O bem viver e a missão
Acredito que os 40 anos do CIMI nos abrem um espaço, uma clareira para, no meio da jornada, divisar os caminhos que ficaram para trás e os caminhos que se abrem à nossa frente. Não se trata primordialmente de aprofundar conceitos, mas sim de reler e projetar vivências, compromissos, utopias.
O Plano de Pastoral do CIMI nos sugere um rito de passagem que é também um rito de iniciação, ou seja: a gestação de um novo ser.
40 anos de uma entidade significam um ritual comunitário de seres adultos, experientes, maduros, em que o novo nunca aconteceu por caminhos já traçados, mas sempre surgiu passo a passo ao serem traçados os caminhos.
Hoje, aqui estamos celebrando esse ritual.
Em todo rito há uma mescla de mística e de militância, pois o “ser enviado” e o “assumir a missão” supõem uma textura existencial e histórica em que se mesclam fios de mística e urdiduras de militância.
A Missão do CIMI – a missão de cada uma, de cada um de nós – vem sendo tecida (uso expressamente essa forma verbal para marcar a continuidade presente no tempo) em diferentes configurações históricas, em sucessivos e complementares conceitos e vivências de Missão, como resposta aos clamores de um mundo sofrido onde culturas são amordaçadas e povos dizimados.
Missão que se propõe traçar caminhos em seguimento do Caminho – Jesus abrindo picadas de justiça e fraternidade em meio à selva de pedra de uma sociedade fechada em si mesma, competitiva e excludente. Missão que assume o projeto do Reino, um projeto de Vida e Vida em abundância para todos.
O índio, aquele que deve morrer no dizer dos anos 70, um dizer repetitivo desde os primórdios da colonização, um dizer que continua ecoando na atual conjuntura, esse índio que teima em afirmar que está vivo, – e o comprova, altivo, a cada ameaça de morte que ele enfrenta – tornou-se o motivo maior da existência do CIMI.
Mística e militância nunca podem estar dissociadas no tecido missionário A essência da missão, o âmago da missionariedade está expressa naquele texto paradigmático que Jesus leu na Sinagoga de Nazaré (Lc 4,18).
Trata-se de comprometer a vida em processos sempre mais exigentes de anúncio da Boa Nova do Reino contextualizando o anúncio no chão das culturas, libertando da escravidão, das mais diferentes formas de colonialismo, recuperando e reconstruindo o projeto de Vida na justiça e na equidade.
Nos anos não tão longínquos e não tão superados da ditadura militar, uma canção da jovem militância dizia assim:
“Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa, nem os frutos.
Portanto, não faz mal que, devagar,
o dia vença a noite em seus redutos.
O que nos cabe é ter enxutos os olhos
e a intenção de madrugar.”
Nesse momento, em que nos deparamos com os grandes problemas ecossociais do nosso mundo, em que o amanhecer de uma nova era se refere diretamente à gestação de uma nova sociedade, é bom pensar, e importa assumir como tarefa urgente “ter enxutos os olhos e a intenção de madrugar”.
Olhos enxutos dispostos a divisar com nitidez o horizonte da utopia do Bem Viver. E a intenção de madrugar! Acima de qualquer medo, de qualquer hesitação. O medo paralisa o gesto, renega a Esperança e a hesitação compromete a Hora.
Então me vem à lembrança aquele poema de Zé Vicente: “Urgente se faz afagar a vida, sofrida como está”.
O Evangelho é taxativo quando diz “o zelo de tua Casa me devora!” me urge, me impele! Mas… inevitavelmente, a gente se depara com uma condição básica de toda militância: a paciência histórica. A paciência das flores que não tem pressa, do dia amanhecendo aos poucos.
Somos quais tecelãs que conseguem mesclar o afã de tecer com a paciência de entrelaçar fios e cores a fim de inventar um novo padrão. A Missão que nos é confiada, o anúncio de que somos responsáveis, esse padrão alternativo se concretiza em processos de construção de um novo paradigma: O Reino da Justiça, da Paz, da Integridade da Criação.
Esse outro mundo possível vem sendo gerado há milênios, no âmago do cosmos, nesse útero misterioso de onde emergimos. O milagre da vida nos ultrapassa e, no entanto, temos cada vez mais forte a evidência, como diz Leonardo Boff da “mútua pertença e unidade orgânica Terra-Humanidade, pois somos a própria Terra em sua expressão de consciência, liberdade e amor” (Boff, A opção _Terra, Record, 2009).
Essa novidade, esse outro paradigma, essa utopia de “um novo céu e uma nova terra” não é algo que vai surgir de repente porque, ao contrário, é algo que o projeto salvífico de Deus, já veio tecendo de toda a eternidade, e que já realizou em seu Filho Jesus feito carne, nascido também do húmus da terra. E o Evangelho de João nos diz que “o que foi feito n’Ele é a Vida” (Jo 1,4).
Essa Vida nos é confiada a fim de que anunciemos profeticamente, aqui e agora, que O REINO JÁ ESTÁ ENTRE NÓS. Essa é a certeza inabalável, a força inexplicável que haurimos na mística do CIMI que “de braços dados com os povos indígenas, acredita na causa desses povos, nos seus projetos de vida, na sua força histórica, na sua utopia e no seu futuro” (Plano Pastoral CIMI).
Por isso, aqui estamos e, decorridos 40 anos, Gustavo Gutierrez nos diria que, agora, importa “beber no próprio poço”. E qual é esse nosso próprio poço senão o Bem Viver dos Povos com os quais convivemos e com os quais lutamos?
Nossas vidas, nossa atuação, nossas metas missionárias foram e continuam sendo, constantemente inspiradas e questionadas pelo testemunho de Bem viver dos Povos indígenas.
Uma proposta de vida eivada de profunda espiritualidade evangélica, onde companheiros e companheiras que já se foram beberam a mística da inculturação e onde nossos mártires encontraram a força de sua militância em seguimento de Jesus “até o fim”.
Hoje, mais que nunca, a Humanidade inteira é interpelada por essa sabedoria ancestral, por esse conceito do Sumak Kawsay, – o guarani diz: teko porã – entranhado na herança cultural dos povos indígenas. Uma proposta de vida que se coloca na contramão de todos os conceitos vigentes na sociedade capitalista exigindo novas formas de relacionamento entre as pessoas, os povos e o cosmos.
Nossa sociedade se gere por um conceito linear do tempo e por isso aposta no “ter mais”, na acumulação, no paradigma do crescimento e do desenvolvimento. O Sumak Kawsay se propõe desenvolver uma noção de temporalidade em que o tempo seja vivenciado de forma circular e aberta, o que supõe uma mudança radical no modo de vida. Um modus vivendi em que os bens circulem, e como diz Dávalos, “já não se possa mascarar decisões sócio políticas em nome do consumo individual”. Importa questionar a dominação do mercado, do lucro financeiro, das especulações economicistas, da arraigada atitude competitivista marcando as relações humanas, sobre as formas societárias de convivência.
O Bem Viver nos propõe, ao contrário, uma política de “decrescimento”, de redução do consumismo acelerado, da eliminação do supérfluo e da prática do descartável, de “uma outra economia” como nos sugere a Agenda latino Americana de 2013. Latouche propõe que “essa marcha em direção a uma sociedade de decrescimento deveria ser organizada não apenas para preservar o meio ambiente, mas também e, talvez antes de qualquer coisa, para restaurar um mínimo de justiça social sem a qual o Planeta está condenado à explosão”.
E ele nos lança o desafio da conversão que começa sempre no âmago do coração de cada pessoa: “Em que medida, diz ele, cada um de nós está pronto a resistir, em sua vida cotidiana, à colonização das necessidades fabricadas socialmente?”
Outra proposta fundamental concerne às estruturas: já não se concebem estruturas sociais e políticas construídas de forma hierárquica. Importa, ao contrário, construir formas alternativas de diálogo, de organização coletiva e igualitária, espaços de economia solidária, contextos de inclusão, participação e gratuidade.
E esse é também o grande aprendizado do Bem Viver. Aprendizado ao longo de um processo. Viver a economia como partilha, solidariedade e reciprocidade será para todos nós uma longa aprendizagem. Trata-se de uma proposta revolucionária que inverte todos os paradigmas vigentes, todas as estruturas sociais, econômicas e políticas em vista dos direitos coletivos da sociedade e do cosmos.
A Constituição do Equador tem o seguinte preâmbulo:
“Reconhecendo nossas raízes milenares…
Celebrando a natureza, a Pacha Mama da qual fazemos parte…
Invocando o nome de Deus…
Fazendo apelo para a sabedoria de todas as culturas…
Decidimos construir uma nova forma de convivência cidadã em harmonia com a natureza.”
Fernando Huanacuni, da Bolívia, explica que “Bem Viver significa viver em harmonia e equilíbrio. Em harmonia com a Mãe Terra. A Pachamama não é um planeta, não é o meio ambiente (…) é a nossa Mãe Terra. Viver em harmonia com o cosmos porque o cosmos também tem ciclos; viver em harmonia com a história, porque estamos em tempo de reordenamento da vida, de revitalização das forças naturais ante a conduta antinatural do pensamento ocidental (…) Saber que tudo está interconectado, interrelacionado e é interdependente. Saber que a deteriorização de uma espécie é a deteriorização do conjunto“.
Não é hora de elencar toda a lista dessa tragédia anunciada que é a depredação sistemática dos ecossistemas, a destruição da natureza e da vida humana no planeta. Eduardo Galeano disse que Deus se esqueceu de acrescentar um 10º mandamento nas tábuas da lei: “Amarás – o que significa também: não destruirás a natureza de que formas parte!”. Hoje, quem sabe Deus também teria de acrescentar algo na frase dita a Caim (e esse Caim somos todos nós): Onde está teu irmão? Onde está tua Mãe Terra?
Essa Terra e a Humanidade, indissoluvelmente unidas, gemem, gritam clamando por vida. Cacique Babau nos dizia que o que seu povo deseja é uma terra sem males, sem dor, sem sofrimento.
Na verdade, o que sobe das entranhas do planeta são clamores de dor e S. Paulo já nos dizia: “Sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente” (Rom 8, 22).
A Terra–Humanidade também deve realizar seu rito de passagem para que, continuando a citação de Paulo, esse processo de gestação culmine na “esperança dela também ser libertada da escravidão para entrar na liberdade” (Rom 8,21).
E a gente se pergunta: No marasmo desse mundo… Quando? Como? E o mesmo Paulo nos responde: “Se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rom 8, 25).
Perseverança! É na perseverança desses 40 anos de resistência em que, na expressão de Jon Sobrino “carregamos a realidade” juntamente com os povos indígenas, que o CIMI também se torna capaz de crer e apostar na visão apocalíptica da esperança segundo a descrição de Isaías:
“As coisas de outrora não serão lembradas nem tornarão a vir ao coração… Alegrai-vos pois e regozijai-vos para sempre com aquilo que estou para criar: eis que farei de Jerusalém um júbilo e de seu povo uma alegria. …
Nela já não haverá choro nem lamentação (como entre os Guarani Kayowá) Já não haverá criancinhas que vivam apenas alguns dias, nem velhos que não completem sua idade (como no Vale do Javari). Os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão de seus frutos. Já não construirão para que outro habite em sua casa, não plantarão para que outro coma o seu fruto, (como aconteceu na TI Marawatsédé invadida pelos não-índios). Não se fará mal nem violência em todo o meu monte santo” (nem tão pouco em conseqüência de um horrendo Belo Monte…) Is65,17-25.
Se o Apocalipse termina clamando: “Vem Senhor Jesus!”, o CIMI hoje, completando 40 anos de Mística e Militância, prolonga esse clamor assumindo mais uma vez sua Missão em prol da Vida e, juntamente com a Terra-Humanidade suplica: Apressa, Senhor Jesus, a Utopia do Bem Viver! Amém!