MPF considera parecer da AGU sobre demarcação de terras inconstitucional e pede sua anulação
Para MPF, parecer da AGU paralisa demarcações e viola direitos dos povos indígenas, podendo acarretar em responsabilização internacional do Estado brasileiro
O Ministério Público Federal (MPF), por meio de nota técnica emitida nesta semana, pediu a anulação do parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), chamado por indígenas e indigenistas de “parecer antidemarcação”. A nota foi entregue à advogada-geral da União, Grace Mendonça, pelo vice-procurador-geral da República e coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR/MPF), Luciano Mariz Maia, durante uma audiência ocorrida na última quarta (21).
O parecer, aprovado por Michel Temer em julho do ano passado, estabelece que a administração federal siga, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388) e o marco temporal – tese segundo a qual só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Apesar de editado com o argumento de dar cumprimento à jurisprudência do STF sobre demarcações de terras indígenas, o MPF aponta que o parecer da AGU está em desacordo com decisões da corte e é inconstitucional.
O parecer da AGU expressa, para o MPF, “uma ação deliberada de negativa de direitos consagrados na Constituição da República, no Direito Internacional dos Direitos Humanos e a legislação infraconstitucional”
“O Supremo Tribunal Federal já decidiu, por reiteradas vezes, no sentido de que as condicionantes do Caso Raposa Serra do Sol não se aplicam a outras demarcações”, afirma a nota técnica do MPF, “de modo que é incabível a tentativa de atribuir eficácia vinculante a fragmentos do acórdão da Pet. 3.388”.
O órgão ainda afirma que a aplicação das condicionantes da Raposa Serra do Sol “de modo acrítico” implica “paralisia das demarcações de terras indígenas, gera riscos e insegurança jurídica de revogações de atos já constituídos, além de potencializar conflitos entre índios e não-índios”.
Em sua manifestação, o MPF aponta que o parecer da AGU é “inválido e inaplicável”, na medida em que viola a Constituição, tratados internacionais e entendimentos do próprio STF e ultrapassa os “limites meramente interpretativos de um parecer”.
“Apesar de se escudar em uma suposta jurisprudência do STF, que se comprovou não existir, o Governo brasileiro se utiliza de artifícios para sonegar os direitos dos índios aos seus territórios, estratégia que também foi utilizada para suspender as titulações de territórios quilombolas”
Os procuradores citam os recentes julgamentos das Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362 e 366, de agosto de 2017, em que os ministros tiveram posições unânime em favor dos indígenas, para demonstrar jurisprudências em que o Parecer da AGU conflita com entendimentos da Suprema Corte.
“Apesar de se escudar em uma suposta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que se comprovou não existir, o Governo brasileiro se utiliza de artifícios para sonegar os direitos dos índios aos seus territórios, estratégia que também foi utilizada para suspender as titulações de territórios quilombolas, colocando em risco inúmeros povos que dependem de seus territórios para manutenção de sua vida e sua reprodução física e cultural”, afirma o MPF.
Arbitrariedades do parecer
A nota técnica do MPF aponta ainda que o parecer da AGU viola os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, ao impedir ou restringir “a utilização de argumentos, recursos jurídicos e outros instrumentos processuais com aptidão para resguardar os direitos e interesses legítimos da União, da Fundação Nacional do Índio e dos próprios indígenas”.
“A tentativa de impor restrições ao direito ao território indígena viola o Direito Internacional dos Direitos humanos, acarretando risco de responsabilidade internacional do Estado brasileiro”
Como a demarcação das terras indígenas trata do reconhecimento de um direito originário e tem caráter apenas declaratório, argumentam os procuradores, sua metodologia é antropológica. Não haveria espaço, portanto, para a “discricionariedade do administrador”, ou seja, para orientações arbitrárias que contrariem ou limitem este procedimento técnico, como faz o parecer da AGU.
A ausência de Consulta Prévia, Livre e Informada aos povos indígenas também é apontada pelo MPF como uma violação do parecer, que desrespeita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Por fim, o caráter originário dos direitos dos povos indígenas também é ressaltado pelo MPF, afirmando que estes não podem ser restritos por um marco temporal.
“A tentativa de impor restrições ao direito ao território indígena viola o Direito Internacional dos Direitos humanos, acarretando risco de responsabilidade internacional do Estado brasileiro”, afirma a nota.
Para o MPF, atos que violem os direitos dos povos indígenas ao seguir as orientações do parecer da AGU também devem ser considerados inválidos. Confira aqui a íntegra do documento.
Luta contra o parecer antidemarcação
Nos últimos meses, os povos indígenas têm se manifestado contra o Parecer 001 e protocolado documentos junto à AGU, exigindo a revogação da medida que viola seu direito à terra. Marchas e manifestações contra o parecer já foram realizadas em Brasília, e a presença indígena na AGU tem sido constante.
Na última semana, um dia depois da audiência do MPF com a advogada-geral da União, uma delegação de indígenas Terena e Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, realizou um ritual na AGU, enquanto protocolou um mais um documento pedindo a revogação da medida.
Além de reunir argumentos jurídicos contrários ao que foi estabelecido pelo parecer, o documento anexou também a recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Xukuru, em que o Brasil foi condenado a indenizar o povo indígena por violação do direito à proteção judicial e à propriedade coletiva, em função da demora na demarcação de sua terra.
Avanço ruralista
Há quase um ano, os povos indígenas e organizações de apoio vêm denunciando o parecer como uma manobra de um governo dominado por ruralistas.
A publicação do parecer, em julho de 2017, havia sido antecipada – e comemorada – pelo ruralista Luiz Carlos Heinze (PP-RS) em suas redes sociais. Ela ocorreu no momento em que Temer buscava reunir votos na Câmara dos Deputados para impedir que a denúncia de corrupção feita pela Procuradoria-Geral da República contra ele fosse aceita e a investigação fosse encaminhada ao STF. Os votos ruralistas foram decisivos para afastar o prosseguimento da denúncia.
“Temer está de mãos dadas com o ruralismo e usa as estruturas do Estado brasileiro para manter e ampliar os seculares privilégios à elite rural de nosso país, inclusive com o referido Parecer”, avalia o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto.