Aldeia pode voltar a ser uma pedreira ainda nesta semana, mas os Pitaguary não querem deixar
Por Renato Santana, da Ascom/Cimi
Quando o alarme da Pedreira Brita-Boa soava, Ana Clécia Pitaguary era segura pelo braço e arrastada das brincadeiras no terreiro. Junto com as demais crianças, em meio à correria para se refugiar do iminente ataque aéreo, era levada para a outra margem da CE-60. As explosões eram assustadoras não apenas para os pequenos. Parecendo uma chuva de meteoritos, pedras caíam rasgando a nuvem de poeira. Cerca de meia hora depois, um novo aviso histriônico do alarme soava como um uivo; podiam voltar para as casas bombardeadas: janelas quebradas, telhados com buracos, paredes rachadas. Ana Clécia lembra que certa vez uma anciã, ainda viva para confirmar a história, não conseguiu correr e teve o calcanhar esfacelado por um petardo.
Há seis anos os indígenas retomaram uma área da pedreira localizada no território tradicional Pitaguary e contígua à demarcação – uma parte da pedreira está sobreposta à terra indígena situada no município de Pacatuba, distante 25 km da capital Fortaleza (CE). A Pedreira Brita-Boa, que encerrou suas atividades há 30 anos, foi rebatizada como Canaã, com nova licença de mineração, e desde 2012 tenta na Justiça retirar à força o povo Pitaguary do local. Entre idas e vindas judiciais, a reintegração de posse por agravo de instrumento foi decidida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). Uma equipe da Justiça Federal realizou uma inspeção, em 14 de novembro, e avisou: dia 30, a próxima quinta-feira, o que é hoje é uma aldeia vibrante poderá voltar a ser uma pedreira acinzentada e poeirenta. Amanhã, terça-feira, dia 28, um ato público contra o despejo e em defesa da terra indígena ocorrerá na área de retomada.
“A pedreira está distante 20 metros do limite da área demarcada, com paiol (lugar para armazenar explosivos) e tudo. Há uma aldeia ali. Tem uma parte da pedreira, inclusive, que está na nossa terra demarcada”, diz Ana Clécia Pitaguary, de 47 anos. A decisão pela retomada é o resultado de um problema que o próprio Estado empurrou para a frente quando o Grupo de Trabalho fez o Relatório de Identificação e Delimitação. “Na ocasião a equipe convenceu os mais velhos a abrirem mão de áreas importantes para nosso povo, essa pedreira e outras duas são exemplos”, explica Ana Clécia. A terra indígena acabou demarcada com 1.735 hectares para uma população estimada em mais de 4 mil indígenas (IBGE, 2010) – os Pitaguary falam em 5 mil, posto que muitas famílias saíram da terra por falta de espaço.
Acontece que 70% da terra indígena é espraiada por uma Área de Proteção Ambiental (APA), a Serra da Aratanha (ou Pacatuba), e outros 635 hectares estão ocupados por posseiros. O confinamento deste povo tem gerado preocupações em organizações como a Defensoria Pública da União (DPU) e Ministério Público Federal (MPF), que lutam na Justiça para reverter a decisão em tempo de evitar a reintegração. Conforme o antropólogo MPF Sérgio Brissac, os Pitaguary estão numa área de três hectares, alvo da reintegração, “desde novembro de 2011, há 6 anos. Na área habitam 28 indígenas. Existe no local o Museu Indígena Pitaguary, uma experiência de museologia comunitária indígena; uma área de plantio coletivo de banana, milho e feijão; são criadas cabras e ovelhas e, sobretudo, esse espaço tem uma importância simbólica e ritual Pitaguary, sendo um dos principais locais sagrados do povo”.
“Temos várias famílias fora das aldeias, que vivem às margens da rodovia e da linha férrea, empreendimentos estatais que rasgam nosso território. Isso é ruim por vários fatores, mas viola sobretudo o nosso direito de viver em nossas próprias terras com nossa cultura, nossa religião”, destaca Ana Clécia Pitaguary. A liderança indígena destaca que a aldeia a ser transformada em pedreira está exatamente no local em que a mineração ocorre. “Nossa preocupação, inclusive de outras comunidades não-indígenas, é que uma escola estadual profissionalizante fica a 200 metros da pedreira, além do posto de saúde indígena, uma escola indígena, uma escola municipal, uma quadra poliesportiva e um posto de saúde não-indígena”, acrescenta a Pitaguary.
Ana Clécia é Agente Indígena de Saúde (AIS). Aprendeu a conviver com as graves doenças pulmonares e respiratórias provocadas pela poeira tóxica das pedreiras – as explosões geram uma massa esfumaçada de resíduos minúsculos de pedras desintegradas pelas explosões. O pó é respirado involuntariamente, mesmo quando ele não se encontra visivelmente concentrado. “Tive de lidar com óbito que os pulmões do indígena estavam acabados por conta do pó de pedra”, lembra. As famílias próximas às pedreiras possuem diversificados problemas de saúde. No estiagem o pó se movimenta feito uma duna; no inverno chove e essa poeira provoca o assoreamento de açudes. Além disso, água leva graxa, combustível, óleos de máquinas e caminhões. A poluição afeta a vida de forma integral. Os ruídos e barulhos dessas máquinas consomem o juízo diuturnamente. Se incomoda os indígenas, afugenta os animais das redondezas – acabando com a caça e desequilibrando o ecossistema. Pedras se desprendem dos morros e rolam esmagando o que estiver na frente.
Uma das principais reclamações dos Pitaguary envolve a falta de informações do andamento do processo. Em dezembro do ano passado, alertados por integrante do MPF, os indígenas souberam que estava caminhando a ação de despejo. “Provocamos a Funai (Fundação Nacional do Índio) a nos dar uma resposta. Nada. “Em outubro fomos surpreendidos com a informação de que ocorreu em Recife uma audiência que só estiveram presentes os advogados da pedreira Canaã”, diz Ana Clécia. Na semana passada, a Funai esteve na retomada com uma comissão de integrantes da Justiça Federal para saber qual a situação da aldeia em vista da decisão pelo despejo. “Ocorreu dessa forma, sem a gente se defender pros desembargadores ou pros juízes. Querem tirar nossa aldeia e botar uma pedreira sem ao menos ouvir o que temos a dizer. A Justiça infelizmente parece feita para os poderosos”, desabafa a Pitaguary.
Em nota pública, organizações indigenistas e ambientais denunciam: “O Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (PRAD) – que deveria ter sido implementado pela empresa anterior ao encerrar a exploração mineral – se foi solicitado/exigido pelos órgãos ambientais como parte integrante do processo de licenciamento de atividades degradadoras ou modificadoras do meio ambiente, não foi cumprido, como já foi constatado em pesquisas acadêmicas e pelos depoimentos de pessoas da comunidade. O PRAD refere-se ao “conjunto de medidas que propiciarão à área degradada condições de estabelecer um novo equilíbrio dinâmico, com solo apto para uso futuro e paisagem esteticamente harmoniosa”, porém as medidas não chegaram a ser executadas, como mencionado acima (SIC)”.
Não bastasse uma, são três pedreiras
Três pedreiras operam no território Pitaguary impactando diretamente a vida das aldeias. Duas estão na ativa. Uma delas é a Britacet, que comprou a terceira. Seu proprietário, Abdias Veras Neto, é presidente do Sindicato das Indústrias de Extração e Beneficiamento de Rochas para Britagem do Estado do Ceará (Sindbrita). Os Pitaguary movimentaram contra a Britacet ao menos três processos judiciais; em um deles o Ibama obrigou a Britacet a fornecer caminhões pipas para amainar a poeira, entre outras medidas para evitar a dissipação aérea da fumaça de resíduos, e a criação de uma estufa para a plantação periódica de árvores nativas. Os indígenas consideram uma vitória parcial.
Em resposta, a Britacet ergueu o que os Pitaguary chamam de “Muro de Berlim” (em referência ao muro que separava a Alemanha Oriental da Ocidental, sendo derrubado em 1989): são quilômetros de muros que isolam a comunidade do Munguba. “Acontece que o ir e vir para entre as aldeias está interrompido. Então decidimos abrir uma passagem nesse muro e o proprietário da Britacet nos processou. Duas lideranças foram condenadas”, afirma Ana Clécia Pitaguary. A Britacet alega nos autos processuais que possui todas as licenças e atende a todos os quesitos legais. O que os indígenas alegam é que os impactos ambientais, porém, não são levados em conta. “Menos ainda o aspecto das vidas que estão no local. Eu cresci nessas serras. Minha avó morreu com 104 anos me levando para caminhar e conhecer esse território que é sagrado. Essas pedreiras estão acabando com tudo. As serras estão todas devoradas”, conta a Pitaguary.
A indígena lembra que “antigamente existiam muitos animais; vinham no terreiro da minha casa. Tinha água que vinha da serra encanada nos bambus. Com as explosões estremece tudo. Sobre a serra, trepida. Animais já não existem mais, se afugentam com o barulho das máquinas que trabalham 24 horas. A outra pedreira, que a Britacet comprou, fica a 1 km e o impacto também é acentuado. “Nossa terra foi demarcada de forma contínua, sem muitos espaços tradicionais, que ficaram de fora, e hoje vivemos em ilhas, entre pedreiras e posseiros; impedido de caminhar no território por um muro, sofrendo com poluição e depredação da Natureza Sagrada, morada de nossos encantados”.
Entrevista: Sérgio Brissac, antropólogo do MPF
“A situação dos Pitaguary é preocupante”
Cimi – A Terra Indígena Pitaguary está em qual fase no procedimento de regularização fundiária? Há entraves para a finalização do procedimento?
Sérgio Brissac – A T.I. Pitaguary já teve Portaria Declaratória publicada em 2006, assinada pelo Ministro da Justiça, a qual é a principal fase de um procedimento de demarcação de uma Terra Indígena. É a fase se estabiliza o procedimento administrativo, já que as contestações apresentadas pelos não-indígenas já foram analisadas e, no caso, julgadas improcedentes. Em 1993, os Pitaguary foram a Brasília reivindicar a demarcação de seu território e em 1997 foi constituído o Grupo Técnico para Identificação e Delimitação. Os próximos passos são o pagamento das indenizações das benfeitorias erigidas de boa-fé pelos não-indígenas, emissão do Decreto Presidencial de homologação da T.I. e subsequente desintrusão dos não-indígenas. Não há entraves judiciais para a finalização do procedimento.
Cimi – Há quanto tempo a pedreira se mobiliza judicialmente para o despejo dos indígenas?
Sérgio Brissac – Desde 2012 a Pedreira Brita-Boa (atualmente denominada Pedreira Canaã) ingressou com ação de reintegração de posse de uma área parcialmente incidente na T.I. Pitaguary. A decisão de reintegração de posse em favor da pedreira, de uma área contígua à Terra Indígena e ocupada pelos Pitaguary desde 2011, foi proferida em agravo de instrumento decidido pelo TRF da 5a. Região (Recife, PE).
Cimi – Como o MPF tem visto a situação vivida pelos Pitaguary num contexto que ainda conta com mais duas pedreiras e posseiros não-indígenas?
Sérgio Brissac – A situação dos Pitaguary é preocupante. O seu território, de 1.735 hectares, é exíguo para a população atual de 4 mil indígenas. Além do mais, há diversos ocupantes não-indígenas e está em funcionamento uma pedreira, situada a 1 km da T.I., a respeito da qual já houve um procedimento no MPF acerca de seus impactos socioambientais.
Cimi – O MPF atesta quais impactos na vida socioambiental dos Pitaguary com a operação dessas pedreiras?
Sérgio Brissac – Já tramitou no MPF inquérito civil acerca de impactos da atividade de extração mineral de granito nas proximidades da T.I. Pitaguary, no qual os indígenas denunciaram uma incidência significativa de problemas respiratórios, sobretudo na população infantil do entorno, assim como rachaduras nas habitações, secamento de nascentes, desaparecimento de espécies animais e vegetais na área impactada. Há sim sobreposição parcial da Terra Indígena Pitaguary e a APA da Serra da Aratanha, sendo que os indígenas integram o comitê gestor da APA.
Cimi – Qual a situação geral das terras indígenas no Ceará?
Sérgio Brissac – A maior parte das Terras Indígenas do Ceará ainda tem a sua demarcação pendente. Só há uma terra indígena plenamente regularizada (a T.I. Tremembé do Córrego João Pereira). Há 14 etnias indígenas no Ceará, presentes em 19 municípios. E há somente 5 terras que já tiveram sua Portaria Declaratória publicada: Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Tremembé de Queimadas, Tremembé da Barra do Mundaú e Tapeba. Na fase anterior, com estudos de identificação e delimitação publicados no Diário Oficial, está a T.I. Tremembé de Almofala. Por outro lado, já foram adquiridos os imóveis para a constituição da Reserva Indígena Taba dos Anacé.