Paralisado há mais de um ano, indígenas reivindicam convocação do CNPI pelo governo
“A atitude do governo em não chamar as reuniões quebra o contrato social com os povos. Estamos falando de uma instância de governo, com indígenas que representam todos os povos do país”, afirma Douglas Kaingang
Dilma Rousseff cumpria os 180 dias de afastamento da Presidência da República, com a abertura do processo de impeachment pelo Senado Federal, quando ocorreu a última reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), sem interrupções. Depois que Michel Temer apoderou-se da faixa presidencial, em 31 de agosto de 2016, o governo federal convocou apenas mais um encontro do Conselho, que nunca terminou.
Leia mais: CNPI: Uma alternativa ao indigenismo colonialista?
Era uma sexta-feira, dia 25 de novembro de 2016, quando a 3ª Reunião Ordinária, que acontecia no Salão Negro do Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios (DF), foi suspensa pelas bancadas indígena e indigenista em protesto contra as propostas do governo para alterar o processo de demarcação de terras indígenas, vazado dias depois pela imprensa, e a reestruturação da Fundação Nacional do Índio (Funai) – que incluía transferir o Departamento de Proteção Territorial (demarcações) para a Casa Civil.
De lá para cá, o governo decidiu manter na geladeira o CNPI e tocar o que as lideranças indígenas têm chamado de desestruturação da política indigenista. Na última terça-feira, 20, representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) estiveram em encontro com o presidente da Funai, Franklimberg Ribeiro de Freitas, para solicitar que o Conselho volte a ser convocado pelo Ministério da Justiça. Participaram da conversa indígenas Guajajara, Krenak, Terena e Guarani.
A coordenadora executiva da APIB e vice-presidente do CNPI, Sônia Guajajara, afirmou ao presidente da Funai que inclusive a Secretaria Executiva do Conselho, então sob o comando do Ministério da Justiça, foi desativada culminando na demissão da servidora responsável; demonstração do abandono institucional completo da participação indígena na formulação de políticas públicas.
Com a paralisação, propostas como as câmaras técnicas, aprovadas a partir da 1ª Reunião Ordinária do CNPI, entre 28 e 29 de abril de 2016, poderiam estar em plena execução e enfrentando questões como territorialidade, gestão e proteção territorial, autodeterminação, saúde e educação diferenciadas. Temáticas com desafios recorrentes e violações em curso.
Neste primeiro encontro do CNPI, três outros pontos foram atentados ao âmbito institucional: revogação da Portaria 303/12 pela Advocacia-Geral da União (AGU), medida que restringe os direitos indígenas; o respeito à Convenção 169 e ao procedimento de consulta prévia, além do cumprimento das demarcações estrito à Constituição Federal.
O CNPI foi uma inovação na governança da política indigenista, analisa Douglas Kaingang. “A atitude do governo em não chamar as reuniões quebra o protocolo e o contrato social com os povos. Estamos falando de um Conselho, uma instância de governo, com indígenas que representam todos os povos do país. A interrupção da agenda é um desrespeito”, diz.
“Mas os representantes indígenas e indigenistas não pararam. Estamos acompanhando e dando suporte nas regiões”
Douglas Kaingang lembra que tão logo Temer assumiu a presidência, o CNPI já não cumpriu mais com suas datas previamente definidas. “Mas os representantes indígenas e indigenistas não pararam. Estamos acompanhando e dando suporte nas regiões. Estou agora lidando com um caso de tortura praticada por policiais militares contra indígenas Kaingang, em uma retomada“, afirma.
Pilares nunca erguidos
“Com o governo provisório se estabelecendo como permanente, será necessário o urgente estabelecimento de uma agenda positiva para a política indigenista do Estado brasileiro”, disse o conselheiro Weibe Tapeba na 2ª Reunião Ordinária do CNPI, realizada entre os dias 2 e 4 de agosto de 2016, já sob o governo provisório e com o ministro da Justiça Alexandre Moraes presente na sessão.
Morais, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que caso o Senado confirmasse o impeachment de Dilma Rousseff, novas relações seriam estabelecidas pelo então governo provisório com os povos indígenas. Morais citou dois pilares fundamentais para o momento que se avizinhava: “Respeito às comunidades indígenas e preservação dos seus direitos”.
Os tais pilares nunca foram erguidos. A bancada ruralista tomou de assalto a Funai, indicando o presidente, Antônio Costa. Exonerado meses depois, ao contrariar as expectativas ruralistas, Costa denunciou as inverdades ditas por Moraes no CNPI: o loteamento de cargos e a ingerência política de parlamentares . Os gastos da Funai foram congelados por 20 anos, bem como todo o orçamento social do país.
Outro ponto tratado envolveu a ofensiva que estava em curso de projetos e proposições legislativas contra o direito dos povos indígenas. Paulino Montejo, assessor político da Apib, ressaltou que seria um “suporte à bancada indígena para que se posicione sobre essas questões, como foi feito com o Estatuto dos Povos Indígenas”. Como uma instância governamental iria seguir denunciando malfeitos de quem havia tomado o poder?
Paralisado, o CNPI não mais pressionaria o Ministério da Saúde diante do abandono do Subsistema de Saúde Indígena. Motivo que levou representantes do Ministério Público Federal (MPF) a alertarem os conselheiros do Estado quanto ao descumprimento da Constituição em curso pelo governo federal.
“A Sesai se nega a atender em áreas retomadas e os indígenas urbanos. Isso é muito sério”, disse Capitão Potiguara.
O acompanhamento da execução das resoluções da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista também segue parado: as câmaras temáticas ficaram encarregadas da tarefa, mas nunca saíram do papel mesmo com os conselheiros nomeados a cada uma delas. “Esta foi a primeira conferência, um marco. Nessa troca de governo, nesse golpe, tudo ficou comprometido. Com o CNPI ativo, poderíamos ter seguido fazendo o controle social das políticas públicas, nos negaram essa possibilidade”, diz Marcos Xukuru.
A lista empoeirada de resoluções segue: revogação da Portaria 303 da AGU, pronunciamento do governo contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, da Câmara Federal, marco temporal e acesso à Justiça foram abordados em encaminhamentos que nunca saíram da gaveta. “A portaria (303) está suspensa até que estudos sejam concluídos, então é algo sobre o qual não há resposta oficial”, disse representante da AGU durante a reunião de agosto de 2016.
Marco Temporal
Ao contrário, a AGU editou foi além e emitiu o Parecer 001 aprovado por Michel Temer em julho do ano passado. Nele se estabelece que a administração federal siga, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388) e o marco temporal.
A tese, considerada inconstitucional pelo MPF, segundo a qual só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, já era motivo de rechaço na 2ª Reunião Ordinária do CNPI. De tal forma se posicionou o CNPI em resolução:
“Considerando decisões tomadas no âmbito da 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que anularam atos administrativos de demarcação SOLICITA dessa Suprema Corte e de todas as instâncias judiciárias a defesa dos direitos originários dos povos indígenas às suas terras tradicionais, com a refutação da tese do Marco Temporal e da prova do renitente esbulho, que nega o direito dos povos indígenas expulsos de suas terras antes de 1988.”
Para o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e integrante do CNPI, Cleber Buzatto, “a suspensão das atividades e a edição do Parecer 001/17 são parte do mesmo processo de submissão absoluta do governo Temer aos interesses do Capital ligado ao agronegócio e às suas organizações políticas, especialmente a bancada ruralista do Congresso Nacional”.