Guerrilha, “Tex” e 6 milhões de reais: o depoimento do delegado Alcídio, da Polícia Federal, na CPI do Cimi
O que o personagem dos quadrinhos western chamado Tex, um policial texano herói da colonização do oeste estadunidense, tem a ver com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul que investiga o trabalho do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no estado, a chamada CPI do Cimi?
Aparentemente, nada – mas, conforme o delegado da Polícia Federal Alcídio de Souza Araújo – responsável pela operação que culminou na morte de Oziel Terena, na Terra Indígena Buriti, município de Sidrolândia (MS) – afirmou nesta terça-feira, 27, durante oitiva da CPI, é onde tudo começa. Foram as leituras do gibi Tex que o introduziram à questão indígena – e juntando com o que ele “ouviu dizer” ou “disseram para ele, mas não é possível provar” sobre o Cimi, ele pôde concluir que a organização indigenista financia e incita as retomadas de terras no Mato Grosso do Sul, o que para ele compõe um mosaico de ilegalidades envolvendo técnicas de guerrilha e financiamentos milionários.
Como, de que forma e quais elementos materiais comprovam estes supostos procedimentos de atuação do Cimi junto aos povos indígenas, não houve Tex que ajudasse o delegado a comprovar. Tampouco Jeová, evocado por Alcídio para lançar dúvidas se de fato uma freira do Cimi que atua no Mato Grosso do Sul era religiosa ou farsante, posto que, conforme o delegado afirmou, a freira sequer sabia quem era Jeová.
Nesta quarta-feira, 28, o Cimi divulgou uma nota demonstrando indignação com a declaração do delegado.
Conspiração
Acusações graves de todo tipo, sem provas: treinamentos de táticas de guerrilha, falsidade ideológica de missionários e assessores; milhões de reais despejados pelo Cimi na conta de um indígena anônimo – tudo devidamente enquadrado pelo delegado Alcídio no científico e metodológico “ouvi dizer” e no “me disseram, mas não posso provar”. Aliados a teorias da conspiração – formalmente convocadas na CPI através do depoimento/palestra do sociólogo mexicano Lorenzo Carrasco – de que, para atender a “interesses estrangeiros“, o Cimi trabalha para impedir a “integração” dos indígenas à sociedade branca, as afirmações do delegado tornam-se matéria-prima para os parlamentares ruralistas construírem uma narrativa fantasiosa e subjetiva de criminalização do Cimi, jornalistas e integrantes dos movimentos sociais no estado.
A CPI é conduzida por parlamentares cujas campanhas eleitorais foram financiadas pelo agronegócio e por empresas envolvidas na Operação Lava Jato. A ruralista Mara Caseiro (PTdoB) preside a Comissão, que tem como vice o deputado Marquinhos Trad (PMDB) e como relator o deputado Paulo Corrêa (PR). O triunvirato recebeu, nas eleições de 2014, R$ 2.454.542,06 milhões em doações. Desse total, o relator da ‘CPI do Cimi’ declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o montante de R$ 769.515, 50 – as construtoras UTC, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa financiaram, aproximadamente, 40% da campanha declarada pelo deputado.
Na mesma reunião da Comissão, foi ouvido também o indígena Dionedson Terena, autor do vídeo que registra a apreensão de equipamentos do jornalista Ruy Sposati. Ainda, sob sigilo, foram colhidos depoimentos de indígenas Guarani Kaiowá do município de Coronel Sapucaia, na fronteira com o Paraguai, a 350km do local onde ocorreu a tentativa de reintegração de Buriti, base das acusações da CPI.
A cada sessão, convocam mais e mais depoentes, como o vice-governador de Roraima Paulo César Quartieiro – alegando, sem fatos determinados, que a “tecnologia usada pelo Cimi no estado é a mesma no restante do país”, nas palavras do relator, deputado Paulo Corrêa, e que, portanto, é relevante para o relatório da Comissão. A Comissão tornou-se um muro de lamentações e calúnias contra o Cimi e a demarcação das terras indígenas – mesmo que paralisadas – no Mato Grosso do Sul. Uma espécie de julgamento macartista: o deputado Corrêa chegou a perguntar ao indígena Dionedson Terena o que ele fazia numa assembleia… Terena.
Alcídio: o delegado do “ouvi dizer”
Sem precisar nomes, datas e documentos, o delegado acusou o Cimi de financiar e organizar os indígenas em ocupações de terra, realizando treinamentos “de guerrilha”, além de transferir quantias milionárias sem motivo definido para contas bancárias de indígenas no Mato Grosso do Sul.
“Como chefe da delegacia, não só indígenas como fazendeiro (sic) me traziam essas informações, mas ninguém consegue materializar isso”, contou o delegado, ao ser questionado se ele tem convicção de que o Cimi instiga, incita e financia ocupações de terra no estado.
No dia da apreensão do equipamento, continua o policial, “alguns especialistas até dizem que coloquei minha vida em risco, quando eu saí da coluna de proteção dos policiais e fui até o suposto jornalista, ao componente do Cimi. Porque eu vi ali, como policial a possibilidade de trazer elementos de comprovação (…). Então, me surge a oportunidade, e eu não poderia deixar… E eu posso garantir aos senhores [deputados], quando os senhores pedirem a cópia: o inquérito tá gostoso”.
Questionado pela deputada Mara Caseiro se existiam outros inquéritos a respeito do Cimi na PF, Alcídio desvia, lamentando: “como vivemos num regime democrático de direito, a polícia fica de mãos atadas em alguns momentos”. Comentando o tipo de armamento utilizado pela Polícia Federal – em contraposição a tipos de cápsulas encontradas em ataques contra os indígena -, o delegado informou que “ (…) todo policial, ao sair agora, graças ao nosso bom deus, tem uma glock 9mm”.
A compaixão aos indígenas parece ser outra lição de Tex ao delegado Alcídio. O policial sugeriu que os indígenas se juntassem com fazendeiros para exportar produtos, arrendando as próprias terras. Como toda terra indígena pertence à União, sendo o usufruto exclusivo da comunidade que a ocupa, arrendar é crime federal. Para o delegado, porém, organizações como o Cimi lucram com a miséria dos indígenas, e por isso jamais desejariam vê-los produzindo ao lado de fazendeiros ou arrendando as terras. Questionou, ainda, “por que só tem território indígena onde a terra é rica?”, no lastro do pensamento conspiracionista proposto por Lorenzo Carrasco. Respondeu a si próprio dizendo não concordar com a ideia de que “o branco destrói e o índio não”.
Guerrilha pelo telefone
“Pra se fazer uma ocupação, há uma logística”, explanou Alcídio. “Pra se conseguir essas invasões, precisa-se de dinheiro. Mesmo que a comunidade se organize, há necessidade de dinheiro. Se então, o senhor [deputado Paulo Corrêa] me pergunta [se o Cimi financia as ocupações indígenas], eu diria que sim”.
Relator da CPI, o deputado Paulo Corrêa (PR-MS) comentou o depoimento do delegado: “posso considerar (…) que houveram técnicas de guerrilha: eles [indígenas Terena] foram treinados pra fazer isso, e pelo jeito, pelo que se coloca aqui, é o Cimi. Segundo, teve que ser financiado, tem que ter um dinheiro que veio de algum lugar. E terceiro, é que depois de feito a negociação toda, volta o Cimi e força a barra pra não…”.
Cortando o deputado, Alcídio continuou: “eu me lembro que esse senhor [não precisou quem seria] mencionou o seguinte: ‘enquanto fica a gente negociando’ – e isso eu pude perceber, ele falou, isso ele falou – ‘o Cimi por telefone instigando: não sai, não sai, não sai’. Aí eles, à frente ali da negociação, que que acontece? Um sai, atende o telefonema, retorna… e ficam… usando…”. “Quem lê Tex, pesquisa profundamente”, disse o deputado Paulo Corrêa, elogiando o delegado, e seguiu: “O senhor pesquisou depois sobre o Cimi, tentou entender o que é o Cimi, como ele funciona?”, ao que o delegado respondeu: “eu tentei umas pequenas leituras, compreendi e fiquei satisfeito com o que eu li… Eu não me aprofundei, pra ser sincero”.
6 milhões de reais
O delegado acusou o Cimi de ter pago 6 milhões de reais a um estudante indígena Guarani Kaiowá da região de Dourados, sem precisar os porquês. “Teve um índio (…), quando o [rezador] Nísio Gomes faleceu [assassinado], ele menciona que tem um índio fazendo faculdade em Dourados, que recebia em torno de 6 milhões na conta dele, vindo do Cimi”, depôs sob juramento o policial federal. “Esse índio não quer colocar no papel, porque, o temor…. Aí eu já instigo os senhores [deputados] a verificar a contabilidade do Cimi”.
“Essa acusação é uma loucura completa. É um factoide, uma manobra, porque eles querem abrir as contas do Cimi”, opina o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto. “Nós não temos nada a esconder sobre o nosso trabalho. E, no entanto, eles querem acabar com a gente de qualquer jeito, inclusive trabalhando com ficções, e gastando dinheiro público em uma CPI que trouxe até sociólogo mexicano simplesmente pra afirmar, no fundo, que não se deve demarcar terras indígenas – e mais, que é preciso exterminar aqueles que apoiam estas populações em suas lutas pela terra”.
Na CPI, ao menos três integrantes do Cimi deverão ser ouvidos: o coordenador regional da entidade no Mato Grosso do Sul, Flávio Machado, o secretário nacional, Cleber Buzatto, e o presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi.
“Quem faz ocupação somos nós”, afirma indígena na CPI do Cimi
A CPI ouviu o indígena Dionedson Terena, autor do vídeo que registra o momento exato em que o delegado da Polícia Federal Alcídio de Souza Araújo apreende um laptop e um gravador do jornalista Ruy Sposati, que realizava cobertura da reintegração de posse contra indígenas Terena.
A oitiva iniciou com o deputado Paulo Corrêa exigindo a qualificação do advogado que acompanhava o indígena. Dionedson – cuja primeira língua é o Terena – prestou depoimento em português, e foi o primeiro a falar ‘sob juramento’. O procedimento, até então, não havia sido utilizado para colher os depoimentos do casal de fazendeiros e nem dos teóricos que foram convidados a palestrar-depor nas sessões anteriores.
Dionedson exibiu, na íntegra, o vídeo da apreensão dos equipamentos. O conteúdo registrado pelo Terena e publicado no Youtube em 2012 havia sido parcialmente utilizado em uma reedição audiovisual apresentada pela fazendeira Jucimara Bacha, na reunião anterior da CPI.
“Na semana passada, o vídeo foi utilizado de forma a incitar [provar] a participação do Cimi na retomada. Eu quero contradizer a fala da produtora rural na semana passada e passar o vídeo inteiro hoje”, afirmou o indígena.
Na sessão anterior, após a exibição do vídeo, os deputados afirmaram haver ali provas de que o Cimi estaria “por trás” da “invasão de terras”. Dionedson discorda da interpretação de que aquelas imagens ali comprovariam o envolvimento do Cimi no financiamento e organização das retomadas. Ao contrário, para Dionedson as imagens registradas por ele no vídeo colocam a entidade, outros movimentos sociais e jornalistas na condição de vítimas da ação policial. “Eu quero usar esse vídeo pras pessoas entenderem e compreenderem o contexto em que ele foi filmado, que era a primeira tentativa de reintegração de posse de Buriti”.
A apreensão de equipamentos do jornalista provocou reações entre organizações que defendem o trabalho da imprensa. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Mato Grosso do Sul acompanharam a questão, e mais de cem organizações prestaram solidariedade, acusando a polícia federal de violação de direitos profissionais.
Uma semana depois da apreensão, na segunda tentativa de reintegração de posse, uma violenta ação da Polícia Federal – ocasião em que dezenas de celulares e câmeras também foram apreendidos pelos policiais – culminou na morte do indígena e agente de saúde Oziel Terena.
Dionedson explicou como se organiza politicamente o povo Terena. Segundo ele, os indígenas se organizam “nas assembleias, quando lideranças de todas as aldeias e retomadas se encontram para discutir a situação das terras. Quem convoca as assembleias é o próprio povo terena, é um coletivo. Quem decide nas assembleias é o povo Terena”. Dionedson refutou as acusações dos parlamentares de que movimentos não-indígenas estariam “por trás” das ocupações. “No momento das decisões de ocupação quem decide somos nós, ninguém de fora pode participar. Não é nenhuma organização governamental ou não-governamental que faz isso, é o coletivo Terena”.