21/11/2012

Raízes, aprendizados e rumos pastorais do Cimi

Repensar a missão com fidelidade e audácia (cf. DAp 11)

 

1. Labirintos da missão pré-conciliar

 

Historicamente, a evangelização dos pobres podia ser resumida com a sigla de “conformação sistêmica” e “consolação humana”. Já a evangelização dos outros, dos povos indígenas, por exemplo, trabalhou com os prefixos de “assimilação” e “conversão”. Para os missionários, ambas as bandeiras, a da “conformação consoladora” e da “conversão assimilacionista” abriram caminhos para a salvação das almas e a integração social. A integração social acoplada à salvação das almas era a garantia para conter revoltas e revoluções nos territórios conquistados. A missão produziu submissão e garantiu em alguns momentos de glória um mínimo de direitos humanos nos limites do sistema colonial.

 

50 anos atrás, o Vaticano II produziu 16 documentos que procuravam romper com essa situação e romperam com duas vertentes ideológicas, incompatíveis com o evangelho de Jesus Cristo, romperam com as heranças do Império Romano e do sistema colonial. Com a decretação do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em 380, pelo imperador bizantino Teodósio I., e com a progressiva decadência desse império, insígnias, liturgias, estruturas e modos de administração imperiais foram assumidas pela nova religião de Estado. De geração para geração, de século para século, foram transmitidas e se tornaram fetiches do cristianismo, sinais mágicos da violência. Setores do Vaticano II estavam decididos de romper com essa herança, historicamente, caducada.

 

No final do Concílio, no “Pacto das Catacumbas”, de 1965, 40 padres conciliares renunciaram à herança do Império Romano, “à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos)”; recusaram-se a ser chamados “com nomes e títulos que significassem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…)”. Paulo VI deu um sinal na mesma direção quando, no dia 13 de novembro de 1964, antes de viajar para Bombaim, colocou a Tiara, a tríplice coroa dos papas, no altar de S. Pedro para nunca mais usá-la. Mas, para o conjunto da Igreja Católica, muitas das estruturas e da indumentária imperiais até hoje não foram abolidas.

 

No início do Vaticano II, os símbolos imperiais e a ideologia colonial ainda estiveram presentes não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Os documentos oficiais da Igreja Católica latino-americana do fim do século XIX e da primeira metade do século XX apontam para uma Igreja que defende seus privilégios como meio e a civilização ocidental como meta missionária, sobretudo para as "tribos que ainda permanecem na infidelidade" [n. 770] (cf. CONCÍLIO PLENÁRIO, Actas, 1906, itens 547s, 619, 627, 770-774). Muitas das deliberações pastorais do Concílio Plenário da América Latina, celebrado em Roma em 1899, repetem os tópicos elencados trezentos anos antes, na primeira fase de colonização, nos concílios de México e Lima.

 

A “Pastoral Collectiva” e as "Resoluções e Estatutos" da Província Eclesiástica Meridional do Brasil, de 1901, mostram uma Igreja romanizada, defensiva e voltada para si mesma, sem nenhuma preocupação com os povos indígenas (cf. PASTORAL COLLECTIVA, 1902). A mesma despreocupação refletem as Cartas Pastorais, como aquela que o episcopado brasileiro escreveu por ocasião do Centenário da Independência (cf. CARTA PASTORAL, 1922); a mesma lacuna encontra-se nos 489 cânones do Primeiro Concílio Plenário Brasileiro, celebrado em 1939 no Rio de Janeiro (cf. CONCILIUM PLENARIUM BRASILIENSE, 1939). Mas, em cada ano dessa época, um povo indígena foi definitivamente exterminado.

 

Para o trabalho missionário, um dos precursores da descolonização foi Charles de Foucauld (1858-1916). Com seus seguidores nos mais diversos movimentos espirituais e fundações religiosas, antecipava questões posteriormente articuladas em torno do paradigma da inculturação e da presença missionária. No contexto pós-colonial da opção pelos outros, emerge a opção pelos operários de um Joseph Cardijn que, em 1924, fundou na Bélgica a Juventude Operária Cristã (JOC), inspirando a Ação Católica com seu método da “revisão de vida” (ver, julgar, agir). A sobriedade missionária do movimento dos padres operários e da Mission de France já apontaram para a opção pelos pobres. A criatividade e tenacidade dos movimentos litúrgico, bíblico e ecumênico abriram, muito antes do Vaticano II, perspectivas para a celebração da vida e para a leitura da palavra de Deus a partir do respectivo contexto cultural e histórico. Finalmente, o papa João XXIII, na encíclica Pacem in terris (1963), invoca a descolonização como um sinal de Deus no tempo [n. 42]. O anúncio do Vaticano II, na festa da conversão do apóstolo Paulo, dia 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, tem um profundo significado simbólico. Data, lugar e pessoa escolhidos pelo papa João XXIII apontam para o propósito de reconstruir uma Igreja com atitude de conversão fora dos muros do legalismo; apontam para uma Igreja apostólica, cuja atividade missionária se torna responsabilidade libertadora para com toda a humanidade. A missão da Igreja começa “fora dos muros”, entre aqueles que vivem nas margens das respectivas sociedades.

 

Como colocar a Igreja em dia com o mundo e com uma nova consciência histórica, e inseri-la na realidade de hoje? Inserção na realidade, consciência histórica, contemporaneidade, sem concessões aos modismos, e visão utópica delineiam o campo semântico do aggiornamento de João XXIII.

 

2. A virada pastoral do Cimi: voz e vez dos povos indígenas

 

Ao Cimi coube a tarefa de conduzir a causa dos povos indígenas do labirinto colonial à planície pós-conciliar e da invisibilidade política e da tutela colonial ao confronto com o poder político. Este visava através das senhas de integração, emancipação, desenvolvimento e sustentabilidade, encaminhar os povos indígenas para o desaparecimento de sua alteridade.

 

As inovações verbais e documentais do Concílio foram significativas, porém, muitas vezes, polissêmicas e não obrigatórias. Permitiram, ao lado da caminhada do Cimi, outros caminhos e projetos, uns, pré-conciliares, outros modernizantes e ainda outros afinados com os respectivos governos. A pastoral do Cimi foi uma opção, não uma obrigação. Este fato permitiu, no tempo pós conciliar, parar processos, obstaculizar caminhos, reverter reformas, às vezes no campo simbólico, às vezes, no campo real. Na situação de um pluralismo pastoral quase pós-moderno, algumas afirmações nos incomodaram particularmente:

 

– a negação da existência de índios em determinadas dioceses: “Na nossa diocese não têm mais índios; são todos caboclos”;

– a negação do protagonismo e da voz própria dos povos indígenas: “Eu amo os índios, mas odeio o Cimi”;

– a confusão da proteção específica dos povos indígenas com sua manutenção no atraso de uma redoma cultural: “O Cimi tem uma visão romântica e não histórica dos povos indígenas”;

– a negação da relevância pastoral do trabalho indigenista do Cimi: “Eu tenho a `minha´ pastoral indigenista, porque o Cimi não faz pastoral; o Cimi presta apenas um serviço social”.

 

Não é difícil mostrar o fundo ideológico e interesseiro dessas afirmações. Limito a minha colocação a alguns passos pastoralmente relevantes, que procuravam traduzir as inspirações fundamentais do Vaticano II para a caminhada do Cimi.

 

Primeiro: Da pastoral dedutiva à pastoral indutiva

 

A Constituição Pastoral Gaudium et spes, mais do que outros Documentos do Vaticano II, assume um discurso indutivo, partindo da vida concreta da humanidade, das alegrias e esperanças, das tristezas e angústias, “sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem” (GS 1). A leitura dos “sinais dos tempos” e a interpretação das mensagens que Deus envia a partir do mundo secular à sua Igreja foram reconhecidas como uma espécie de revelações históricas: “A própria Igreja não ignora o quanto tenha recebido da história e da evolução da humanidade”, nos informa a Gaudium et spes (GS 44,1).

 

Para o Cimi, a tradução desse impulso conciliar de uma pastoral indutiva aconteceu nas “Assembleias dos povos indígenas”. Para fortalecer o protagonismo indígena, o Cimi incentivou, desde 1974, a organização de assembleias de líderes indígenas. Nessas assembleias, na escuta da voz dos povos indígenas e na interpretação dos sinais do tempo transmitidos nos relatos de sua história sofrida, o Cimi assumiu a metodologia teológica do “ver-julgar-agir”, reconhecida pelo magistério eclesial desde a programática Carta Encíclica Mater et magistra, de João XXIII (1961) [MM 235]. Essas assembleias indígenas foram para o Cimi eventos que permitiram várias vezes superar “pontos mortos” da tradição pastoral indigenista e reconhecer os povos indígenas como sujeitos da missão. Acreditamos na racionalidade e significância da dor dos povos indígenas e procuramos não só interpretá-la, mas denunciar a sua origem e interromper as suas consequências. Experimentamos nessas assembleias o que pode aparecer como frase de efeito no Documento de Aparecida: “Quantas vezes os pobres e os que sofrem nos evangelizam realmente” (DAp 257)! As inspirações pastorais do Cimi vieram da práxis pastoral, do chão das aldeias indígenas.

 

Segundo: Do monopólio salvífico ao diálogo inter-religioso

 

A realidade do outro não representa uma tábula rasa, mas uma realidade a ser assumida em continuidade e, ao mesmo tempo, com rupturas. Onde a missão chega, Deus já está presente. Ele nos precede em todos os povos. Aprendemos a assumir e contextualizar a história dos povos indígenas no interior da história de salvação. O aggiornamento de João XXIII sugeriu a passagem de um mundo pré-moderno e fundamentalista à assunção crítica da modernidade; apontou para a passagem do monólogo salvífico ao diálogo com outras religiões, credos e visões do mundo.

 

Missionários exemplares como José de Anchieta (1534-1597) e Antônio Vieira (1608-1697), no Brasil, ensinavam a doutrina oficial da Igreja-cristandade. Para eles, o mundo do outro, do não católico, era um mundo sem graça.

 

Os princípios hermenêuticos dessa atividade missionária são conhecidos:

 

a) O cristianismo em sua vertente católica é a única religião que salva.

b) As religiões dos outros são religiões idolátricas porque não têm por base a revelação do verdadeiro Deus.

c) O empenho na salvação das almas é um dever urgente da Igreja.

d) O diálogo inter-religioso serve para convencer o outro dos seus erros e convertê-lo ao cristianismo.

 

Essa era a doutrina oficial – não só da Igreja Católica, mas também da maioria das denominações cristãs – até a primeira metade do século XX.

 

O Vaticano II trouxe mudanças substanciais que aqui são resumidamente elencadas:

 

a) “O Salvador quer que todos os homens se salvem” (LG 16; cf. 1Tim 2,4).

b) “O plano da salvação abrange também àqueles que reconhecem o Criador” (LG 16), muitas vezes, em religiões não cristãs que “refletem lampejos daquela Verdade que ilumina todos os homens” (NA 2b). De ninguém, que procura “o Deus desconhecido em sombras e imagens, Deus está longe” (LG 16a). Essa afirmação significa um reconhecimento salvífico das religiões não cristãs.

c) Cristãos e não cristãos podem ser associados ao mistério pascal e à esperança da ressurreição: “Devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal” (GS 22).

d) Todos “que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação eterna” (LG 16). “Deus pode por caminhos d´Ele conhecidos levar à fé os homens que sem culpa própria ignoram o Evangelho” (AG 7a).

e) A liberdade religiosa é um direito da pessoa humana e um pressuposto da missão. “Em assuntos religiosos ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem se impeça de agir de acordo com ela” (DH 2a).

 

Todas essas afirmações aliviaram o trabalho missionário. Para o Cimi, as religiões indígenas tornaram-se interlocutores do diálogo inter-religioso e ecumênico. O diálogo é, como o lava-pé de Jesus, um serviço que prestamos à humanidade: “O clima do diálogo é a amizade; melhor, o serviço”, afirmou Paulo VI em sua encíclica programática Ecclesiam suam [ES 49].

 

Terceiro: A metamorfose do caçador de borboletas ao jardineiro ou da missão que salva almas à missão que salva vidas

 

Ao defender território, cultura e subjetividade (autodeterminação, abolição da tutela), o Cimi substituiu a prioridade da salvação de almas pela salvação de vidas historicamente situadas. Missionários e missionárias junto aos povos indígenas não precisavam mais correr como caçadores de borboletas atrás do resgate das almas dos índios, mas podíam dedicar-se, como jardineiros que atuam por atração, ao plantio das flores da solidariedade, autenticidade e relevância de um conceito de missão (salvação) integral.

 

Em seu discurso final, na última sessão do Concílio (7.12.1965), o papa Paulo VI oferece uma chave de leitura teológico-pastoral de todo o Vaticano II que era, ao mesmo tempo, um imperativo para a pastoral do Cimi: “A ideia de serviço ocupou o lugar central” do Vaticano II. “Desejamos antes notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais nada, a caridade”.

 

“No tempo pós-conciliar, as missionárias e os missionários construíram uma nova articulação entre os campos espiritual e material, entre o político e o religioso, entre as convicções religiosas próprias e as dos outros, na base dos mistérios e nas festas centrais do cristianismo. Na festa de Natal, por exemplo, comemora-se a encarnação do Filho de Deus entre nós, que inspirou o paradigma da inculturação. A festa da Páscoa aponta para o paradigma da libertação. A festa de Pentecostes, que comemora a fundação da Igreja, ajuda a ver melhor os aspectos do diálogo e da gratuidade da presença missionária e a pluralidade dos projetos de vida dos povos indígenas” (Plano Pastoral do Cimi, n. 107).

 

Se os missionários e as missionárias do Cimi não se consideram mais caçadores de almas, mas defensores de um conceito de pastoral integral que opera por atração, também a discussão sobre a evangelização explícita e a implícita não tem mais sentido. Na base do Evangelho, o Documento de Aparecida (DAp) procurou encontrar um justo meio, quando declara: “Iluminados pelo Cristo, o sofrimento, a injustiça e a cruz nos desafiam a viver como Igreja samaritana, recordando que a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica libertação cristã” (DAp 26). Aparecida radicaliza quando declara: “Tudo o que tenha relação com Cristo tem relação com os pobres e tudo o que está relacionado com os pobres clama por Jesus Cristo” (DAp 393). Abandonamos, na pastoral indigenista, a dicotomia entre “salvar almas” e “cuidar corpos”, fazer catequese e lutar por terra e teto. Existe uma articulação orgânica entre palavra e ação, fé e política, celebração sacramental e horizonte de sentido; entre vida ativa e contemplativa. Lutar pelo reconhecimento da dignidade das pessoas como criaturas de Deus e cuidar do planeta terra como obra de Deus é tão importante como fazer catequese e explicar as escrituras. “A fé que não se traduz em ações, por si só está morta” (Tg 2,17). Igreja samaritana tão enfatizada por Aparecida (cf. DAp 26) responde à pergunta do doutor da Lei “O que devo fazer para ter a vida eterna”. Segundo a parábola de Jesus, ela não vem do templo, mas é relevante para a vida eterna: se é eterna, então é vida ontem, hoje e amanhã, vida histórica e escatológica.

 

A Evangelii nuntiandi resume a questão ao declarar: “O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres” (EN 41). A pastoral do Cimi teve a graça de gerar testemunhas qualificadas, mártires, confessores e profetas.

 

Os serviços pastorais da Igreja, a sua diaconia no anúncio da palavra como na prática de solidariedade, são seguimento do Verbo encarnado. Através de ambos os serviços entramos “na vida e na missão d´Aquele que `se aniquilou a Si mesmo, tomando a forma de servo´ (Fil 2,7)” (Ad gentes, 24; cf. Gaudium et spes, 32; Lumen gentium, 8). No conjunto da ação pastoral do Cimi, cada serviço é serviço pastoral que envolve uma atividade específica (assessorias), integral (defesa do território e da cultura), contextual (cidade, aldeia) e universal (“causa indígena”, não casos isolados). Universal quer dizer que os nossos serviços estão interligados pelos vasos capilares da Boa-Nova e do Reino. Nossa atividade pastoral, que é apostólica e profética, exige que tenhamos zelo pelo outro, não ciúme; “exige que anunciemos Jesus Cristo e a Boa-Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas e fomentemos o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico” (DAp 95). Fazemos alianças com todos os setores que acreditam no futuro específico dos povos indígenas e atuam num horizonte antissistêmico. Nos trâmites da justiça e nas lutas pelas condições dignas de vida, o Cimi nunca se considerou juiz entre as partes, mas “advogado da justiça” (DAp 395, 533) dos povos indígenas.

 

Quarto: Da adaptação e acomodação à inculturação

 

Adaptação e acomodação eram instrumentos de uma pastoral colonial e colonizadora. A bandeira do aggiornamento de João XXIII forjou trilhos de descolonização na Igreja que agora estendeu seus braços em direção da macroestrutura da modernidade e das microestruturas dos contextos vivenciais dos povos. Nos contextos vivenciais encontrou as vítimas do sistema em curso: os pobres e suas lutas pela redistribuição dos bens; e os outros, os povos indígenas em busca de terra e reconhecimento de sua alteridade.

 

O aggiornamento macroestrutural ao mundo moderno não nos afastou dos contextos microestruturais dos pobres e dos outros. Pelo contrário, a modernidade disponibiliza os instrumentos em defesa da causa indígena: autonomia e autodeterminação, universalidade de causas e subjetividade das pessoas, organização de lutas sociais e participação democrática, tolerância e reconhecimento de alteridade.

 

A proposta do aggiornamento, segundo Paulo VI, a “orientação programática” do Concílio (Ecclesiam suam, 27), o Cimi traduziu como inculturação, como construção de uma Igreja versus populum, como virada popular das práticas pastorais, litúrgicas, institucionais e teológicas (Teologia índia!).

 

“Para os povos indígenas que pedem a evangelização, a inculturação é um instrumento da evangelização libertadora. Jesus não separou o anúncio de sinais de justiça e caridade. `Por onde andardes anunciai que o reino dos céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios´ (Mt 10,7s) [Plano Pastoral, n. 112]. A inculturação, essa tentativa de anunciar o Evangelho e transmitir a fé numa proximidade cultural com os povos indígenas, é para os que adotaram essa fé “um imperativo do seguimento de Jesus e é necessária para restaurar o rosto desfigurado do mundo (cf. LG 8, DSD 13; PP, n. 113). “O Cimi está convencido de que uma leitura pós-colonial e profética do Evangelho pode contribuir para o fortalecimento do projeto dos povos indígenas, de sua identidade e capacidade de construir alianças com outros setores marginalizados da sociedade brasileira; pode contribuir para a formulação de uma ética de solidariedade além das fronteiras tribais e locais; pode contribuir para a sua confiança num futuro específico, num mundo que será para todos” (Plano Pastoral, n. 114).

 

Na proximidade vivencial com os povos indígenas descobrimos as questões da terra/território, da autodeterminação e da cultura como seus salva-vidas. Procuramos ancorar a defesa dessas questões axiais na tradição da Igreja que, na configuração da CNBB, era e é nossa grande aliada. Recorremos, muitas vezes, como os textos do Vaticano II, aos tópicos da Patrística que permitiram construir uma ponte desde os primórdios do cristianismo até as aldeias indígenas. O mártir Justino ((+165) nos falou das “sementes do Verbo“ nas culturas (vgl. Ad Gentes 11; Lumen Gentium 17; Gaudium et Spes 57). Irineu de Lyon (+202) e Eusébio de Cesareia (+339) procuravam ler as culturas pagãs como pedagogia, como „preparatio evangelica“ (Ad gentes 3). Puebla (cf. n. 400) cita Santo Irineu que nos advertiu que somente o “assumido” pode ser “redimido”. .

 

Quinto: Da missão ad gentes à missão entre e com os povos indígenas e as vítimas

 

A “missão ad gentes”, dirigida na mão única aos povos indígenas, hoje, de fato, é “missão com e entre os povos indígenas e as vítimas”. Formamos, na pastoral do Cimi, alianças inter étnicas, latino-americanas, continentais e planetárias, alianças entre Igrejas locais e comunidades, com todos os setores que estão dispostos a construir um outro mundo que é possível e participa da realidade do Reino de Deus entre nós.

 

O paradigma da “missio inter gentes”

– leva em conta a situação do pluralismo religioso e da diáspora crescente da Igreja no mundo de hoje;

– enfatiza a responsabilidade da Igreja local e dos próprios povos indígenas para definir os rumos da missão;

– quebra o monopólio de uma Igreja que envia missionári@s e uma Igreja que os recebe;

– admite a reciprocidade e conversão mútua entre agentes e destinatários da missão e reconhece o valor indispensável do diálogo intercultural e inter-religioso;

– sublinha a missão não como uma atividade entre indivíduos, mas entre comunidades (cum gentes significa com os povos).

 

Para a América Latina e o Caribe, que passou por um aprofundamento na leitura da Bíblia e pela renovação de Medellín, Puebla e Santo Domingo, missão “ad gentes” significa seguir Jesus, convocar seus destinatários preferenciais, os pobres, e enviá-los como protagonistas de seu Reino e seus representantes no mundo. Em seus discursos axiais da Sinagoga de Nazaré (Lc 4), das Bem-Aventuranças (Mt 5) e do Último Juízo (Mt 25), Jesus de Nazaré é muito claro. Os protagonistas de seu projeto, que é o Reino, são as vítimas (pobres, cativos, cegos, famintos, oprimidos, outros, enfermos). Reconhecer o outro-pobre em sua dignidade e alteridade não significa inclusão sistêmica, mas um convite para participar na transformação desse sistema. Impulsionar práticas significativas de participação do povo de Deus é uma expressão coerente da natureza missionária da Igreja.

 

Os povos indígenas são os indignados das Américas, são o movimento “occupy”, não no Parque Zucotti na Wall Street de New York, mas no Mato Grosso Sul, do Brasil, simbolicamente representando um país e um mundo, em que os pobres salvam os Bancos e os ricos ocupam as terras. Os povos indígenas e sua causa não têm partido, a não ser todos aqueles que se tornaram seus advogados dispostos a lutar e sofrer por sua causa. O partido dos povos indígenas é a dor desarmada. E nós, do Cimi, procuramos aprender com eles a reler a história na chave da memória subversiva de Jesus.

 

3. Horizontes para caminhar e navegar

 

Como podemos, a partir do retrovisor da história dos povos indígenas e dos 40 anos do Cimi, delinear rumos, costurar alianças, alimentar esperanças na luta pela vida no planeta terra, a partir da nossa fé?

 

A luta nos deu alegrias e esperanças, nos causou dores e tristezas. Objetivamente, podemos afirmar que assistimos à demarcação de muitos hectares de terra nesses 40 anos. Mas, para cada 10 hectares de terra demarcada, um líder indígena foi assassinado. Tivemos a graça pascal de acompanhar, nesses anos, um povo martirial que deu sentido à nossa vida.

 

O Cimi contribuiu com outras pastorais e setores da sociedade civil para a credibilidade da Igreja Católica na sociedade brasileira. A Igreja nos deu a cobertura institucional para realizar essa virada indígena na pastoral. Na reciprocidade do dar e receber, nos iniciamos numa vida despojada. Cresceu em nós a consciência da centralidade dos povos indígenas para nossa vida e da prioridade de sua causa para saídas humanas nos impasses civilizatórios. Mesmo sendo servos inúteis, procuramos viver a serviço do Reino.

 

Através do Cimi, encontramos companheiros e companheiras, na sociedade civil e na Igreja. Através da causa indígena, encontramos uma comunidade que alimentou em cada um de nós uma mística missionária militante. Fez-nos conservar nossa vida como vinho jovem, rebelde, em odres novos. Continuamos jovens, não é, D. Thomás?

 

A missão, com seus dois movimentos, a diástole do envio à periferia do mundo e a sístole que convoca, a partir dessa periferia, para a libertação do centro, é o coração da nossa pastoral que, sob a senha do Reino, propõe um mundo sem periferia e sem centro.

 

Para nós que, às vezes, somos missionários de Fórmula 1 com pit-stop nas aldeias indígenas, tudo anda muito devagar. Queríamos que Lula desse o tiro de largada para a construção da “terra sem males” dos guarani; que Evo Morales lançasse a pedra fundamental do sumak kawsai, o bem viver, dos quechua, e que com a eleição do papa Bento XVI começasse o Reino de Deus na terra. Ledo engano. Eles deram um golpe duro à nossa mentalidade construcionista e intervencionista. Não esperemos de líderes políticos ou eclesiásticos a inauguração de um paraíso terrestre, que o próprio Jesus de Nazaré se recusou a instalar. Sumak kawsai, terra sem males e Reino de Deus são árvores pequenas, como um bonsai, às vezes, até invisíveis. Num jardim que cultivamos podem-se tornar realidade como dádiva e kairós. Todos nós já recorremos à sombra dessas árvores, no quintal de uma Igreja despojada, que não tem pátria nem cultura, nem é dona de verdades, mas serva, peregrina, hóspede, sinal. Ela tem rumo. Navegar é preciso. Na urgência do amor (2Cor 5,14), a nossa pastoral indigenista encontra tempo para se deixar interromper pelos “pobres índios”, para interromper os programas de aceleração de uma corrida ao abismo e puxar os freios de emergência. Na luta ampliamos a margem de nossa intervenção. Mas ao mesmo tempo experimentamos os limites dessa liberdade intervencionista. Para que serve então a utopia do Reino, do Cimi, da terra sem males, do sumak kawsay se ela nunca estará ao nosso alcance?

 

Ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos y ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos, y el horizonte se desplaza diez pasos más allá. A pesar de que camine, no la alcanzaré nunca. Para qué sirve la utopía? Sirve para esto: para caminar. (Eduardo Galeano)

Fonte: Paulo Suess, Assessor Teológico do Cimi
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