Um marco temporal inconstitucional: nenhum direito a menos
Por Adelar Cupsinski, Alessandra Farias Pereira, Íris Pereira Guedes, Rafael Modesto dos Santos, Roberto Antônio Liebgott*
Artigo publicado no Relatório de Violência Contra Povos Indígenas – Dados 2016
Introdução
O que parte do Poder Judiciário vem chamando de “marco temporal”, nada mais é, pois, que uma interpretação que tende a restringir o alcance do direito à demarcação das terras indígenas, já que vincula este direito à presença física, e não tradicional, das comunidades nos seus territórios ao período de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da nossa atual Constituição Federal.
Especialistas do Direito e da Antropologia, assim como as próprias comunidades indígenas alertam para o perigo de retrocesso desses direitos. A aplicação do marco temporal como condicionante para a demarcação das terras, esbarraria na previsão dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, assim como conflita com Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos e sobre povos indígenas e tribais.
Ressalte-se, ainda, que embora o Supremo Tribunal Federal – STF não tenha esgotado o debate sobre a matéria, setores mais conservadores ligados ao ruralismo, aquém de uma intepretação constitucional, tentam impedir a consecução dos procedimentos de demarcação com base na limitada teoria do marco temporal.
O que se pretende demonstrar, é que não há no ordenamento jurídico elementos que sustente essa incoerência e, muito menos, a jurisprudência da Suprema Corte dá margem para o reducionismo da previsão do Capítulo dos Índios da Carta Política de 1988.
a) A tradicionalidade da terra e a nulidade dos títulos sobre áreas indígenas não admitem a teoria do marco temporal
Certo de que a Constituição Federal de 1988 garantiu aos povos indígenas uma estrutura política e jurídica próprias e a manutenção de uma organização social calcada na tradicionalidade, nas diferenças e no pluralismo étnico. Deu condições, com isso, de poderem falar na sua língua materna e de manterem laços culturais, usos e costumes originários. Garantiu também o direito às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las num prazo de cinco anos, contados da promulgação em 05 de outubro de 1988.
Segundo o acórdão do caso Raposa Serra do Sol (Petição n. 3.388/RR) , terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são aquelas:
[…] demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade.
A interpretação acima transcrita, cunhada no caso Raposa Serra do Sol, expurga a tese do marco temporal. Essa previsão definida pelo art. 231, §2º, da CF/88, reconhece aos índios a tradicionalidade da terra, calcada no espaço funcionário de habitação permanente e de atividades produtivas, ou seja, lugares de moradia e aqueles usados para pesca, caça, coleta, roçados, etc; de par com as terras imprescindíveis à preservação dos recursos naturais e ambientais, como são as reservas e matas, garantia do bem estar indígena; e, ainda, as que se revelarem necessárias à reprodução física e cultural, como acidentes geográficos sagrados, cemitérios, canchas de cultos, de festas e as demais oriundas da cultura de cada povo.
Essas áreas, de acordo com a Carta Magna, são tradicionais. A forma de ocupação não é civil, mas sim constitucional. A tradicionalidade da ocupação se dá pela via da religiosidade, da mitologia, dos usos e costumes e das tradições indígenas, já que necessárias à reprodução física e cultural dos povos. Por isso não há falar em marco temporal, sabendo que a posse é totêmica, permanente, constante, no imaginário indígena e não necessariamente cotidiana e física (art. 231, §2º da CF/88).
Neste sentido, não só devem ser consideradas como terras tradicionalmente ocupadas aquelas onde residem os indígenas, como também aquelas necessárias à sua reprodução física e cultural . José Afonso da Silva explica que a Constituição Federal define que sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, incidem os direitos de propriedade e os direitos originários . O Jurista argumenta que esses direitos são ”direitos fundamentais dos índios”, que podem ser classificados na categoria dos ”direitos fundamentais de solidariedade”, tal como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado .
Significa dizer que terra indígena e posse nativa são conceitos mais amplos que permanência física, mas sim posse anímica, psíquica e tradicional em certo espaço territorial. Na perspectiva de terra tradicionalmente ocupada por esse ou aquele povo indígena, vale dizer, prevalece toda a área necessária à reprodução física e cultural do povo.
A tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.
Ainda, segundo José Afonso da Silva, não há previsão constitucional para tal orientação do marco temporal, pois ele não se consubstancia com a forma de ocupação tradicional prevista na Carta Magna:
Onde está isso [marco temporal] na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal – STF assevera o seguinte sobre o marco temporal:
É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.
Veja-se, então, que o marco temporal encontra resistência na própria tradicionalidade inerente aos povos indígenas ou na própria inerência do conceito de terra tradicional prevista no art. 231, §2º da CF/88. Ainda, caso fosse constitucional o marco temporal, teria que respeitar a intenção do STF no julgamento dos Embargos de Declaração na Pet. 3388/RR ao determinar que aquele entendimento não se estende automaticamente a casos similares.
Caso existisse a previsão de um marco temporal na Constituição de 1988, certo que antes de aplica-lo ao caso concreto, ter-se-ia que, consubstanciado, ainda, no direito de consulta, perguntar aos povos indígenas se possuem animus, interesse, vontade de ter de volta o território, que, em segundo lugar, esbulhado em algum tempo por não-índios. O esbulho seria, portanto, mais uma exceção que deveria ser analisada em cada caso concreto, caso fosse entendido pelo Supremo como constitucional o marco temporal.
O que se tem então de palpável, é a inconstitucionalidade dessa teoria jurídica, já que não encontra razão de existir frente ao arcabouço do art. 231 da CF/88. Além do caput do art. 231, da previsão do seu §2º, bem já mencionados, o §6º também não permite sequer a hipótese de aplicação do marco temporal. Isso se justifica pelo fato do constituinte originário ter proibido a ocupação em 1988, por não-índios, em terras tradicionais ou, se houvessem ocupações tituladas, seriam todas nulas. Seria um marco temporal inverso, em favor do direito dos povos indígenas.
Veja-se que a Constituição Federal prevê a nulidade e extinção dos títulos cedidos sobre território indígena. Isso significa dizer que a previsão alcança a invalidação dos títulos de terras onde os indígenas não estavam em 05 de outubro de 1988, por força da titulação feita ilegalmente pelo Estado e a consequente expulsão dos índios – a tese do marco temporal, invariavelmente, também é com base na não-presença indígena na data da promulgação da CF/88. Desta forma, no acórdão do caso Raposa Serra do Sol existem, isso sim, posições completamente dissonantes – se a terra tradicional foi titulada em algum tempo no passado, nos conceitos limitadores da posse civil , impossível, então, a presença indígena no território naquela data. Se, por outro lado, o título é nulo, não há que se falar em marco temporal.
Então, o §6º do art. 231 reconhece que em 1988 já haviam terras invadidas ou cedidas oficialmente a particulares e nelas os índios estavam impossibilitados de permanecer. Essas terras, portanto, estariam em posse de não-índios, mas, doutra banda, os títulos são invalidados por força do instituto da “extinção” e “nulidade”, insculpidos no mencionado §6º e, por esse motivo, deveriam ser devolvidas para os povos indígenas.
Destarte, não caberia, então, a tese do marco temporal diante do §6º do art. 231 da CF/88, seja pela falta de lógica de intepretação, seja pelo conflito aparente da norma constitucional. Do contrário, essa hermenêutica, sem dizer o direito avocado, derrogaria o art. 231, na parte do §6º, o que é juridicamente impossível.
A tese do marco temporal é, portanto, uma ficção, uma exegese sem sustentação, é inconstitucional e conflita com a previsão dos parágrafos 2º e 6º e com o caput do art. 231 da Constituição Federal.
A conclusão é que o marco temporal, como criação ilógica ou uma interpretação política desarrazoada e a nulidade dos títulos como realidade constitucional, prevista no §6º do art. 231 da CF/88, não coexistem. Esta expurga aquela. Isso porque se haviam áreas tituladas no período da constituinte, não havia ocupação indígena à data da promulgação da Constituição por força do esbulho e, por outro lado, são nulos esses títulos e as terras, por isso mesmo, são tradicionais.
b) O marco temporal e as decisões do Pleno com predominância hierárquica sobre decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal
Sabido, ademais, que a teoria do marco temporal foi inaugurado com o julgamento do caso Raposa Serra do Sol em 2009. Depois, no ano de 2012, foi julgada a Ação Cível Originária nº 312, referente à Terra Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Ambas decisões sobre demarcação de terras indígenas tiveram posições conflitantes, mesmo que resultaram na devolução das terras aos povos indígenas. Na ACO 312 foi usada a tese do indigenato, que contrapõe a tese do marco temporal e se aparelha à complexa previsão dos artigos 231 e 232 da Carta Política de 1988 e da Convenção 169 da Organização internacional do Trabalho – OIT, internalizada no ano de 2004 e considerada pelo ordenamento pátrio como norma supralegal.
Se a intepretação do marco temporal é retirada do tempo verbal da palavra ‘ocupam’ contida no art. 231, caput, a intepretação do indigenato abrange todo o arcabouço jurídico constitucional indígena. Inclusive, remonta os primeiros institutos jurídicos sobre direitos territoriais indígenas e alcança o respeito às instituições políticas e jurídicas do universo multicultural e pluriétnico dos povos tradicionais.
Diante desses dois casos emblemáticos, a Suprema Corte, por meio da Segunda Turma, vem aplicando, em alguns casos e de forma contraditória, o reducionismo da teoria do marco temporal em detrimento do indigenato ou da previsão constitucional do direito indígena . Por outro lado, o Pleno não permitiu a extensão do marco temporal a casos similares ao da Raposa Serra do Sol , mantendo posição dissonante e hierárquica em relação às decisões da segunda Turma.
Isso significa dizer que está havendo uma inversão de princípios e até mesmo de hierarquia jurídica no STF, onde as decisões da Segunda Turma suprimem a posição do Pleno.
Ademais, o marco temporal não tem respaldo na jurisprudência, na Constituição Federal e muito menos no colegiado do Pleno do STF. Por outra banda, o indigenato, direito anterior à constituição do Estado brasileiro, e as garantias étnicas, especialmente o direito à terra e a demarcação, são normas cogentes e já sedimentadas pela Suprema Corte como dever do Estado e prioridade constitucional.
c) Conclusão
Nos tempos atuais, a construção da nação brasileira baseada na democracia, igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, plural e sem preconceitos está em conflito. No caso dos povos indígenas, a teoria do marco temporal tenta forçar a desconstrução de direitos arduamente conquistados e construídos no decorrer dos últimos cinco séculos.
Neste aspecto, a existência dos índios já seria suficiente para afastar a teoria do marco temporal, pois a permanência e o futuro de um povo indígena está condicionada a um espaço fundiário. Caso contrário, o direito perde sua eficácia, sua finalidade e proeminência e a morte dos povos indígenas é a morte do próprio direito.
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Artigo de
Adelar Cupsinski
Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Alessandra Farias Pereira
Bacharel em Direito e assessora do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Íris Pereira Guedes
Pesquisadora nas áreas de Direitos Humanos, Direito Internacional Público, Direitos Indigenistas, Estado, Democracia e Administração Pública e Social. Bolsista CAPES/CNPQ no Mestrado em Direito – UNIRITTER
Rafael Modesto dos Santos
Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Roberto Antônio Liebgott
Bacharel em Direito, formado no Curso de Filosofia e missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI)