Plataforma Dhesca Brasil: Nota de Repúdio contra a Portaria 303 de 16 de Julho de 2012, da Advocacia Geral da União
A Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – Plataforma Dhesca Brasil –, rede nacional de entidades de Direitos Humanos e capítulo brasileiro da Plataforma Interamericana de Derechos Humanos, Democracia y Desarollo, vem a público demonstra seu profundo repúdio e descontentamento com a Portaria 303 de 16 de julho de 2012, da Advocacia Geral da União.
Visando a uniformizar a interpretação, supostamente, das salvaguardas às terras indígenas, feita por órgãos da Administração Pública Federal direta e indireta, a Portaria determina (Art.1º) que tais órgãos sigam as condicionantes para a demarcação do território indígena Raposa Serra do Sol, estabelecidas pelo STF na Petição 3.388 – Roraima. A utilização de tais condicionantes enquanto subterfúgio para forjar uma legitimidade inexistente da Portaria repousa na ausência total de lógica jurídica, legal e de constitucionalidade em se utilizar condicionantes estipulados pelo STF em um caso único, específico (e ainda sub judice, que não transitou em julgado) para todos os territórios indígenas demarcados e em processo de demarcação.
Trata-se de um desvirtuamento de decisão do STF, que inclusive é alvo de 6 (seis) Embargos de Declaração, os quais visam a esclarecer a interpretação e efeitos das condicionantes do caso mencionado, sendo que tais condições podem perfeitamente ainda serem modificadas. Além disso, a Ação Popular, iniciada com a Petição 3388-Roraima, não é meio de controle abstrato de normas, como afirmado pelo Ministro Carlos Ayres Brito, por ocasião da Reclamação nº 8070/STF, de modo que não ultrapassa o caso concreto analisado.
Para além da insegurança jurídica causada pela Portaria, ao utilizar requisitos passíveis de modificação, a AGU ultrapassa suas competências, como quando tenta delinear quais recursos naturais no território indígena podem ser explorados pela comunidade com exclusividade (Art.1º, I,II,III e IV). E quando estabelece, no Art.1º, V, que “o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico […]” que “serão implementadas independentemente da consulta às comunidades indígenas envolvidas ou a FUNAI”, a Portaria demonstra sua patente ilegalidade, pois contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Nº 5.051, de 19 de abril de 2004.
Tal Convenção prevê a Consulta prévia e informada das populações impactadas bem como de seus órgãos representativos, no caso, a FUNAI, ambos categoricamente excluídos no artigo citado. Ainda segundo a Convenção, mesmo a edição desta Portaria imprescinde da consulta, pois, nos termos do Art. 6º, 1, a, os povos interessados e particularmente suas instituições representativas devem ser consultados quando previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente, o que não aconteceu. Além disso, a Portaria também viola o Art. 231 da CF/88, que afirma dever a União proteger as comunidades indígenas, sua cultura, bens e as terras que tradicionalmente ocupam. Desta forma, a Portaria já nasce nula de pleno direito.
Para além das impropriedades técnicas detectadas na Portaria, é de conhecimento público que foi oficializado perante a Advocacia Geral da União, em novembro de 2011, solicitação da Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (FAMASUL) para que o Governo Federal adotasse como “efeito vinculante” as condicionantes do julgamento do STF no caso do TI Raposa Serra do Sol[1]. Em Junho de 2012, representantes da bancada ruralista do Mato Grosso do Sul e também o coordenador da FAMASUL reuniram-se com o Ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, reforçando o pleito da bancada. O estado do Mato Grosso do Sul, no qual se encontram atualmente as etnias Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá e Terena, possui grande número de indígenas assassinados, tentativas de assassinato, suicídios, índices altos de desnutrição, mortalidade infantil, alcoolismo e toda sorte de agressão e ameaças, decorrentes dos conflitos de terras entre ruralistas e povos indígenas.
Se a Advocacia Geral da União, que possui, dentre outras competências, a de estipular a interpretação a normas gerais e constitucionais produz uma Portaria em claro desacordo com a Lei e a Constituição Federal de 1988, fruto da solicitação de representantes do Agronegócio, e dos anseios desenvolvimentistas do próprio Governo Federal, em detrimento dos direitos dos povos indígenas, percebe-se a intencionalidade político-jurídica de descumprir a Constituição, ou seja, trata-se de uma prática unilateral e anti-democrática.
A AGU cedeu aos pedidos dos ruralistas e se antecipou ao legislativo que tenta, também em direção contrária à garantia dos territórios indígenas, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, condicionar à aprovação do Congresso Nacional qualquer demarcação de território indígena não concluída. Tal Proposta, recentemente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça, quando avaliada em conjunto com o também recentemente aprovado Código Florestal, e com a Portaria 303 da AGU, aponta para a construção de um engenharia legal que visa facilitar a concentração de terra e propriedade no país, beneficiando grandes fazendeiros e corporações transnacionais que atuam no Brasil, além de reforçar a posição do Governo Federal pelo Agronegócio, a reprimarização da economia (com a exploração exaustiva de recursos naturais) e a exportação de commodities.
A Portaria prevê também a adequação de todos os procedimentos de demarcação em curso aos seus artigos, e também a absurda revisão e adequação dos procedimentos finalizados. Ora, a demarcação de territórios indígenas é não apenas direito que visa a assegurar as garantias ao território ancestral e a incolumidade cultural e tradicional do povo, mas também, na grande maioria das vezes, é instrumento imprescindível para findar conflitos territoriais entre os ocupantes originários (povos indígenas) e invasores, como fazendeiros. Portanto, reabrir procedimentos findos significa que a AGU assume a irresponsável deflagração de conflitos já resolvidos e que resultaram, muitas vezes, na morte de muitos indígenas e mesmo na quase dizimação de determinada etnia.
Diante de todo o exposto, bem como da necessidade de se mudar definitivamente a forma como o Estado Brasileiro lida com suas populações originárias, fazemos coro aos povos indígenas brasileiros e requeremos:
i. A imediata revogação da Portaria 303 da AGU, por sua patente ilegalidade e inconstitucionalidade; a não aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 215, vez que poderá inviabilizar a demarcação de diversas terras indígenas, mantendo conflitos fundiários e o risco de morte de diversos indígenas;
ii. Que a Advocacia Geral da União e o Ministério da Justiça cumpram suas prerrogativas institucionais de cumprimento da Constituição e dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não se submetendo a interesses de grupos econômicos específicos que visam a espoliar povos indígenas e tradicionais, sob o falso argumento da “necessidade de terras para produção de alimentos”;
iii. Que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e os povos indígenas sejam consultados sobre toda e qualquer iniciativa legal, administrativa e empreendimentos que os impactem diretamente, nos moldes do previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, já ratificado pelo Estado brasileiro;
iv. Que sejam urgentemente demarcados e homologados os territórios indígenas a fim de se resolverem os conflitos fundiários, como o dos Guarani-Kawioá, no Mato Grosso do Sul, que já resultou na morte de diversas lideranças indígenas, e os Xavante, do Mato Grosso;
v. Que o Governo Federal abstenha-se de construir grandes obras de infra-estrutura e megaempreendimentos que impactem direta e definitivamente territórios indígenas, bem como em que os Estudos de Impactos Ambientais demonstrem perda irreparável da Biodiversidade e da sociodiversidade, como é o caso das UHE de Belo Monte, no Pará e todas as outras dezenas de Usinas Hidrelétricas previstas para serem construídas na Amazônia brasileira.
[1] Informação disponível no sítio da FAMASUL. Disponível em: http://www.famasul.com.br/index.php?ir=noticias/visualizar.php&p_codigo=13928. Acesso em 24 de Julho 2012.