Parecer sobre a PEC 38/1999
Ao Excelentíssimo Senhor Senador
SIBÁ MACHADO
Análise da Proposta de Emenda à Constituição nº 38, de 1999, tendo como primeiro signatário o Senador Mozarildo Cavalcanti, que altera os artigos 52, 225 e 231 da Constituição Federal, com Parecer sob nº 317, de 2002, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, Relator Senador Almir Lando, favorável, com as Emendas 1 a 4-CCJ.
A novel redação que se pretende conferir ao art. 52 da CF, atribuindo competência privativa ao Senado Federal para aprovar, mediante proposta do Poder Executivo, o ato demarcatório das terras indígenas, e ao art. 231 da CF, mediante acréscimo de um § 2º, segundo o qual a área destinada às terras indígenas e às unidades de conservação ambiental não poderá ultrapassar, conjuntamente, 50% (cinqüenta por cento) da superfície de cada unidade da Federação.
A proposta, todavia, mesmo com as alterações promovidas pela CCJ, padece de vício de inconstitucionalidade.
A Constituição de 1988 representa uma clivagem em relação a todo o sistema constitucional pretérito, ao reconhecer o Estado brasileiro como pluriétnico e multicultural, assegurando aos diversos grupos formadores dessa nacionalidade o exercício pleno de seus direitos de identidade própria. Quanto aos índios, as disposições a eles pertinentes são expressas neste sentido.
Ao conferir aos índios a posse das terras tradicionalmente ocupadas, o legislador consituinte teve em vista a circunstância de que os territórios físicos onde estão esses grupos constituem-se em espaços simbólicos de identidade, de produção e reprodução cultural, não sendo, portanto, algo exterior à identidade, mas sim a ela imanente.
O direito à identidade, por seu turno, além de se apresentar, ele próprio, como direito fundamental, reorienta a compreensão de toda uma gama de vários outros direitos fundamentais. Assim é que, exemplificativamente, o princípio da dignidade da pessoa humana requer que se compreenda que cada indivíduo particular é essencialmente dependente de tradições intersubjetivamente compartilhadas no seio de uma dada comunidade, motor de sua própria identidade; o direito à vida despe-se de sua visão meramente biológica, escapando ao âmbito atomístico do individualismo e assumindo caráter significativo, construída por identidades e identificações com referência a origens ou destinos comuns; a igualdade torna-se substancial, antes que formal, posto que pressupõe a alteridade, ou seja, reconhecimento do outro como igual sempre que a diferença lhe acarrete inferioridade, e como diferente, sempre que a igualdade lhe ponha em risco a identidade (Santos, 2000:246) .
Nota característica dos direitos fundamentais é a sua indisponibilidade. Como ensina Luigi Ferrajoli , esta indisponibilidade há de ser entendida em sua dupla face: indisponibilidade ativa, que não permite aos seus titulares a sua alienação, e a indisponibilidade passiva, no sentido de não serem expropriados ou limitados por outros sujeitos, começando pelo Estado. Neste sentido, nenhuma maioria, sequer por unanimidade, pode legitimamente decidir sobre a violação de um direito de uma minoria naquilo que diz respeito à sua própria identidade. Mais uma vez valendo-nos da lição de Ferrajoli, à vista do princípio da igualdade que se realiza com respeito à diferença, nenhuma maioria pode decidir em matéria de direitos por conta dos demais, tanto mais quando a minoria tem interesses ligados à sua diferença .
Daí a razão por que as normas que veiculam tais direitos são chamadas téticas, assim concebidas como aquelas que imediatamente dispõem sobre as situações por elas expressadas , não se sujeitando os direitos ali previstos a serem constituídos, modificados ou extintos por qualquer ato. Distinguem-se das normas ditas hipotéticas na exata medida em que as situações nestas previstas encontram-se apenas predispostas pela norma, a reclamar a intermediação de um ato – legislativo, jurídico – para a sua realização.
Assim, os direitos fundamentais são todos ex lege, conferidos diretamente pela Constituição, e imediata e plenamente realizáveis, não se admitindo a intermediação de ato, de que natureza for, para o seu exercício pleno.
Daí por que qualquer disposição normativa, ou mesmo hermenêutica, que afete este território, dissociando-o da questão étnica que o informa, agride o direito fundamental de identidade própria do grupo.
Neste sentido, a proposta de emenda constitucional que passa a tratar do território indígena a partir de critérios puramente quantitativos ligados à divisão política-administrativa do Estado brasileiro encontra óbice no art. 60, § 4º, IV, da CF, segundo o qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) os direitos e garantias individuais.
Também a submissão do ato demarcatório das áreas indígenas ao Senado Federal é ofensiva ao princípio da separação de poderes, posto se tratar de atividade de natureza estritamente administrativa, de conteúdo meramente declaratório, e, assim, não passível de ser objeto de emenda constitucional, ainda a teor do referido art. 60, § 4º, em seu inciso III.
Neste particular, merece especial atenção o processo de demarcação das áreas indígenas.
Os territórios indígenas, porque espaços de produção e reprodução física e cultural, não se apresentam naturalisticamente aos olhos do observador. Porque em seu interior se desenvolvem formas específicas de vida, de ver e conhecer o mundo, os seus limites físicos apenas podem ser definidos após a realização de estudo antropológico, que indique não só a situação e movimentação espacial dos grupos, mas, principalmente, toda a ritualística, todo o sentido que é emprestado a estes espaços. E exatamente porque apenas os estudos antropológicos podem fazer justiça à toda a complexidade da questão, determina o art. 2º do Decreto 1775/96 que a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida.
Daí por que, a par da nítida ofensa à Constituição o encaminhamento do ato demarcatório ao Senado Federal, pelas razões já expostas, ressente-se de utilidade prática a providência, apresentando-se nitidamente como de caráter protelatório, pois:
a) a extensão das áreas indígenas decorre da especial forma de ocupação, decorrente de usos, costumes e tradições, aferida antropologicamente;
b) por se tratar de direito fundamental, pois pertinente à própria identidade do grupo, não pode ser alterado ou suprimido por qualquer ato que escape à sua própria dinâmica;
c) não cabe ao Senado promover discussões sobre os limites territoriais com quem quer que seja, porque tais direitos não são passíveis de transação ou disposição.
Estas as breves considerações que nos competia fazer.
6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.