirma ainda que a Fundação Palmares também não foi notificada: o linhão impacta quilombos sobrepostos pelo traçado da obra.

O procurador da República Alexandre Moreira Tavares afirmou à  assessoria jurídica do Cimi que irá tomar medidas judiciais, após analisar os autos, para resguardar o direito do povo Akroá-Gamella à consulta e observar aos envolvidos na obra da necessidade do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima), bem como o licenciamento.

R$ 21 mil de compensação  

A Cemar sabe há pelo menos quatro anos da existência dos Akroá-Gamella na região em que pretende passar a Linha de Transmissão, entre os municípios de Penalva, Matinha e Viana, na Baixada Maranhense. Por conta dos embates iniciados em campo, quando os Akroá-Gamella não permitiram ações de trabalhadores no território indígena, em 18 de setembro de 2015 uma denúncia foi encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF).

“Recentemente iniciaram a implantação de uma terceira linha de alta tensão por dentro do nosso território, porém a comunidade não foi consultada e nem foram apresentados os documentos de licenciamento ambiental e relatórios sobre os impactos que podem ser ocasionados por essa nova rede de transmissão. Nós indígenas não aceitaremos mais uma linha de transmissão passando por nosso território sem que sejam apresentados tais relatórios e discutidos com a comunidade (SIC)”, conforme trecho do documento.

Kum’tum Akroá-Gamella lembra que representantes do Ministério de Minas e Energia os procuraram para aceitar a proposta da Cemar – nunca sequer perguntaram se eram a favor da obra. “Quando pedimos para os trabalhadores se retirarem do território, nos ofereceram R$ 21 mil para deixar passar o linhão. Disseram que os proprietários de terras sobrepostas às nossas tinham aceitado. Firmamos opinião, não aceitamos o dinheiro e pedimos o EIA-Rima da obra, os licenciamentos e nos consultassem conforme a Convenção 169”, aponta o indígena.

“Nós indígenas não aceitaremos mais uma linha de transmissão passando por nosso território sem que sejam apresentados tais relatórios e discutidos com a comunidade”

Na ocasião conseguiram uma audiência com mediação do MPF. A Cemar enviou advogados, que reafirmaram a ausência de EIA-Rima, licenciamentos e consulta prévia. Os procuradores da República foram taxativos: sem tais estudos e ausculta, o projeto seria embargado. Depois de tais fatos, os Akroá-Gamella não tiveram mais notícias da Cemar, que seguiu negando que se tratava de um povo indígena com terras tradicionais impactadas. O silêncio foi quebrado em 2016: os indígenas mais uma vez tiveram que enfrentar as máquinas da Cemar. O empreendimento estava sendo posto adiante à revelia das leis que protegem os direitos dos Akroá-Gamella.

“Quando chegamos no campo, os funcionários estavam desmatando moitas de arariba. Se trata de uma planta aquática com função similar ao do manguezal: protege a reprodução dos peixes e mantém o ecossistema em equilíbrio. Derrubaram várias e jogaram para dentro de um rio, que passa no fundo do rio Piraí. A intenção era aterrar parte deste rio. Tivemos de impedir”, relata Kum’tum Akroá-Gamella.

Para o povo, é um direito saber qual o impacto do linhão sobre o território. Em assembleia, decidiram recusar qualquer pagamento “alheio às regras de mitigação”. Kum’tum frisa que o dinheiro não resolverá “o problema das nossas vidas”. No entanto, a depredação do território “a gente sabe que causará impactos de longo prazo, trazendo problemas futuros”. A reivindicação Akroá-Gamella é simples: “Queremos saber o impacto, o que seria a compensação e a mitigação, as quais nós temos direito. Do interesse público ninguém nunca negou, nós somos usuários de energia. O que sempre defendemos foi essa legalidade para proteger os direitos constituídos. Além disso, se abandonamos esses direitos aqui, pode ser ruim para vários povos em situação semelhante pelo Brasil”.

Ninguém sabe ao certo o que será este linhão; a extensão, quantas torres serão instaladas no território indígena, os riscos para quem precisa morar nas proximidades, o tamanho do desmatamento ou como funcionaria a manutenção. Estas são apenas algumas questões levantadas pelos Akroá-Gamella. “Não sabemos de nada, não nos foi passado nada. Então existe o interesse público, mas parece que nós indígenas, quilombolas, pescadores e Quebradeiras de Coco Babaçu não fazemos parte do interesse público. É racismo institucional o nome disso”, critica Kum’tum Akroá-Gamella.

Povo Akroá-Gamella em área retomada pelo povo dias após o ataque sofrido em 30 de abril de 2017. Foto: Ana Mendes/Cimi

Racismo institucional      

Em suma, a decisão do juiz Federal conclui: os Akroá-Gamella não são reconhecidos pelo Estado, logo não possuem terras e, portanto, devem parar de usar uma pseudo-identidade indígena para impedir a abertura da Linha de Transmissão da Cemar, empresa privada entre as dez mais eficientes do país no setor, conforme a sentença, que visa garantir o interesse público dos cidadãos maranhenses à energia de qualidade e ininterrupta.

“Sofremos isso todos os dias: para existir, o indígena tem que ter o reconhecimento formal da Funai. Não sabemos como ele (juiz) chegou a esta exigência. Parece que nunca leu a Convenção 169 da OIT, nos pareceu muito estranho ele desconhecer a Constituição Federal em seus artigos 231 e 232. Apesar de tudo o que estamos passando, inclusive com repercussão internacional, e uma qualificação de demanda territorial já existente à época da sentença, a decisão do juiz faz a existência do povo parecer um estelionato identitário”, aponta Kum’tum Akroá-Gamella

Três fatos – um anterior e dois posteriores à sentença do juiz – desqualificam, na opinião dos Gamella, a controversa decisão a favor da Cemar.

Em 30 de abril de 2017, um massacre deixou 22 Akroá-Gamella feridos, sendo cinco baleados e dois deles com as mãos decepadas a golpes de facão. A violência contra os indígenas, ocorrida numa área retomada, partiu da “Manifestação pela Paz”, o evento para a “gente ordeira […] e que nunca tinha visto um índio ali”, conforme discurso do deputado federal maranhense Aluísio Mendes (PTN, atual Podemos). O parlamentar ressaltou, diante da entrada da aldeia Centro do Antero, um movimentado entroncamento com comércio e escola chamado Santero, no Povoado Baías, em Viana, que “ninguém tem sangue de barata, ninguém vai aceitar mais essa provocação”.

Meses depois, em setembro, os Akroá-Gamella conquistaram uma importante vitória: o direito de identificação civil e de registrar crianças com o sobrenome do povo. “A Juíza Titular da 1ª Vara da Comarca de Viana, Odete Maria Pessoa Mota Trovão, determinou que o oficial do Cartório proceda à lavratura do registro de nascimento das crianças recém-nascidas indígenas autorreconhecidas como da etnia Gamella que ainda estão sem registro de nascimento, devendo constar no assento o sobrenome “GAMELLA”, a declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia, sem a necessidade de apresentação do RANI, até julgamento final da presente ação”, anunciou em artigo a assessoria jurídica do Cimi, Viviane Vazzi Pedro.

O terceiro fato, por fim, desatualiza por completo a sentença da 5ª Vara da Justiça Federal. No dia 16 de novembro de 2017, a Funai publicou no Diário Oficial da União a Portaria de Criação do Grupo de Trabalho (GT) para Identificação e Delimitação da Terra Indígena do povo Akroá-Gamella. O ato administrativo tão aguardado só ocorreu depois de iniciada uma ocupação à sede da Funai na capital São Luís. O problema é que o prazo estipulado pela portaria para o início dos trabalhos do GT está estourado, motivo de preocupação para os Akroá-Gamella que aguardam para ainda este semestre o início dos estudos de campo da Funai; e o órgão, no Maranhão, infelizmente é alvo de críticas dos indígenas como também fonte de racismo institucional contra o povo.

Ritual durante a ocupação à sede da Funai que resultou, em 16 de novembro de 2017, na publicação da Portaria de Criação do GT de Identificação. Foto: Renato Santana/Cimi

Funai se nega a fornecer declaração    

“A própria funai, por sua chefe da coordenação regional, Eliane Araújo, tem assumido uma posição no sentido de que apesar da Portaria que criou o GT, ela se mostra contrária a nós. Não tem emitido Declaração do Trabalhador e Trabalhadora Rural exigida pelo INSS. Temos indígenas que precisam de auxílio doença, aposentadoria. O INSS exige a declaração de atividade rural e a Funai não concede porque investe nesse racismo institucional que outros poderes da República apresentam”, enfatiza Kum’tum Akroá-Gamella.

Caw Akroá-Gamella reflete na perspectiva de uma articulação que se alimenta em decisões e posturas, levando a sociedade a ter uma ideia deturpada dos povos indígenas; uma sentença embasa um posicionamento da Funai, que, por sua vez, é citada por um parlamentar para a população até chegar a fatos como o de 30 de abril de 2017. “Uma postura racista, um racismo institucional: no caso da própria coordenação da Funai, é grave. O Poder Judiciário deveria corrigir posturas equivocadas assim, mas nesta decisão reforça a injustiça”, aponta o indígena.

Todo o caminho percorrido pelos Akroá-Gamella contra o racismo institucional, em defesa da identidade e de direitos básicos levam à ocupação do território tradicional e a libertação destas terras das cercas que impedem o usufruto exclusivo. “Quanto mais tempo arrastar o início do trabalho do GT, cujo prazo está estourado, e sua conclusão, mais ficamos vulneráveis a estas posturas racistas das instituições, como este que questiona nossa identidade, e da consequente violência”, analisa Kum’tum Akroá-Gamella.

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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