28/04/2016

Violência institucional: o indígena na exegese dos tribunais

Em pleno século XXI, a cultura da tutela permanece no âmago dos tribunais pátrios, desconsiderando os povos como sujeitos de direito e resultando em violência simbólica e silenciosa

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Por Adelar Cupsinski, Alessandra Faria e Rafael Modesto dos Santos, da Assessoria Jurídica – Cimi

Após intenso embate de forças no contexto da Constituinte em 1987/88, os povos indígenas saíram vitoriosos com a conquista do Capitulo VIII – Dos Índios, contendo os artigos 231 e 232, no que foi chamada de Constituição Cidadã, promulgada em 05 de outubro do ano de 1988 e que respeita todas as expressões culturais existentes no Brasil.

Antes da promulgação da nossa Carta Política Democrática, os povos indígenas eram impetuosamente tutelados pelo Estado brasileiro, através do órgão responsável pela política indigenista. Até o ano de 1967, o Serviço de Proteção ao Índio – SPI era o responsável por essa política, o qual foi investigado através de uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, em decorrência de denúncias contendo graves irregularidades. Comprovadas as irregularidades no SPI, a política indigenista passou por uma reforma, tendo como consequência a criação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que passa então a ser responsável pelos indígenas, dando continuidade ao regime tutelar.

Após os trabalhos da CPI, foi determinada, pelo ministro do Interior Albuquerque Lima, uma ampla investigação sobre a situação dos índios, o que resultou no relatório Figueiredo. A expedição percorreu 16 mil quilômetros e visitou mais de 130 postos indígenas no ano de 1967. Desaparecido por 45 anos e tido como eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, o Relatório foi encontrado no Museu do índio, no Rio de Janeiro.

O texto redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correa, denuncia caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de avião, inoculações de varíolas em povoados isolados, doações de açúcar misturado com veneno, escravidão e dilaceração do patrimônio indígena.

O SPI, segundo o Relatório Figueiredo, foi considerado um antro de corrupção nunca antes existente no Brasil: “não é possível uma exata apuração nem por isso se deixou de averiguar serem tantos e tão horríveis os crimes que o SPI pode ser considerado o maior escândalo administrativo do Brasil”.

O índio razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhes impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade humana. (…) Nêsse regime de baraço e cutelo viveu o SPI muitos anos. A fertilidade de sua cruenta história registra até crucificação, os castigos físicos eram considerados fato natural nos Postos Indígenas (Relatório Figueiredo: pg. 4.912-4913).

O SPI, e depois a FUNAI, era então o responsável pela tutela e ao mesmo tempo era o maior inimigo dos indígenas, impingindo-lhes as mais cruéis penas corporais.

Contudo, o objeto desta análise não são as crueldades físicas perpetradas pelo regime militar e sim as aflições simbólicas e discriminatórias ainda não superadas pelo regime democrático, entre os quais a tutela indígena.

Como já dito, a Constituição Federal de 1988 condicionou aos indígenas igualdade de direitos com os não-índios a partir de uma nova compreensão da sociedade brasileira e de suas especificidades culturais. Por consequente, a tutela indígena, por parte do Estado brasileiro e de suas instituições, acabou por ser superada.

Entretanto, apesar do regime tutelar, discriminatório, ter sido suplantado pela CF/88 textualmente, ao reconhecer as organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas, bem como o ingresso em juízo dos índios e suas comunidades, a cultura da tutela permanece no âmago dos tribunais pátrios, resultando em violência simbólica e silenciosa.

Recentemente foram anulados, pela 2ª Turma do STF, duas portarias declaratórias – do povo indígena Canela Apãnjekra, do Maranhão e do povo Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul –, através da via inadequada do Recurso Ordinário em Mandados de Segurança (RMS nº 29542 e RMS nº 29087), bem como do Decreto Presidencial e registro em cartório da terra indígena Limão Verde, do povo Terena de Mato Grosso do Sul (ARE 803462), área em que os indígenas receberam, através de oficial de justiça, a posse da terra e lá estão constituídos.

O que chama a atenção, nestes casos, é o fato de que as comunidades indígenas não foram citadas pelos autores das ações ou de ofício pelo poder judiciário para compor as lides, e nem consultadas, nos termos da Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, norma internalizada pelo Brasil. Para o judiciário, a FUNAI é quem representa os indígenas em Juízo.

Entretanto, é evidente que a FUNAI não representa os indígenas e ademais, não a substitui. O órgão indigenista, obrigatoriamente, deve ser chamado em Juízo para responder sobre seus atos administrativos no processo demarcatório, atribuição que a lei lhe confere.

Evidente também que as comunidades indígenas tiveram sua esfera jurídica afetada quando o processo demarcatório foi interrompido pelo judiciário, as quais sequer foram intimadas ou chamada nos autos como parte, e, o art. 35 da Lei 6.001/1973, que regula a tutela, é inconstitucional diante do art. 231 e 232 da CF/88.

Neste contexto, a convicção do judiciário está embasada na cultura tutelar indígena, de maneira que essa simbologia silente se torna uma violência institucional, desconsiderando os povos como sujeitos de direito em pleno século XXI.

Dalmo Dallari, sobre as questões indígenas envolvendo a tutela e sua derrocada com a promulgação da Constituição Federal em 1988, considera que:

Até então [1988] essa defesa havia ficado na dependência das iniciativas do órgão federal incumbido do exercício da tutela indígena, a Funai que, além de ter sido escandalosamente omissa, muitas vezes promoveu e apoiou ações públicas e privadas contrárias aos direitos dos índios.

Segundo Rosane Lacerda, a concepção da incapacidade civil indígena, respaldada pelo Código Civil de 1916 e depois no Estatuto do Índio em 1973, “considerou-se como um estereótipo que marcou os povos indígenas em diversos planos de sua vida, e não apenas nos atos da vida civil” já que era vista como culturalmente natural.

Essa visão dos índios como portadores de uma incapacidade natural, levou a que fossem vistos também como naturalmente sem voz e inativos, sempre necessitando serem representados em seus diversos interesses. Levou a ideia de serem totalmente incapazes de sobreviver frente à suposta superioridade do aparelho “civilizador” não-indígena (Lacerda, 2008).

Não bastasse as cruentas violências físicas e psicológicas impostas pelo regime militar, bem como todo o prejuízo econômico e cultural sofrido, na atualidade, os povos indígenas precisam enfrentar a cultura tutelar, herança dos regimes autoritários, impossível de ser sustentada no atual regime democrático.

Por fim, as artimanhas ou enganações utilizadas pelos representantes do Estado brasileiro para espoliar o patrimônio indígena e repassar suas riquezas para os amigos dos regimes anteriores, não devem ser respaldadas pelo poder judiciário democrático, sob a chancela de Justiça.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 803.462, Rel. ministro Teori Zavaski. Julgado em 24 de abril de 2015, publicado em 20 de maio de 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RMS nº 29.087, Relator ministro Gilmar Mendes, Julgado em 20/10/2015.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Reconhecimento e proteção dos direitos dos índios. In: Revista de Informação Legislativa, v. 28, n° III. Brasília: Senado Federal, jul./set. 1991, p. 317.
LACERDA, Rosane. Os Povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988- Rosane Lacerda. – Brasília (DF): Cimi – Conselho Indigenista Missionário, 2008.
RELATÓRIO FIGUEIREDO. 07 mil páginas; 29 tomos originais. Disponível aqui. Acessado em 28/09/2015.

Artigo publicado originalmente no livro “Justiça e Direitos Humanos: Olhares críticos sobre o Judiciário em 2015“, editado pela Articulação Justiça e Direitos Humanos e pela organização Terra de Direitos.

Fonte: Assessoria Jurídica - Cimi
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