Situação dramática
“Estamos sem poder cozinhar, pois estamos praticamente dentro da água. O pouco de lenha que temos está molhada. Dormimos com as camas na água. Está tudo alagado. Os poços estão com a água misturada com a da alagação. Parece que querem nos deixar viver que nem porco, sem tomarem providência”. (cacique Faride, Laranjeira Nhanderu, 20/10/09)
Paramos à beira da BR 163, no clarear do dia. Logo foram chegando homens, mulheres e crianças Kaiowá Guarani, com ar de alagados. Sofrimento estampado no rosto e as duras palavras foram açoitando os ouvidos. Estavam aguardando a chegada do Ministério Público para ver quais providências seriam tomadas de imediato, para evitar conseqüências mais desastrosas como epidemias ou doenças decorrentes da água contaminada. “Temos que gritar mais uma vez para que resolvam logo o problema da nossa terra”, disse Zezinho, liderança do grupo.
Estão há mais de um mês à beira da estrada, após o despejo realizado dia 11 de setembro. Exigem a imediata vinda do Grupo de Trabalho para concluir o trabalho de identificação para que não tenham que ficar muito tempo nesta situação desumana e genocida.
Viagem pelo sofrimento e solidariedade
Vínhamos de dois momentos fortes na luta do povo Guarani e em especial os do Mato Grosso do Sul. Na Aty Guasu de Yvy Katu, além do desabafo sobre a dramática situação em que vivem a maioria das comunidades, um ultimato às autoridades e responsáveis por essa situação: “Se dentro de um mês não estiverem identificando e demarcando nossas terras, nós vamos fazê-lo”. A Senadora Marina Silva, primeira senadora a levar seu apoio e solidariedade à luta desse povo numa Aty Guasu, se comprometeu a levar esse clamor ao presidente Lula, aos demais senadores e à opinião publica nacional e internacional.
Não tem tempo ruim
Um forte tufão põe as estruturas leves em polvorosa.Parte das lonas pretas vão para os ares. Uma árvore cai sobre uma parte de barraco ferindo uma adolescente. A enorme lona branca se transformou num pássaro gigante treinando seu vôo. Aos poucos ela se esparramou pelo chão.
Um tanto atônitos, os participantes procuraram se abrigar do furacão. Os Nhanderu intensificaram suas rezas para proteger as vidas expostas ao temporal. Depois de alguns minutos a ventania foi embora, dando lugar a trovões seguidos de chuva leve. Foi o tempo de verificar os estragos e remover a indígena ferida ao hospital. “Todos foram batizadas pelo vento e a água”, diria o cacique Rosalino no dia seguinte. Outros encontraram explicações diversas para a fúria do vento e chuva que se precipitaram sobre os Guarani Kaiowá reunidos em sua Grande Assembléia. Alguns passaram a noite em ritual. Outros se abrigaram nas estruturas que resistiram ao tempo. Ali passaram a noite contando causos, piadas e dando gargalhadas. Quando um novo dia chegou, ainda sob chuvisco, foi a hora de juntar a esperança e tocar os trabalhos adiante. Para quem já enfrentou tantas tempestades não tem tempo ruim. E aos poucos os trabalhos são retomados, ao ar livre. Com um esforço enorme o que restou da lona se transformou novamente em auditório.
Na carta da Aty Guasu expressam sua indignação e descrença crescente quanto aos órgãos responsáveis para resolver o problema: “Vem nos prometendo datas e prazos que até hoje não foram cumpridos. E os antropólogos não poderão concluir esses trabalhos se o Governo não tomar medidas firmes e eficientes para garantir a segurança nos técnicos. Parece que estão nos enganando e atendendo os pedidos dos fazendeiros e do Governo do estado de Mato Grosso do Sul, para que nada seja feito. Estão esperando o que para tomarem providências sérias e rápidas?
Parece que esperam que sejam trocados os Governantes, ainda mais descompromissados com nosso povo, para que tudo piore e nosso povo continue passando todas as dificuldades pela falta de terra. Parecem que esperam morrer mais indígenas para que alguma coisa seja feita! Portanto, queremos reivindicar que o Governo Federal resolva de uma vez por todas a conclusão dos trabalhos de identificação de nossas terras no prazo de 30 (trinta) dias pois, do contrário, que seja responsável pela sua omissão pois nosso povo não ficará parado aguardando a boa vontade do Governo Federal que até agora muito prometeu e nada cumpriu. Perdemos a paciência, e o povo Guarani e Kaiowá partirá para a luta pelos nossos direitos! Por fim, agradecemos toda a compreensão e solidariedade das pessoas de bem que compreendem a necessidade de resolvermos, de uma vez por todas, a situação dramática em que estamos!”(Carta da Aty Guasu de Yvy Katy, 16/10/09)
Em Foz do Iguaçu aconteceu um importante momento de articulação e solidariedade entre os povos indígenas do Paraguai, Brasil, Argentina e Bolívia. Nos três dias de debate e construção de caminhos de efetivas alianças, organização das forças dos trezentos mil Guarani que hoje vivem nos cinco países, para que possam ter seus direitos.
Houve momentos de muita emoção e comoção, como na fala do líder Guarani Jorge, depois de terem assistido o vídeo “Semente de Sonhos”, da Campanha Povo Guarani, Grande Povo. As manifestações de solidariedade foram no sentido de juntos encontrarem as formas de por fim a essa situação de genocídio e etnocídio, seja através da mobilização do povo Guarani, e da denúncia a fóruns nacionais e internacionais de direitos humanos.
No manifesto e expressaram total apoio à luta dos Kaiowá Guarani pelos seus direitos:
“Queremos dizer a eles que podem contar não apenas com a solidariedade do movimento continental Guarani, mas com o efetivo e concreto empenho e apoio para por fim a essa situação. Sem a efetiva demarcação das terras Guarani todo o processo de desenvolvimento na região estará marcado com o sangue, injustiça e crime. Sem o reconhecimento e garantia das terras Guarani não existirá democracia. Sem a punição dos assassinos de nossos irmãos não haverá justiça. Denunciamos e exigimos ante os organismos internacionais de direitos humanos o cumprimento dos tratados e convênios reconhecidos pelos governos dos países garantindo a sobrevivência física, social e cultural dos povos indígenas. Alertamos que o Povo Guarani está mobilizado em defesa de seus direitos consuetudinários e constitucionais e estamos dispostos a dar nosso sangue em defesa de nossos territórios. Convocamos os setores sociais do campo e da cidade a somar-se à luta dos povos indígenas em todo o mundo” (Manifesto pelos direitos Guarani – Foz do Iguaçu 19/10/09)
Invasão ou invadidos
Enquanto isso a imprensa-empresa do Mato Grosso do Sul estampa manchetes sobre os “Índios Terena invadem fazendas”. Na verdade as chamadas deveriam ser “Terenas voltam às suas terras invadidas por fazendeiros”. O governo do estado se apressou em mandar a polícia militar que tentou em confronto com um dos grupos utilizando bombas de gás lacrimogêneo e balas ditas de borracha. Um dos Terena saiu ferido e foi levado ao hospital.
Um grupo de indígenas Terena foi debater a situação com representantes da Famasul, que representa os interesses anti-indígenas. Conforme o presidente da entidade, Ademar da Silva Junior “houve um diálogo entre as partes envolvidas no litígio sem a presença de intermediários, como Ongs e o Conselho Indigenista Missionário-Cimi” (Correio do Estado, 20/10/09). O cinismo e hipocrisia campeiam soltos pelas plagas do agronegócio e seus representantes. Se houvesse um mínimo de coerência entre suas falas, intenções e práticas, certamente a questão fundiária, das terras indígenas, quilombolas e sem terra já estariam resolvidos há muito tempo.
Os Terena, com suas ações de retomada de parte de suas terras tradicionais expressam a necessidade urgente de se resolver a situação, pois os processos de suas terras se arrastam a décadas nos obscuros meandros da burocracia estatal e da justiça.
Egon Heck
Cimi MS