Condenado por discriminação, jornal de Chapecó (SC) deverá pagar cursos e ceder espaço de publicação para indígenas por cinco anos
Jornal O Diário do Iguaçu foi condenado por danos morais coletivos contra a comunidade Kaingang da Terra Indígena Toldo Chimbangue, pela veiculação de materiais racistas e de incitação ao crime
Após ser condenado por danos morais coletivos contra a comunidade Kaingang da Terra Indígena (TI) Toldo Chimbangue, em Chapecó (SC), pela veiculação de materiais racistas e de incitação ao crime, o jornal O Diário do Iguaçu deverá pagar cursos de graduação e pós-graduação aos indígenas e deverá ceder, pelo período de cinco anos, espaço quinzenal para a comunidade indígena na publicação.
A importante e incomum decisão é, na verdade, fruto de um acordo firmado entre o jornal e os Kaingang, com o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF), após a condenação do veículo de imprensa, de um chargista e de um vereador pela Justiça Federal. O processo teve origem numa ação civil pública ingressada pelo MPF em 2002, em função de uma reportagem e de uma charge discriminatórias publicadas pelo diário contra os indígenas.
Julgado improcedente na primeira instância, o processo teve a decisão reformada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que condenou os réus ao pagamento de R$ 100 mil para a comunidade indígena como compensação pelos danos morais. Transcorridos doze anos desde a sentença, nenhum dos recursos interpostos pelos réus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao longo deste período foi admitido e o caso transitou em julgado.
Em abril de 2016, com a condenação definitiva, o MPF ajuizou uma ação para que os condenados pagassem a indenização – que, em valores atualizados, incluindo juros, honorários e multas legais, chegou a mais de R$ 850 mil.
Como o jornal alegou falta de recursos financeiros para o pagamento do total da dívida, os indígenas fizeram uma proposta alternativa para quitar a obrigação, que acabou sendo aceita pela empresa.
“Eles disseram que se fossem pagar em dinheiro, teriam que fechar o jornal. Eu disse que nós não queremos dinheiro. ‘Queremos que vocês contribuam com a comunidade, quero informar as pessoas para que elas saibam os absurdos que vocês falaram’. Também precisamos de pessoas formadas em áreas como Direito e de formação melhor para nossos professores. Isso é mais importante que dinheiro”, relatou o cacique da TI Toldo Chimbangue, Idalino Fernandes.
Pelo acordo firmado, o jornal irá custear vagas para estudantes indígenas nos cursos de Agronomia, Direito, e Enfermagem da UnoChapecó, além de um curso de pós-graduação – uma especialização lato sensu em Educação Intercultural: Metodologias de Ensino na Educação Básica – para uma turma de 20 a 30 professores indígenas na mesma instituição de ensino.
O pagamento do jornal à UnoChapecó será realizado por meio de permuta, com a cessão de espaço no diário para as veiculações da universidade. Em todas as vagas, a preferência é para os Kaingang de Toldo Chimbangue.
Os cerca de R$ 390 mil restantes da dívida serão pagos por meio da cessão de espaço no jornal, pelo período de cinco anos, para a veiculação de informativos, artigos, notas e quaisquer outras publicações de interesse dos indígenas, conforme a solicitação encaminhada pelo cacique Idalino. O MPF ressalta que não poderão ser veiculadas no jornal publicações que configurem crime ou ofensa a pessoas ou grupos, ou que incitem a prática de violência, de crimes ou de quaisquer outros atos ilícitos – exatamente os pontos pelos quais o jornal foi condenado.
“Sete palmos embaixo da terra”
Além do Diário do Iguaçu, foram réus na ação do MPF o ex-vereador de Chapecó pelo PFL e atual candidato pelo PSB, Amarildo Sperandio de Bairro, e o chargista Alex Carlos Tiburski dos Santos. Com a terra demarcada pela metade em 1985, os Kaingang reivindicavam, à época da publicação do jornal, a demarcação da totalidade de seu território – concluída somente em 2006 – e vivenciavam uma situação conflituosa com os não-indígenas que viviam em propriedades sobrepostas à área.
Em entrevista veiculada em janeiro de 2001 no Diário do Iguaçu, o então vereador Amarildo Sperandio afirmou: “é um absurdo os índios quererem ainda mais terra, se não produzem […] muitos que estão hoje na reserva de Toldo Chimbangue não são indígenas autênticos. Todos nós sabemos disso, quando vemos índios louros, olhos claros”.
A charge de Alex Carlos (ao lado), veiculada na mesma edição, mostrava um homem com um machado, pronto para agredir um indígena e exclamando: “Já que índio quer terra, vô dá sete palmos de terra pro índio”. Em fuga, o indígena retratado deixa cair um celular – elemento que atestaria a “falsa identidade” dos Kaingang da região.
Na avaliação do MPF, a negação da identidade dos indígenas de Toldo Chimbangue servia para, assim, deslegitimar a demanda do povo pela demarcação de suas terras. Além disso, a discriminação e a incitação à prática de homicídio “foram publicadas em jornal de grande circulação no Oeste de Santa Catarina, propalando as matérias tendenciosas a um grande número de leitores, fomentando o repúdio às comunidades indígenas”.
Em sua defesa, o jornal e o chargista alegaram estar exercendo seus direitos à livre expressão, à crítica artística e à liberdade de imprensa, e o vereador ainda invocou sua imunidade parlamentar. Em contrapartida, o MPF afirmou que a liberdade expressão não é um direito absoluto e nem assegura a impunidade da imprensa. “O direito do indivíduo de dizer o que pensa não o exime de ser responsabilizado pelas ofensas irrogadas a outrem de forma desarrazoada”, afirma o MPF na peça que resultou na condenação.
Acordo positivo em um cenário desfavorável
O acordo judicial oferece uma oportunidade de combater o preconceito contra os indígenas na região Sul do Brasil, marcada pela segregação e pelo racismo contra os povos originários, conforme apontou recente relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Segundo o estudo, a imprensa local e os políticos que lucram votos com os conflitos são os principais responsáveis pela disseminação do preconceito contra os indígenas. Uma das motivações para o estudo foi o assassinato de Vitor Pinto, criança Kaingang de apenas dois anos natural da Aldeia Kondá, outra comunidade indígena de Chapecó, morto no colo de sua mãe quando ela vendia artesanato no litoral catarinense.
Para o Procurador da República de Chapecó (SC), Carlos Humberto Prola Júnior, o acordo é importante, especialmente pela autonomia que os indígenas terão na gestão do espaço no jornal. “A empresa não reconhece o equívoco, mas buscou uma forma de cumprir aquela obrigação, que é pesada para uma publicação pequena. Também foi bom para os indígenas, que saem satisfeitos com essa reparação”, afirma Prola.
Na avaliação do Procurador, houve um recrudescimento em relação às demandas dos povos indígenas no Poder Judiciário. “Infelizmente, houve um retrocesso nessa área. O Judiciário está pouco sensível a essa temática, em relação às demarcações e a todas as demandas indígenas. Essa decisão pode trazer isso à tona novamente”, complementa.
Para o cacique Idalino, a decisão e o acordo são importantes para o contexto da região. “Naquela época o preconceito era muito forte, a maioria da população de Chapecó era contra a gente, sem falar nos vereadores, que sempre faziam discursos contrários”, avalia a liderança Kaingang. Segundo ele, depois da decisão do TRF, as manifestações racistas dos vereadores de Chapecó, ao menos publicamente, cessaram.
O cacique Kaingang explica que a comunidade pretende utilizar o espaço no jornal – cedido até 2021 – para furar o bloqueio do racismo e da invisibilidade e para divulgar no oeste de Santa Catarina as reivindicações e a realidade vivenciada pelos indígenas de Toldo Chimbangue e de todo o país.