Iasi: a missão cumprida de um guerreiro
Amanhece em Belo Horizonte. Para Iasi já não é como os demais. Normalmente, o dia nem dava os ares de sua graça e o incansável guerreiro se punha de pé, fazia sua reza e dava início a mais uma jornada. Agora, acamado, quando comentei sobre seus 94 anos a serem completados no próximo dia 05 de abril, ele brinca: “Se vivo estiver”.
Com a mesma lucidez e perspicácia, sente a vida passar como um filme. “Quando a gente chega com lucidez nessa idade, a vida vai passando na memória da gente como um filme. Me lembro desde os 4 anos”. Brinquei com ele: “Imagina que longa metragem de 90 anos!”. Ele sorri. Começou a falar da família, da revolução na década de trinta, da casa de comércio de seu pai, da falência, em função da crise financeira, e de sua primeira matricula num colégio público em São Paulo, aos sete anos de idade.
Passo mais de hora e meia com o sereno lutador, que mesmo com algumas dores não se furta a puxar do fundo do baú de sua existência, fatos e retratos marcantes de quem enfrentou, com ousadia destemida, os inimigos dos povos indígenas, especialmente durante a ditadura militar. Como primeiro secretário executivo do Cimi, eleito em Assembleia (1975), fez, com Egydio Schwade, uma dupla temida pelos militares e poderosos da ditadura.
Por ocasião dos assassinatos dos missionários do Cimi, Pe. Rodolfo e Simão Bororo (1976), e Pe. João Bosco Burnier (outubro de 1976), ele fez duras críticas aos mandantes de tais crimes, “dando nome aos bois” – senadores, deputados, prefeitos, vereadores e fazendeiros. Inclusive o governador do Mato Grosso, classificando Garcia Neto de “o governador do faroeste brasileiro”. Pe. Antonio Iasi Junior, afirmou que ‘quando um xerife acusa, sem escrúpulo e levianamente o clero, como sendo uma corporação infiltrada de comunistas e subversivos, não é de se estranhar que policiais a seus serviço, matem o comunista e subversivo…” (Folha de S. Paulo, 21/10/1976). Diante desse quadro de insanidade e violência Iasi insiste em atitudes enérgicas e decisivas: “Volto a insistir que somente uma intervenção federal pode resolver o estado de violência no Mato Grosso… Só assim poderemos ver prestando contas à Justiça aqueles que matam, mandam matar e ainda permanecem em liberdade” (FSP 21/10/76).
No final do texto “Y Juca Pirama – o índio aquele que deve morrer”, do qual foi um dos principais redatores, consta: “O missionário jesuíta Antonio Iasi Junior comentava: ‘Os índios estão sempre levando a pior nessa luta em defesa de seus interesses. Chega assumir características de quando em quando de tarefa insuportável. Sinceramente não sei por que existe tanta insensibilidade, tanto egoísmo e tanta podridão entre os que se dizem, em alto e bom som, defensores dos índios” (Voz do Paraná 14/01/1974).
Iasi se deslocou de Norte a Sul do país identificando e denunciando as graves violações dos direitos dos povos indígenas, especialmente na década de 70, “do milagre brasileiro” e genocídio indígena. Seus relatórios são referências importantes e contundentes até hoje.
Despedida e gratidão
“Leve meu abraço de gratidão a todos os companheiros do Cimi e a todos os amigos”, disse-me ele, na despedida. Dito de coração e com serenidade, deixa a gente emocionado e comprometido com o belo gesto.
“Sente dores, vislumbra a morte e com ela brinca. Está sereno. Celebra. Reza. Entrega-se por inteiro nas mãos d’Aquele que foi a razão de seu viver e lutar. Na solidão de um quarto, escondido dos holofotes, vive um dos grandes responsáveis pelo Cimi, pela CPT e pelo sucesso na demarcação de muitas áreas indígenas. As coisas de Deus apreciam o silêncio. Falam por si! Que a paixão do Iasi contribua para a ressurreição dos povos indígenas!” Assim se refere ao Iasi um de seus grandes amigos, Waldemar Bettio, ao compartilhar no meio indigenista, notícias sobre esse baluarte da causa indígena.
Nós, do Cimi, somos muito gratos a esse missionário indigenista, testemunha e batalhador destemido pela vida e direitos dos povos indígenas do Brasil.