Portaria 303/2012- Revogação Já!
Sob o pretexto de regulamentar a atuação de advogados e procuradores federais que estiverem à frente de processos judiciais que afetam áreas indígenas, a Advocacia-Geral da União (AGU) editou, no dia 17 de julho, a Portaria 303/2012. A AGU almeja, com essa portaria, que os procedimentos de demarcação de terras indígenas sejam submetidos aos efeitos das 19 condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento (março de 2009) sobre a manutenção da demarcação em área contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol/RR. Trata-se, portanto, de um conjunto de condicionantes vinculadas a um caso específico: o julgamento envolvendo a demarcação da terra Raposa Serra do Sol e não afeta outros procedimentos. Comentando sobre o alcance e efeitos deste julgamento, o jurista José Afonso da Silva, especialista em direito constitucional, declarou: “Um caso único e específico pode até criar um precedente, mas não uma jurisprudência” (Agência Brasil, 20/07/2012).
Vale ressaltar que algumas condicionantes estabelecidas no referido julgamento foram questionadas através de embargos de declaração (ou pedidos de esclarecimentos) e que ainda não foram julgados pelo STF. Portanto, quando apreciados e julgados os embargos, tais condicionantes poderão sofrer modificações de forma total ou parcial. A AGU, ao editar a Portaria 303/2012 atendendo as pressões da Confederação Nacional da Agricultura, lança mão de uma estratégia jurídica autoritariamente acionada para restringir direitos dos povos indígenas e tornar suas terras disponíveis para interesses diversos.
Tal medida faz lembrar, por exemplo, um marco da historiografia cearense, o relatório da Província, escrito em 1863, no qual se decretava a extinção dos índios no estado do Ceará e a anexação dos territórios destes às glebas destinadas à colonização. Naquele e em quase todos os estados, a ordem era favorecer os interesses dos setores regionais e nacionais dominantes, exterminando (ou extinguindo oficialmente) os indígenas para, assim, liberar as terras. Um século mais tarde, já não se decretava a inexistência dos povos indígenas e sim a necessidade de promoção de sua “gradativa e harmoniosa integração”, definida através de um aparato jurídico e de ações assistenciais que visavam obter, pela via da integração da população indígena, a liberação das terras por eles ocupadas para os projetos de desenvolvimento nacional.
O que há em comum entre esses diferentes eventos históricos é a utilização de um recurso jurídico para possibilitar a utilização das terras indígenas por empresas colonizadoras de ontem ou por empresas de construção civil e representantes do agronegócio de hoje. Pode-se dizer que os povos indígenas foram e são considerados pouco aderentes aos modelos de desenvolvimento nacional e regional, porque seus estilos de vida e suas lógicas não combinam com um modelo exploratório e concorrencial. Através de discursos como estes se estabelece a supremacia das maneiras de viver baseadas na ciência e na tecnologia como pilares do desenvolvimento e se define como inferiores, desnecessárias, ultr apassadas outras maneiras de organização da vida, postas em prática pelos povos indígenas.
A Portaria editada pela AGU retoma argumentos reacionários em relação aos povos indígenas e contraria os direitos constitucionais destes povos em aspectos cruciais: o primeiro diz respeito ao direito de pleitear ampliação ou revisão de limites de terras já demarcadas. Embora em geral se utilize a expressão “ampliação de terras”, na grande maioria dos casos se trata de uma reivindicação justa de revisão dos limites estabelecidos pela FUNAI em um contexto de conflito, no qual o órgão indigenista aconselhou que os índios aceitassem uma redução da área para possibilitar a sua demarcação sem maiores embates (e tais procedimentos ocorreram em desajuste com o que determina a Constitu ição Federal). São muitas as terras indígenas demarcadas, sobretudo nos estados do Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que demandam revisão de limites, pois tiveram uma drástica redução nas dimensões apontadas pelos grupos técnicos e não correspondem à área de ocupação tradicional de povos e comunidades indígenas. Citando um caso concreto, no estado de Santa Catarina a área indígena Toldo Pinhal, do povo Kaingang, foi identificada pelo grupo técnico e recomendada para demarcação com uma extensão de 9.800 hectares, considerando a ocupação tradicional e as necessidades do grupo em questão. Contudo, a FUNAI demarcou apenas 980 hectares, portanto dez vezes menor. Como este, há dezenas de outros casos.
O segundo aspecto diz respeito à restrição do usufruto exclusivo sobre as terras pelos índios, conforme estabelece o Art. 231 da Constituição Federal. A Portaria pretende impedir que os indígenas usufruam de recursos existentes em suas terras restringindo as possibilidades apresentadas por outras normas legais. Além disso, determina que seja dispensada a consulta prévia às comunidades quando houver interesse da União na implantação de empreendimentos em terras indígenas. Nesse sentido, a expansão da malha viária ou a geração de energia (via construção de hidrelétricas, por exemplo) poderá ser entendida como estratégica, dispensando a prévia consulta às comunidades que vivem nas terras afetadas. Tal aspecto afronta premissas da Declaração da ONU para os Povos Indígenas e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que foram ratificadas pelo Estado brasileiro e determinam a realização de consulta prévia, livre e informada às populações indígenas sobre qualquer empreendimento que as afetem.
Essa é mais uma manobra utilizada pela AGU para colocar um ponto final ao que o governo parece considerar ser cansativo e prolongado demais, ou seja, o procedimento democrático, que pressupõe consultas, debates, diálogos com a população envolvida. Para que realizar estudos de impacto ambiental ou planejar com responsabilidade e rigor técnico quando estão em foco os projetos desenvolvimentistas que encontram amparo na grande produção, na geração de energia para mover mais empreendimentos e atrair mais investidores, na transposição das águas dos rios para permitir mais plantios, mais lucratividade?
A Portaria vai ao encontro da política indigenista colocada em curso pelo governo nos últimos anos, marcada pelo descaso para com as demandas indígenas e pela negligência em relação à demarcação das terras destes povos (sintomático é o dado de que, até o momento, o governo Dilma homologou apenas três áreas). Na mesma direção, os dados divulgados no Relatório de Violência, organizado pelo Conselho Indigenista Missionário, mostram que a terra é estopim de conflitos em diferentes regiões do Brasil, sendo as comunidades indígenas vítimas de ameaças, agressões à pessoa e ao patrimônio, o que poderá se agravar com esta Portaria. A falta de terras (ou sua inadequada extensão) resp onde pelos escandalosos índices de criminalidade, assassinatos e suicídios em áreas como a dos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul.
A posição adotada pelo governo – através da AGU – fere disposições constitucionais e convenções internacionais ratificadas pelo país, e deve ser imediatamente revogada para se restabelecer a ordem democrática e a confiança nas instâncias jurídicas constituídas para zelar, em primeiro lugar, pelos preceitos de nossa Carta Magna.
Porto Alegre, RS, 27 de julho de 2012.
Roberto Antonio Liebgott
Cimi Sul – Equipe Porto Alegre